Tragédia de Novo Hamburgo expõe leniência com CACs
O Globo
Atirador que matou pai, irmão e dois
policiais mantinha em casa arsenal obtido legalmente como colecionador
Na noite de terça-feira em Novo Hamburgo, na
Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), um caminhoneiro de 45 anos, depois
de manter a própria família como refém, matou a tiros na hora o pai, o irmão e
um policial militar. Outro PM morreu no hospital. Feriu ainda a mãe, a cunhada
e outras seis vítimas. Segundo a Polícia Civil gaúcha, o atirador foi
encontrado sem vida dentro de casa depois de confronto com o Batalhão de
Operações Policiais Especiais (Bope). Cinco baleados — entre eles dois
policiais militares e um guarda municipal — permaneciam ontem internados.
A motivação do crime ainda é investigada. Pelo que se sabe, o atirador abriu fogo contra os parentes e policiais depois de ser denunciado pelo pai por maus-tratos. Todas as tentativas de negociação foram frustradas, e ele ainda derrubou dois drones usados pela polícia durante o cerco, que durou mais de nove horas.
O massacre expõe de forma contundente o
equívoco de permitir que cidadãos mantenham em casa arsenais com grande poder
de destruição. E também as falhas do governo ao fiscalizar as autorizações que
emite para compra, porte e guarda de armamentos. O caminhoneiro usou armas
legalizadas que mantinha em casa graças a um certificado de Colecionador,
Atirador Desportivo e Caçador (CAC) fornecido pelo Exército. Foram encontradas
no local duas pistolas e duas carabinas. Todo o armamento era legal.
Segundo investigações preliminares, ele não
tinha antecedentes criminais, mas em seu nome consta um boletim de ocorrência
por ameaça. Em seu quarto havia água estocada e grande quantidade de munição.
De acordo com a polícia, ele havia sido internado quatro vezes devido a um
quadro de esquizofrenia.
Fica claro o descontrole na autorização para
os CACs. As condições psiquiátricas não recomendavam que alguém com tal perfil
fosse autorizado a ter armas ou praticar tiro desportivo. Agora, depois do
crime, será apurado como obteve o certificado, concedido em 2020. Os
investigadores afirmam que, na época, apresentou todos os laudos exigidos. Mais
uma demonstração de que a fiscalização é falha. Não será surpresa se existirem
outros casos semelhantes.
O país precisa urgentemente reduzir o arsenal
em poder dos CACs. Entre 2018 e 2022, no governo Jair
Bolsonaro, os registros cresceram 187%. Estima-se que mais de 1
milhão de armas estejam nas mãos de atiradores amadores. É verdade que o
governo Lula suspendeu
a concessão de novos registros e determinou que os atuais passem por
recadastramento. Mas não se pode ignorar que um arsenal poderoso continua em
circulação.
É ingenuidade imaginar que essas armas
estejam bem guardadas e sejam usadas apenas de acordo com a lei. Não são raras
apreensões, com traficantes e milicianos, de armas compradas legalmente por
CACs. Algumas vão parar nas mãos de criminosos depois de roubadas, furtadas ou
extraviadas. Outras são desviadas deliberadamente por bandidos travestidos de
CACs, que se beneficiam do controle frouxo. É uma lástima que o próprio Estado
chancele a compra de armas que abastecem a criminalidade ou se prestam a tragédias
como a de Novo Hamburgo. É preciso dar um basta a essa barbárie.
Polícia falhou ao não se preparar para
confusão com torcedores no Rio
O Globo
Confrontos entre torcidas têm sido frequentes
— e eram previsíveis no jogo entre Botafogo e Peñarol
São lamentáveis as cenas de selvageria
protagonizadas por torcedores do Peñarol no Rio na manhã de quarta-feira, antes
da partida contra o Botafogo pela Copa Libertadores (à noite, o time brasileiro
goleou o uruguaio por 5 a 0). Armados com paus e barras de ferro, eles
enfrentaram policiais, saquearam e depredaram quiosques, incendiaram veículos e
espalharam pânico pela tranquila Praia do Pontal, no Recreio dos
Bandeirantes. A polícia usou bombas de efeito moral para controlar
os baderneiros. Segundo policiais militares, o tumulto começou após a prisão de
um torcedor uruguaio acusado de furtar um celular. Outras versões falam numa
briga com flamenguistas na praia e em discussões em meio a acusações de
racismo.
