sexta-feira, 4 de outubro de 2024

José de Souza Martins - O que está em jogo nas eleições municipais

Valor Econômico

Em São Paulo, estará em jogo se o Brasil será por longo tempo um país autoritário ou um país democrático

Dentro de dois dias realizam-se as eleições municipais no Brasil inteiro. Em 5.569 municípios serão eleitos prefeitos e vereadores. Embora essas eleições pareçam de importância menor em relação às forças políticas nelas envolvidas, na verdade estará em jogo, no dia 6, o destino político da República, não só o das comunas locais. Em São Paulo, estará em jogo se o Brasil será por longo tempo um país autoritário ou um país democrático.

A esdrúxula propaganda eleitoral de um candidato alude à importância de uma vitória bolsonarista para que Bolsonaro volte ao poder. Uma pessoa envolvida tão claramente nas sucessivas tentativas de golpe de Estado é estandarte da continuidade do golpe violador da Constituição e das leis da ordem política.

Até um bispo e um padre católicos apelaram pelo voto contra o PT para barrar o avanço político do “materialismo histórico e ateu”. Sob o abrigo da liberdade de opinião suspeitam da suposta, descabida e inverídica ameaça de Lula e do PT à religião.

O PT aqui e outros partidos de esquerda, em diferentes países, não são partidos filiados à tradição arcaica do “materialismo histórico”. Mero materialismo filosófico, de fundo econômico, não é socialmente ateu. Em todos os cantos, há mais ateísmo em igrejas do que nas doutrinas políticas não religiosas. Caso daquelas em que o dinheiro e a prosperidade fazem de Deus um pretexto nada religioso.

Defensores de projetos políticos, de esquerda porque em favor dos direitos sociais, como os que foram defendidos pelo papa Leão XIII, em sua encíclica “Rerum Novarum” (1891), são católicos e mesmo protestantes de filiação autêntica e genebrina.

O PT nasceu na região industrial do ABC paulista, cujo primeiro bispo, Dom Jorge Marcos de Oliveira, desenvolveu sua pastoral social com o intuito de munir os operários católicos de referências cristãs para enfrentar e superar a alienação da injustiça do desenvolvimento econômico sem desenvolvimento social.

Pela mesma época, a Confederação Evangélica do Brasil lançou um documento sobre “A Responsabilidade Social das Igrejas”, na linha do protestante Concílio Mundial de Igrejas, de Genebra, em concepção diversa do protestantismo americano.

Tanto o interesse católico quanto o interesse protestante pela chamada questão social atendia a uma compreensão moderna, atualizada, de convocação dos cristãos à atitude responsável e participativa em seu destino.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, na região do ABC, profundamente católica, foi com a extensa participação dos católicos que os comunistas, através de um partido de aluguel, o PST, elegeram o prefeito do município de Santo André, em 1947, que abrangia 6 dos 7 atuais municípios da região. Como elegeram, também, a maioria dos vereadores da Câmara Municipal.

Armando Mazzo era um marceneiro que fora eleito no mesmo ano de 1947 pelo Partido Comunista para a Assembleia Constituinte de São Paulo e perdera o mandato quando o partido foi cassado por uma decisão de 3 votos a 2 do TSE.

A criação da diocese da região operária e a nomeação de Dom Jorge como bispo, pelo papa Pio XII, tinha o propósito de não separar o operário católico de sua classe social.

Ele pensou em estimular o surgimento de uma liderança operária católica. Criava as condições para viabilizar a figura que viria a ser o operário Lula. E por meio dele o PT. Nem Dom Jorge sabia disso e nem o sabia Lula.

Dom Jorge inspirava-se no chamado personalismo do pensador católico Emanuel Mounier, editor da revista católica “Esprit”, que reunia não só católicos, mas pensadores de diferentes orientações interpretativas.

Conversei com Dom Jorge várias vezes. Eu era aluno do curso de formação de professores primários do Instituto de Educação Américo Brasiliense, de Santo André, quando fui a ele propor que realizássemos na escola um ciclo ecumênico de conferências por oradores de diferentes orientações religiosas sobre a encíclica de Leão XIII.

Ele me estimulou a ler Mounier, que centra sua visão de mundo na pessoa e não no indivíduo, que é a referência do protestantismo americanizado e materialista da prosperidade como motivo de fé e instrumento de alienação.

O primado da pessoa tem estado nas referências sociais de encíclicas e documentos pontifícios desde o papa João XXIII. A pessoa é o instrumento da fé contra a alienação que põe o indivíduo fragmentário em antagonismo mistificador contra sua pessoa. Ratzinger, o futuro Bento XVI, em seu livro sobre Jesus, faz referência ao famoso e decisivo estudo de Karl Marx, judeu batizado na Igreja Luterana, sobre alienação. Agrega outras e suas próprias ponderações críticas sobre essa característica da modernidade materialista.

 

4 comentários:

  1. " Em todos os cantos, há mais ateísmo em igrejas do que nas doutrinas políticas não religiosas. Caso daquelas em que o dinheiro e a prosperidade fazem de Deus um pretexto nada religioso. "

    Perfeito !

    ResponderExcluir
  2. Sugiro a leitura da excelente coluna de Michael França " Marçal expressa miséria de parte dos ricos ", publicada ontem na Folha.

    😊

    ResponderExcluir
  3. O problema é acreditar que o PT defenda os pobres e não os extremamente ricos como os Marcelinos Odebrecht, os Joesleys e Wesleys e todos os seus cúmplices em esquemas absurdos de corrupção. A repulsa ao partido vêm disto. O partido nos deve explicações. Repetir a tese propagada pelo filme feito pela herdeira da OAS só aumenta está rejeição.

    ResponderExcluir
  4. A partir de seu livro "Do PT das lutas sociais ao PT do poder" (José de Souza Martins, Editora Contexto 2016), pode-se entender claramente o início do partido com "boas intenções" de alguns e o que acabou sendo a realidade, desde o primeiro governo. Gostei muito.

    ResponderExcluir