quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Malu Gaspar - O apagão os lobbies

O Globo

O apagão em São Paulo fez emergir não só o retrato de uma concessionária e de governos pouco aparelhados para lidar com uma emergência capaz de deixar milhões sem luz. Fez também vir à tona o grande nó que é o sistema elétrico nacional, em que os principais atores só brigam, e os lobbies mandam mais que o interesse público.

Desde novembro de 2023, quando 2 milhões de clientes ficaram sem luz em São Paulo e noutros 23 municípios, ficou evidente que a Enel não tinha condições de restabelecer a energia rapidamente num contexto como aquele — chuva forte, com ventos de 103 quilômetros por hora.

Ao apagão, seguiu-se uma guerra de acusações. A distribuidora atribuiu o problema à força da tempestade, que não tinha sido prevista pela meteorologia, mas também à deficiência da prefeitura na poda de árvores, que caíram sobre a rede elétrica e ficaram energizadas, dificultando o conserto e a religação dos cabos.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB) culpou a Enel por não colaborar com a poda, desligando a rede e autorizando a retirada. Acusou o governo federal de não tomar providências em relação à concessionária. Cobrou, ainda, que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) investigasse e punisse a Enel, já criticada por prestar mau serviço.

A reação do governo Lula foi apontar o dedo aos antecessores — acusados de promover “privatizações de maneira negligente com o setor elétrico” (a Enel, controlada pelo governo italiano, assumiu a concessão em 2018, ao comprar a AES Eletropaulo) —, montar uma sala de situação no Ministério de Minas e Energia para acompanhar a crise e cobrar da Aneel que apurasse as causas do problema.

Na berlinda, a agência concluiu ter havido demora em mobilizar equipes e descumprimento dos parâmetros de qualidade, aplicou à Enel multas que somam R$ 260 milhões e exigiu de todas as distribuidoras de energia brasileiras a apresentação de planos de contingência para eventos climáticos extremos. A Enel apresentou seu plano no mês passado, mas ainda contesta a multa na Justiça.

A partir da última sexta-feira, quando houve nova tempestade em São Paulo, com rajadas de ventos de mais de 100 quilômetros por hora, a mesma ciranda se repetiu, amplificada pelas circunstâncias, às vésperas do segundo turno da corrida eleitoral.

A exceção a essa triste repetição de inoperâncias e omissões foi a atitude do governo federal, mais especificamente do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Antes discreto na cobrança à Aneel, desta vez Silveira virou uma metralhadora giratória. Disse que a Enel “não conhece a realidade nacional”.

Afirmou que a atuação da empresa foi marcada pela falta de planejamento e “beirou a burrice”. Acusou a Aneel de omissão por não ter aberto processo para cassar a concessão em abril de 2024, a pedido dele, e disse que o contrato da distribuidora é “frouxo”, por isso não pode ser rompido pelo governo.

Que o ministro está em guerra com a Aneel, não é segredo. Recentemente, ele até ameaçou intervir na agência, depois que os diretores vetaram a transferência de controle da Amazonas Energia à Âmbar, do grupo J&F, dos irmãos Wesley e Joesley Batista. O que chamou a atenção foi a guinada em relação à Enel, porque, depois do apagão de novembro, Silveira vinha se aproximando dos italianos.

Desde abril, quando pediu à Aneel que abrisse processo contra a distribuidora, Silveira fez três viagens à Itália, e em todas esteve com executivos da Enel. Em junho, levou o próprio Lula para se reunir com o CEO da companhia durante o encontro do G7, na turística Fasano.

O grupo tirou fotos em sorridentes apertos de mão, e o presidente saiu do encontro dizendo que o Brasil estava disposto a renovar o contrato se a Enel se comprometesse a ampliar os investimentos no país para R$ 20 bilhões — o que os italianos obviamente confirmaram.

Na manhã da última sexta-feira, horas antes de a tempestade começar no Brasil, Silveira estava em Roma, ao lado de um diretor da Enel, num desses eventos que reúnem autoridades brasileiras para palestras aleatórias e lautos regabofes, promovido pelo grupo Esfera e patrocinado pela JBS dos Batistas, entre outras empresas.

O tema do painel era sustentabilidade e a “nova era energética”. Silveira incluiu a Enel entre as distribuidoras que poderiam se enquadrar num decreto que prevê renovação dos contratos de concessão. Noutras mesas, naquele mesmo dia, falaram o CEO mundial, Flavio Cattaneo, e Wesley Batista, acionista da Âmbar.

Horas depois, o tempo virou no Brasil. A tempestade afastou Silveira dos italianos, mas a história está longe de acabar.

 

Um comentário:

  1. Excelente análise! Colocou todos os pingos nos devidos iiisss. Ninguém é santo nesta questão... Parabéns à colunista, e ao blog por divulgar seu magnífico trabalho.

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