Certo mesmo é que houve falha grave no
planejamento do policiamento antes da partida, apesar dos alertas. Sabia-se
onde a torcida uruguaia ficaria concentrada. O próprio prefeito do Rio, Eduardo
Paes (PSD), disse ter alertado a PM sobre o risco de tumulto. A prefeitura
relatou ter sido contra a escolha do Recreio para abrigar os torcedores do
Peñarol. “Tentamos mudar de qualquer jeito, oferecemos a área do Parque dos
Atletas. Eles mantiveram ali, com a garantia de que haveria polícia, Choque,
Bope, e nada disso teve”, disse Paes ao
GLOBO.
As falhas foram tão evidentes que o próprio
secretário de Segurança do Rio, Victor Cesar Santos, admitiu o erro.
“Subestimamos aquele efetivo policial que estava ali, achando que ele poderia
agir e conter esses três ônibus parados na orla”, disse. “Lições aprendidas,
para que isso não aconteça novamente.” Louve-se a sinceridade do secretário em
admitir o erro, mas as lições já deveriam ter sido aprendidas há muito tempo.
Confrontos entre torcidas adversárias são
previsíveis. Em setembro, antes da disputa entre Peñarol e Flamengo, houve
briga na Praia da Macumba. Há cerca de um ano, torcedores do Boca Juniors e do
Fluminense se enfrentaram na Praia de Copacabana, dias antes da final da
Libertadores no Maracanã. A polícia precisou intervir com balas de borracha e
spray de pimenta. Também em jogos do Campeonato Brasileiro, os tumultos entre
torcedores adversários infelizmente são corriqueiros. Não deveriam, portanto,
surpreender a polícia.
Depois da chegada de reforços, os policiais
conseguiram controlar a confusão. Mais de 280 torcedores foram levados para a
Cidade da Polícia. Vinte e dois ficaram detidos — e impedidos de assistir ao
jogo. Era o que tinha de ser feito. Os baderneiros precisam responder por seus
atos e pelos prejuízos.
Mas o problema não se encerra aí. Falhas de
planejamento em grandes eventos esportivos são inaceitáveis, especialmente num
país onde o futebol é uma paixão. Nos últimos anos, clubes brasileiros têm sido
protagonistas da Libertadores, portanto confrontos semelhantes podem acontecer
no Rio ou em outras cidades. Enquanto os próprios clubes não forem punidos,
essa será sempre uma situação esperada.
Autonomia é mais vantajosa ao Brasil na briga
entre EUA e China
Valor Econômico
Com o Brics, o Brasil hoje está mais próximo
da China e, politicamente, o governo de Lula não nutre qualquer simpatia pelos
EUA
O comércio sempre foi um meio primordial de
influência dos Estados Unidos no mundo, e, durante décadas, a América Latina
foi considerada um “quintal” para a política e os negócios americanos. A rápida
ascensão da China como potência econômica quebrou esse paradigma em vários
sentidos. Na América do Sul, ela é hoje a maior fornecedora de mercadorias em
nove países da região - Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador,
Paraguai, Peru e Uruguai - e desbancou os Estados Unidos na última década (Valor, 23 de outubro). A
“invasão chinesa” deslocou não só os EUA como o Brasil, que perdeu espaço nas
importações desses países, com exceção do Uruguai, de janeiro a agosto deste
ano em relação a 2023.
