Correio Braziliense
Vladimir Carvalho — ou Vorochenko, como era
seu apelido entre os camaradas do cinema, em função de sua posição política de
esquerda — era um cara simples, talentoso, dono de uma humildade cativante
Cidade do México, 24 de outubro de 2024.
Acordei com a notícia da morte de
Vladimir Carvalho. Imediatamente, senti a facada no peito. Aquela
dor funda bem no lado esquerdo da gente. Ou seria no meio? Não importa, mas
aquela dor tipo soco que nos toma de surpresa quando algo nos toca
verdadeiramente.
Imediatamente, comecei a pensar nos poucos encontros que tivemos, quer tenha sido de pura tietagem, como no Festival de Brasília, ou em ocasiões mais profissionais — ou acadêmicas — em que tive o privilégio de entrevistá-lo para minha tese de doutorado. Como objeto de estudo, eu usava uma de suas obras, Aruanda (1960), curta-metragem seminal do Cinema Novo, cuja autoria (de roteiro) havia sido tantas vezes questionada. Isso porque o diretor paraibano Linduarte Noronha não queria reconhecer a participação de Vladimir Carvalho e de João Ramiro Mello na concepção do roteiro. Mal sabia ele que seu colega dos tempos de cineclube, seu conterrâneo velho de guerra, iria conservar o roteiro original do filme, conservando-o orgulhosamente em seu Cinememória, espaço criado por ele, na W3 Sul, para salvaguardar a memória do cinema brasileiro. Uma verdadeira pérola para uma historiadora do cinema como eu.
Como minha pesquisa se arrastou por vários
anos, tive a oportunidade (e a sorte) de entrevistar Vladimir por duas vezes.
Foram dois encontros longos. Entrevistas que logo se transformavam em
bate-papos daqueles bem gostosos que a gente tem com velhos amigos. Encontros
dos quais a gente não tem vontade de ir embora. Com ele, era assim. Sua
fala-abraço e seu jeitinho tão nordestino de receber bem faziam o gelo se
quebrar muito rapidamente. A distância entre mestre e aluno logo desaparecia.
Ele tinha o dom de nos fazer sentir iguais, dotados de mesmo valor, do valor de
ser simplesmente gente. Com fraquezas e fortalezas, defeitos e qualidades, mas,
acima de tudo, gente com histórias e sentimentos legítimos.
Vladimir Carvalho — ou Vorochenko, como era
seu apelido entre os camaradas do cinema, em função de sua posição política de
esquerda — era um cara simples, talentoso, dono de uma humildade cativante.
Adotou Brasília como sua morada, mas nunca esqueceu os nordestinos que lutavam
(e lutam até hoje) em dobro para se fazerem escutados. Não à toa, fez filmes
como Conterrâneos velhos de guerra (1992), em que narra a saga dos
nordestinos que vieram construir a capital federal com o sonho de uma vida
melhor. Muitos dos quais acabaram morrendo em função das péssimas condições de
trabalho que encontravam. Alguns tendo sido até mesmo enterrados nos próprios
monumentos que embelezam nossa cidade. Dessa maneira, o resto do Brasil não
ficava sabendo das atrocidades lá cometidas… Um horror! Em seu filme, o
cineasta ousou questionar Niemeyer sobre esse fato e, posso garantir, o
arquiteto não ficou nada contente.
Mas Vorochenko era assim. Acreditava em seus
propósitos, em sua essência, era um homem do bem, de ideais e de coragem, muito
embora ele tenha me confessado que não era lá tão corajoso. Contou que, quando
estava trabalhando como assistente de Eduardo Coutinho em Cabra marcado para
morrer (1964-84), lá nos idos de 1964, fugiu e se escondeu quando os militares
vieram recolher os equipamentos da equipe e impedir a rodagem do filme. Depois
de ter encontrado um lugar seguro para Dona Elizabeth Teixeira — esposa do
líder camponês assassinado João Pedro Teixeira —, fugiu, se escondeu em uma
fazenda perto de Campina Grande, adotou novo nome e criou uma nova vida. Virou
santeiro! Isso mesmo, Vorochenko virou Seu Zé dos Santos, entalhando santos
para a comunidade ali do entorno e mostrando que a flexibilidade e a capacidade
de adaptar-se eram também alguns de seus tantos talentos.
Talento que fica evidente quando analisamos
sua relação com Brasília, cidade que transformou em lar ainda nos anos de 1960.
O cineasta adaptou-se tão bem à nova capital federal que acabou por se tornar
um de seus símbolos, uma figura indissociável ao cinema feito no Cerrado.
Dominou pelo chifre a luz forte daquele planalto central — luz
"rascante", como ele dizia — e realizou vários documentários
sobre a história de Brasília. Além do já citado Conterrâneos velhos de guerra,
fez Barra 68 — Sem perder a ternura (2001), sobre as agressões
sofridas por estudantes e docentes na Universidade de Brasília (UnB), em 1968.
Fez Rock Brasília — A era de ouro (2011), sobre as tantas bandas de
rock surgidas na capital federal. Ou ainda o precioso curta Vestibular 70
(1970), codirigido por Fernando Duarte, um dos mais emblemáticos diretores de
fotografia do Cinema Novo e que foi o responsável pelo ingresso de Vladimir na
UnB como professor, atividade que exerceu por longos anos, para a sorte dos
alunos.
Desde seu primeiro documentário Romeiros
da guia (1962), passando por seu excelente País de São Saruê (1971)
até seu mais recente Cicero Dias, o compadre de Picasso (2016),
vencedor dos prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Direção no Festival de
Brasília, Vladimir Carvalho Vorochenko foi um guerreiro! Batalhou, filme a
filme, para conseguir realizar cada uma de suas produções. Nunca fez parte de
panelinhas e, portanto, não costumava receber benefícios
"gratuitamente". Foi um homem de palavra, de roteiros, de imagens,
de som e de luz. Sem dúvida alguma, um ser iluminado que agora vai alumiar
outras paragens. Vá em paz, meu querido! Nosso cineclube hoje fica órfão, mas
prometemos seguir adiante honrando seu nome e seu legado.
*Historiadora e crítica de cinema, doutora em história e estética do cinema
Muito bom! Ter sido "um homem de palavra" já é uma boa característica pra qualquer cidadão. Mas este foi realmente muito mais que isto.
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