O Globo
O apagão em São Paulo fez
emergir não só o retrato de uma concessionária e de governos pouco aparelhados
para lidar com uma emergência capaz de deixar milhões sem luz. Fez também vir à
tona o grande nó que é o sistema elétrico nacional, em que os principais atores
só brigam, e os lobbies mandam mais que o interesse público.
Desde novembro de 2023, quando 2 milhões de clientes ficaram sem luz em São Paulo e noutros 23 municípios, ficou evidente que a Enel não tinha condições de restabelecer a energia rapidamente num contexto como aquele — chuva forte, com ventos de 103 quilômetros por hora.
Ao apagão, seguiu-se uma guerra de acusações.
A distribuidora atribuiu o problema à força da tempestade, que não tinha sido
prevista pela meteorologia, mas também à deficiência da prefeitura na poda de
árvores, que caíram sobre a rede elétrica e ficaram energizadas, dificultando o
conserto e a religação dos cabos.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB)
culpou a Enel por não colaborar com a poda, desligando a rede e autorizando a
retirada. Acusou o governo federal de não tomar providências em relação à
concessionária. Cobrou, ainda, que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
investigasse e punisse a Enel, já criticada por prestar mau serviço.
A reação do governo Lula foi
apontar o dedo aos antecessores — acusados de promover “privatizações de
maneira negligente com o setor elétrico” (a Enel, controlada pelo governo
italiano, assumiu a concessão em 2018, ao comprar a AES Eletropaulo) —, montar
uma sala de situação no Ministério de
Minas e Energia para acompanhar a crise e cobrar da Aneel que
apurasse as causas do problema.
Na berlinda, a agência concluiu ter havido
demora em mobilizar equipes e descumprimento dos parâmetros de qualidade,
aplicou à Enel multas que somam R$ 260 milhões e exigiu de todas as
distribuidoras de energia brasileiras a apresentação de planos de contingência
para eventos climáticos extremos. A Enel apresentou seu plano no mês passado,
mas ainda contesta a multa na Justiça.
A partir da última sexta-feira, quando houve
nova tempestade em São Paulo, com rajadas de ventos de mais de 100 quilômetros
por hora, a mesma ciranda se repetiu, amplificada pelas circunstâncias, às
vésperas do segundo turno da corrida eleitoral.
A exceção a essa triste repetição de
inoperâncias e omissões foi a atitude do governo federal, mais especificamente
do ministro de Minas e Energia, Alexandre
Silveira. Antes discreto na cobrança à Aneel, desta vez Silveira
virou uma metralhadora giratória. Disse que a Enel “não conhece a realidade
nacional”.
Afirmou que a atuação da empresa foi marcada
pela falta de planejamento e “beirou a burrice”. Acusou a Aneel de omissão por
não ter aberto processo para cassar a concessão em abril de 2024, a pedido
dele, e disse que o contrato da distribuidora é “frouxo”, por isso não pode ser
rompido pelo governo.
Que o ministro está em guerra com a Aneel,
não é segredo. Recentemente, ele até ameaçou intervir na agência, depois que os
diretores vetaram a transferência de controle da Amazonas Energia à Âmbar, do
grupo J&F, dos irmãos Wesley e Joesley
Batista. O que chamou a atenção foi a guinada em relação à Enel,
porque, depois do apagão de novembro, Silveira vinha se aproximando dos
italianos.
Desde abril, quando pediu à Aneel que abrisse
processo contra a distribuidora, Silveira fez três viagens à Itália, e em todas esteve
com executivos da Enel. Em junho, levou o próprio Lula para se reunir com o CEO
da companhia durante o encontro do G7, na turística Fasano.
O grupo tirou fotos em sorridentes apertos de
mão, e o presidente saiu do encontro dizendo que o Brasil estava
disposto a renovar o contrato se a Enel se comprometesse a ampliar os
investimentos no país para R$ 20 bilhões — o que os italianos obviamente
confirmaram.
Na manhã da última sexta-feira, horas antes
de a tempestade começar no Brasil, Silveira estava em Roma, ao lado de um
diretor da Enel, num desses eventos que reúnem autoridades brasileiras para
palestras aleatórias e lautos regabofes, promovido pelo grupo Esfera e
patrocinado pela JBS dos Batistas, entre outras empresas.
O tema do painel era sustentabilidade e a
“nova era energética”. Silveira incluiu a Enel entre as distribuidoras que
poderiam se enquadrar num decreto que prevê renovação dos contratos de
concessão. Noutras mesas, naquele mesmo dia, falaram o CEO mundial, Flavio
Cattaneo, e Wesley
Batista, acionista da Âmbar.
Horas depois, o tempo virou no Brasil. A
tempestade afastou Silveira dos italianos, mas a história está longe de acabar.
Excelente análise! Colocou todos os pingos nos devidos iiisss. Ninguém é santo nesta questão... Parabéns à colunista, e ao blog por divulgar seu magnífico trabalho.
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