A posição dominante de fornecedora de
mercadorias da China traz várias interrogações sobre o destino do novo desenho
geopolítico que terá a disputa política, comercial e tecnológica com os Estados
Unidos. Seja o republicano Donald Trump o eleito como presidente dos Estados
Unidos em 5 de novembro, seja a democrata Kamala Harris, o imenso mercado
norte-americano terá restrição ao comércio com a China, seja num grau radical
ou moderado.
Uma das peças principais da estratégia
norte-americana é o redirecionamento da produção na China para os EUA e países
próximos (nearshoring) ou confiáveis (friendshoring), entre os quais são
possíveis hospedeiros vários latino-americanos, do México até o Brasil. Mas o
comércio exterior desses países depende em grande parte do fornecimento chinês.
Suas posições em relação a um conflito que pode, no limite, levar ao
desacoplamento das duas maiores economias do mundo e à formação de blocos
antagônicos tende a favorecer, considerados os interesses próprios, o não
alinhamento. Mesmo o México, que tem um tratado de livre comércio com os EUA e
o Canadá, tem a China como sua segunda maior fonte de mercadorias, além de
Malásia e Vietnã, que abrigam empresas chinesas e estão entre os dez maiores
países fornecedores.
Pequim, em sua expansão na América Latina,
preparou um pacote completo, incluindo também empréstimos e investimentos,
especialmente em infraestrutura, que lhe poderá propiciar acesso a
matérias-primas e commodities agrícolas essenciais para seu crescimento. Os
EUA, que faziam a mesma coisa, deixaram de dar prioridade à região, enquanto as
empresas norte-americanas deslocaram seus investimentos e planos de expansão em
massa justamente para a China.
Como credor global, a China já empresta hoje
mais dinheiro aos países do que o Banco Mundial e o FMI, e tinha há 5 anos mais
de US$ 380 bilhões em financiamento a países emergentes e em desenvolvimento.
No ambicioso plano Iniciativa do Cinturão e Rota, enlaçou apoio de 21 países da
América Latina e 5 da América do Sul (O Globo, 3.9.2023).
O Brasil não aderiu e se divide sobre a
conveniência de fazê-lo. Além dos empréstimos, os chineses investiram
diretamente muito dinheiro na região (no setor elétrico brasileiro, por
exemplo). Bancos chineses passaram a fazer parte dos mercados domésticos da
região, enquanto instituições dos EUA e da Europa encolheram sua presença.
A conquista de apoio político dependerá em
larga medida das vantagens que os rivais EUA e China oferecerem. As enormes
reservas de minerais estratégicos da região são objeto de cobiça óbvia de
ambos, assim como os recursos de que os países da região carecem para
explorá-los. Mais importante, a relocalização dos investimentos
norte-americanos da China pode trazer para a América do Sul indústrias
importantes, depois que os parques industriais domésticos encolheram, em grande
parte devido à concorrência das importações vindas da China. Com as indústrias
viriam mais empregos, melhores salários, mais exportações e, mais relevante,
transferência de tecnologias de ponta do espectro do mundo digital.
Não só uma nova fronteira econômica separando
China e EUA é difícil de ser traçada, como também o são as linhas do
alinhamento futuro dos países. Ao terem relações tradicionais com os EUA, serem
parceiros comerciais recentes do comércio chinês e possuírem atributos que os
tornam atrativos para os dois polos em disputa, países como o Brasil teriam
como estratégia mais vantajosa a autonomia e a independência em relação a
ambos. Com o Brics, o Brasil hoje está mais próximo da China e, politicamente,
o governo de Lula não nutre qualquer simpatia pelos EUA.
Apesar de ser o maior parceiro comercial do
Brasil, devido às commodities, a China é um poderoso concorrente que tem
avançado no mercado “cativo” regional do Brasil. Em oito países da América do
Sul, a participação brasileira nas importações caiu de 13,2% para 11% de
janeiro a agosto deste ano, enquanto a fatia chinesa avançou de 22,1% para
23,4%. A perda de posição brasileira é mais grave do que os números indicam. As
vendas de manufaturados, com maior valor agregado, perderam espaço nas
exportações brasileiras. Os países vizinhos estão entre os maiores
importadores, e a China penetra cada vez mais nesses mercados. Mais de 90% das
vendas brasileiras para Argentina, Paraguai, Colômbia e Peru são de bens
industriais.
