terça-feira, 1 de outubro de 2024

Maria Cristina Fernandes - Marçal e ‘bets’, faces da mesma moeda

Valor Econômico

Candidato do PRTB surfou na ilusão do dinheiro fácil e se valerá dela para enfrentar a crescente rejeição feminina

O voto envergonhado deu ao ex-presidente Jair Bolsonaro cinco pontos percentuais a mais do que a média das últimas pesquisas do segundo turno de 2022 registravam. O candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, pode vir a ser beneficiado pelo mesmo fenômeno, ainda que tenha ficado mais difícil para ele diminuir a rejeição feminina depois de dizer que é burrice votar em mulher.

Emulou seu apoiador, o fundador do grupo G4 Educação, Tallis Gomes, que pediu a Deus para livrá-lo de uma CEO mulher e sua própria esposa, Carolina Marçal, que, no seu livro, “A verdadeira força da mulher”, disse que a mulher é substituível na profissão mas não nos cuidados com o marido e os filhos. Até domingo, Marçal vai tentar tirar o voto envergonhado das mulheres do armário com suas armas habituais enquanto os adversários tentarão empurrá-lo de volta com a declaração do candidato no debate da Folha/Uol.

A batalha mais dura que os demais candidatos têm pela frente para evitar que Marçal chegue ao 2º turno, porém, é a confluência das bases de sua candidatura com o momento do país. O candidato faz campanha enrolado na bandeira do empreendedorismo. O adolescente que capturava emails de alvos de fraudes e construiu um império da economia digital de R$ 5 bilhões promete incorporar economia financeira nas escolas municipais para ensinar crianças a enricar.

O que o empurra para frente, porém, não é o sonho do empreendedorismo, mas do dinheiro fácil. Sua ascensão ficou mais decifrável depois que se conheceu a dimensão da expansão desenfreada do mercado de apostas digitais no Brasil, que angariou 21% de sua arrecadação em agosto de beneficiários do Bolsa Família. Pesquisa da Locomotiva sugere que 53% dos apostadores são homens e 47%, mulheres. A diferença estreita sugere que a batalha de gênero pela porta do armário tem uma lombada.

Em vídeo que circula em suas redes, Marçal usou Gusttavo Lima, goiano como ele, como exemplo bem-sucedido dos ensinamentos de seus cursos. Contou como o cantor vendeu sua agenda de shows para um fundo de investimentos, arrecadou R$ 200 milhões e, com esse dinheiro, replicou a operação com outros cantores. “E aí ele ganha sobre todos os cantores. Ou seja, o cara não é cantor. Por isso que o cara tem um avião de gente grande e está fazendo uma pista de pouso ao lado da casa dele. Por isso o cara é o maior do setor dele”, concluiu, rindo, ante uma plateia de homens brancos anestesiados, com a esperteza do cantor que chegou a ter prisão preventiva decretada e é investigado pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro no mercado de apostas de jogos ilegais. Deflagrada a operação, o candidato do PRTB o defendeu.

Se Gusttavo Lima não é apenas um cantor, não há dúvida de que Marçal tampouco se limita a agir como um empresário misógino que disputa mercado com o dízimo de Silas Malafaia e se vale de tramoias como os concursos de cortes para baratear os custos de sua campanha. É um político que constrói o imaginário do eleitorado pós-bolsonarista em cima das bases reais de uma economia de pleno emprego e da ilusão do dinheiro fácil.

Foi noutro momento de renda em alta, em 2013, que se construíram as bases do bolsonarismo. Dilma Rousseff reelegeu-se à Presidência no ano seguinte àquelas manifestações porque a extrema-direita ainda engatinhava na disputa pelo mercado eleitoral. Seu impeachment deu posse ao governo de Michel Temer, incubadora da aliança entre o Centrão e o bolsonarismo, a começar pela aprovação, no apagar das luzes de sua gestão, da lei que escancarou as portas para o mercado de apostas. O setor bombou ao longo do governo Bolsonaro e adentrou o de Luiz Inácio Lula da Silva incólume.

De tão preocupada com a arrecadação necessária para bancar os programas sociais que alavancaram a renda, a proposta de regulamentação de 2023 descuidou de fechar as brechas das irregularidades deste mercado. O descolamento foi tanto que o governo se pôs a enxugar gelo com um programa para reduzir dívidas (Desenrola).

Agora corre atrás de uma regulamentação efetiva com bloqueio de centenas de sites irregulares de aposta pela Anatel, proibição dos cartões de crédito e do Bolsa Família, rastreio de dependência por CPF e controle de publicidade. Sem a proibição do Pix, como sugeriu Isaac Sidney, da Febraban, tem uma porta que resta escancarada, para não falar da triangulação do mercado de bitcoins, paraíso da lavagem de dinheiro.

A primeira advertência sobre o sonho do dinheiro fácil veio há 83 anos e foi feita por um viajante austríaco, apaixonado pelo país. Em “Brasil, país do futuro”, Stefan Zweig escreveu: “A riqueza, no modo de ver do brasileiro, não é absolutamente o acúmulo penoso de dinheiro poupado graças a inúmeras horas de trabalho, não é o resultado de um esforço frenético e enervante. O dinheiro é algo com que se sonha; tem que vir do céu”.

O brasileiro não sonha com o fácil porque é indolente mas porque a herança de um país marcado a ferro e fogo pela herança da escravidão ainda faz da oportunidade um palavrão. Marçal capturou o que Igor Coelho, do seu lugar de fala como apresentador de um podcast popular na juventude, definiu numa frase ao entrevistá-lo: “Como tem otário no mundo”. É a tarefa de provar que Igor está errado que os adversários de Marçal têm pela frente.

 

2 comentários:

  1. Os jornalistas não usam a vírgula antes da conjunção ''mas''.

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  2. Excelente análise. O perene sucesso das loterias oficiais também explica porque somos (para sempre) o país do futuro.

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