Brics é menos problemático sem a Venezuela
Folha de S. Paulo
Em raro acerto do Itamaraty, Brasil barra
Maduro no grupo, que fortaleceu imagem anti-Ocidente sob China e Rússia
Na tarde desta quinta-feira (23), o Parlamento
Europeu concedeu o prestigioso Prêmio Sakharov pela Liberdade
de Pensamento aos líderes da oposição venezuelana, perseguidos ou exilados pelo
regime autoritário de Nicolás
Maduro.
Ao mesmo tempo, o ditador discursava em
frente a uma audiência de lideranças que, se não era uma Organização das Nações
Unidas, refletia uma fatia significativa do PIB e da
população do planeta. Ela foi reunida em Kazan, na Rússia,
pelo autocrata Vladimir
Putin, o presidente rotativo do Brics neste
ano.
O contraste, adicionado da ironia de a láurea
homenagear o dissidente soviético Andrei Sakharov, remete ao dilema que a
planejada expansão do bloco fundado por Brasil, Rússia, Índia e China em
2006 coloca para seus membros menos poderosos.
De início o acrônimo foi apresentado como uma
plataforma em defesa da governança global, amparada num arcabouço elaborado
pelas potências ocidentais no pós-guerra. As taxas elevadas de crescimento
econômico favoreciam a aproximação dos grandes emergentes na época.
De lá para cá, a era mais próspera ficou para
trás —e a profunda disparidade de intenções e capacidades dos membros impediu
que o grupo fale em ordem unida.
Isso já parecia desenhado na reunião do ano
passado, realizada na África do Sul,
que celebrou a entrada de cinco novos sócios, ainda que um deles, a Arábia
Saudita, não tenha formalizado integralmente sua adesão.
A expansão foi comandada pela ditadura
chinesa, com o apoio da Rússia em guerra, e agendas
particularmente opostas às do Ocidente ganharam protagonismo no
bloco. Não por acaso, o mais vistoso novo integrante era nada menos que a
teocracia do Irã,
ícone do antiamericanismo.
Neste ano, o Brasil participou de um
movimento que visou segurar a sanha
sino-russa. O argumento se amparou numa necessidade prática —é muito
difícil integrar novos países, com toda uma burocracia diplomática de
equalização de terminologias, tratados, consensos.
Subjacente a isso havia a intenção de mitigar
aquilo que o chanceler brasileiro, Mauro Vieira,
chamou de "visão negativa do Brics", ou seja, a imagem de um grupo
formado para enfrentar a ordem mundial vigente.
A solução encontrada para acomodar todos foi
criar uma categoria nova, a de parceiros, países próximos mas sem poder de voto
e veto. Treze nomes acabaram selecionados, e nada garante que todos aceitarão.
Mas uma ausência chamou a atenção.
Foi a da Venezuela,
grande aliada de Pequim e Moscou. Maduro nem viria a Kazan, mas apareceu de
surpresa na tentativa de costurar uma pressão final.
Até aqui, fracassou, num raro
acerto do Itamaraty neste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
—que, devido à infelicidade de um acidente doméstico, também não passou pelo
embaraço de encontrar Putin.
Perda de receita é só um dos danos da guerra
fiscal
Folha de S. Paulo
Pesquisa estima valor bilionário em renúncias
em 2025; prática eleva tributos a outros setores e pode conter crescimento
Os estados vão abrir mão de arrecadar cerca
de R$ 267 bilhões em 2025, segundo
estudo da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco),
entidade sindical dos servidores do setor, divulgado pela Folha. As
renúncias equivaliam a cerca de um quinto das receitas estaduais em 2023,
último ano para o qual há estimativa de carga tributária.
A abdicação desse montante gigantesco é
apenas um dos efeitos nefastos diretos de décadas de guerra fiscal —isto é, as
iniciativas de governos de atrair ou manter empresas por meio da oferta de
descontos de impostos ou de concessões similares. Contam-se vários outros
danos.
Antes de mais nada, tais benefícios a setores
específicos elevam a carga tributária de outras firmas ou pessoas físicas.
Também é possível que o investimento que se pretendia atrair fosse realizado de
qualquer maneira, mesmo sem o favor tributário.
Ademais, a concessão favorece distorções. A
desoneração pode induzir investimentos em setores, empresas ou regiões que não
são os mais produtivos ou resultem em maior retorno total. Pode ser, pois, um
fator de ineficiência e baixo crescimento.
Por fim, a prática induz empresas a fazer
lobby à procura de rendas e ganhos que não sejam oriundos da atividade
econômica, além de incentivar uma negociação que propicia corrupção.
Esse tipo de renúncia deve acabar entre 2029
e 2033, com a
implementação da reforma tributária. Carências regionais de
investimentos podem ser compensadas por um fundo. Está previsto um aumento de
eficiência, embora não se possa dizer que as gestões estaduais venham a ter
expansão de receita equivalente a R$ 267 bilhões.
As estimativas de perda fiscal baseiam-se na
hipótese de que os valores seriam arrecadados se houvesse tributação normal
sobre operações agraciadas por desonerações. Mas a própria cobrança de imposto
provoca mudanças no comportamento do contribuinte e, pois, na receita.
O governo federal, por exemplo, projeta que
deixará de arrecadar quase R$ 544 bilhões em 2025. Contudo não viria a reaver,
sem mais, todos esses recursos caso ocorresse o cancelamento integral desses
gastos tributários.
De qualquer modo, a soma das estimativas de
renúncia federal e estadual passa de R$ 800 bilhões, cerca de 6,6% do PIB previsto
para 2025. Pelo menos há uma ordem de grandeza de privilégios, de injustiças
contra quem custeia os favores, das ineficiências e dos danos às contas
públicas. A guerra fiscal já vai tarde.
O Brics que interessa ao Brasil
O Estado de S. Paulo
Cúpula mostra que há dois Brics: um dedicado
a hostilizar o Ocidente e outro interessado em favorecer os emergentes onde
quer que seja. Brasil, felizmente, parece ter escolhido o segundo
A cúpula do Brics na Rússia expôs as duas
facetas em tensão de um grupo em franca expansão. De um lado, sua faceta
original de uma coalizão de economias emergentes buscando seu lugar ao sol; de
outro, a nova faceta de um clube geopolítico de viés autocrático e
antiocidental liderado por China e Rússia.
O tamanho impressiona. Ao quarteto Brasil,
Rússia, China e Índia idealizado há 25 anos e logo acrescido pela África do
Sul, juntaram-se em 2023 Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes (a Arábia
Saudita ainda não confirmou a adesão). Agora, uma dúzia de países adquiriu o
status de associada e outros 30 estão na fila. Hoje o grupo representa 45% da
população do mundo e 35% do PIB, superando os 30% do G-7. Mas expansão não
implica automaticamente potência e pode até, a depender de seus desdobramentos,
implicar debilidade.
A ampliação pode, em tese, sinalizar a
emergência de uma nova ordem multipolar impulsionada por um movimento de países
emergentes não alinhados, ou o alinhamento desses países em um polo hostil ao
Ocidente. Mas superestimar essas possibilidades no curto prazo seria subestimar
as incoerências do próprio grupo. No próprio Ocidente, há quem tenda à
complacência com um grupo que é mais simbólico que prático e há quem se alarme
com a ameaça de uma ordem pós-ocidental. Em ambos os casos, as novas
configurações do grupo já não permitiram chamá-lo de um “bloco” (“bric”
significa literalmente “tijolo” em inglês), mas ele seria mais como uma sopa de
letrinhas (BRICSIEAUEE+) ou uma massa de manobra sino-russa. São destinos
possíveis, mas ao Brasil não interessa nenhum deles, sobretudo o último.
Como disse Aslı Aydıntasbas, pesquisadora do
think tank americano Brookings Institution, o Brics “não é um bloco coeso, mas
é uma mensagem coesa, sobre o desejo de apresentar uma alternativa à ordem
global”. Ao Brasil interessa preservar o anseio legítimo dessa mensagem por uma
governança global reformada, mais inclusiva e com mais soberania política e
financeira, e, na medida do possível, conferir-lhe efetividade buscando
justamente a coesão que falta ao bloco. Não é um caminho fácil diante da
pressão sino-russa. Mas o País não está sozinho. A Índia, em especial, também
busca uma política de não alinhamento, e as realidades internas e externas ao
bloco oferecem limites às ambições de Pequim e Moscou.
Egito, Emirados Árabes e Arábia Saudita, por
exemplo, são parceiros de segurança dos EUA no Oriente Médio. A superação da
unipolaridade do dólar até seria, idealmente, desejável, mas isso exigiria
instituições confiáveis e alinhamentos multilaterais baseados num Judiciário
independente, transparência e accountability. No caso da alternativa
plausível, o yuan chinês, Pequim precisaria abandonar seus controles de capital
e seu modelo de vigilância estatal, mas essas cartas não estão na mesa.
O Brasil assume a presidência do Brics e
deveria aproveitar a oportunidade para afirmar sua posição de equidistância e
independência. A retomada do processo de adesão à OCDE, o grupo de democracias
ricas, traria ganhos nesse sentido. Mas nesse caso os rancores juvenis do
presidente Lula falam mais alto. No entanto, seu infeliz acidente doméstico foi
um golpe de sorte que poupou a ele e ao País muitos constrangimentos na Rússia
de Vladimir Putin. E num lampejo de racionalidade o governo vetou a adesão da
Venezuela e mostrou interesse na integração da Turquia, que também favoreceria
a ala dos não alinhados. O interesse da China na adesão do Brasil à Rota da
Seda também pode dar alavancagem ao País para promover seus interesses no
Brics. Concretamente, o Brasil, na presidência, poderia trabalhar para que o
grupo ao menos estabeleça critérios de adesão coerentes e transparentes.
Lula já disse que o Brics é “contra ninguém”.
Seu histórico de ações exige que se tomem essas palavras com cautela. Mas a
atuação do Brasil na última cúpula oferece alguma esperança de que as
engrenagens profissionais do Itamaraty estão operando a favor de uma atuação
racional em busca dos interesses do Brasil e pelo bem do próprio Brics.
A tragédia da mortalidade materna
O Estado de S. Paulo
Programa do Ministério da Saúde pretende
reduzir em 25% essa mortalidade até 2027, que hoje é quase o dobro do
estabelecido em compromisso do Brasil com a ONU. Oxalá seja para valer
Um dos compromissos firmados pelo Brasil por
meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU)
é o de reduzir, até 2030, a mortalidade materna para no máximo 30 falecimentos
a cada 100 mil nascidos vivos. Para tanto, é essencial que iniciativas como a
Rede Alyne, programa do Ministério da Saúde que visa a reduzir em 25% a
mortalidade materna até 2027, prosperem. Em 2022, a razão de mortalidade
materna no Brasil foi de 57,7, bastante superior ao referido nos ODS. Entre
mulheres pretas, o índice foi praticamente o dobro, 110,6, uma triste
corroboração de que esta, como muitas outras tragédias brasileiras, tem
profundo recorte racial. Para atacar o problema, a meta do governo para a
redução de mortalidade entre mães pretas até 2027 é necessariamente mais
ousada: 50%. Mais que ambição ao traçar o objetivo, contudo, é preciso que a
iniciativa seja efetivamente executada.
Em 2002, Alyne Pimentel, jovem negra de 28
anos grávida de seis meses, morreu enquanto buscava assistência médica no
município de Belford Roxo (RJ). Vítima de uma série de descasos – entre os
quais mau atendimento, negligência médica e falta de ambulância –, Alyne não
apenas perdeu o bebê que carregava no ventre, como acabou ela mesma falecendo
dias depois, deixando sem mãe uma filha de 5 anos. A morte evitável de Alyne
resultou em uma condenação internacional até então inédita no mundo ao Brasil,
por violação de direitos humanos das mulheres a uma maternidade segura. A
tragédia de Alyne, que agora batiza o programa do governo que visa a enfrentar
as mortes evitáveis de mães, segue repetindo-se Brasil afora, sobretudo entre
mulheres pobres que, por razões históricas, são majoritariamente pretas ou
indígenas.
Enfermidades como a hipertensão, para a qual
medidas simples (e bem menos custosas) como a prevenção são comprovadamente
eficazes, estão entre as principais causas de mortalidade materna no Brasil.
Embora a prevalência de quadros hipertensos seja, por questões genéticas, maior
na população negra, é inadmissível que grávidas morram vítimas de doenças que
podem ser controladas até mesmo sem a necessidade de medicamentos (quando os
casos são leves), se houver acesso à informação e acompanhamento da gestante. Outras
causas de mortes evitáveis de mulheres grávidas são hemorragias e infecções,
eventos cuja letalidade também é sensivelmente reduzida quando há
acompanhamento. O pré-natal, atenção específica que vai do momento da
confirmação da gravidez até a hora do parto, é fundamental para a detecção e
tratamento de doenças maternas ou fetais. É o básico, e o básico salva vidas.
Como mulheres pretas seguem morrendo
desproporcionalmente durante a gestação, é elogiável, então, que o Ministério
da Saúde tenha reestruturado o programa de atenção materna na rede pública,
antes conhecido por Cegonha, e agora rebatizado como Alyne. Contudo, é preciso
mais que uma iniciativa bem-intencionada para que a gravíssima questão da
mortalidade materna seja resolvida. No lançamento do programa, no mês passado,
o Ministério da Saúde prometeu mais recursos e integração da rede de saúde
pública para que gestantes não tenham mais de peregrinar em busca de
assistência médica. De acordo com a pasta, haverá um novo financiamento, com
custeio mensal de R$ 50,5 mil, para ambulâncias destinadas à transferência de
gestantes e recém-nascidos em estado grave.
Há ainda a promessa de “distribuição mais
equitativa dos recursos para reduzir desigualdades regionais e raciais”. Os
investimentos no programa como um todo devem chegar a R$ 1 bilhão em 2025 –
neste ano, serão de R$ 400 milhões.
Todas essas medidas parecem extremamente
razoáveis e, se implementadas, podem sim contribuir para que o Brasil deixe de
matar suas grávidas, mulheres que muitas vezes deixam recém-nascidos e filhos
mais velhos sem mãe. Mas, por mais bem desenhado que o programa seja, o
histórico do Brasil de não avançar com políticas públicas fundamentais é farto.
Tomara que desta vez seja diferente.
Cultura para a companheirada
O Estado de S. Paulo
Para o governo Lula, fomento às artes é ação
entre amigos, não uma política pública
A revelação feita por este jornal de que o
Ministério da Cultura (MinC) tem usado o Programa Nacional dos Comitês de
Cultura (PNCC) para favorecer ONGs ligadas a assessores da pasta e apoiadores
do PT na distribuição de quase R$ 60 milhões em recursos públicos pode ser
tudo, menos surpresa. Afinal, aí estão outros quatro mandatos presidenciais
lulopetistas a demonstrar que, para os companheiros, fomento à cultura é
sinônimo de “ação entre amigos”, uma espécie de retribuição a determinados
artistas e produtores culturais por seu engajamento ideológico ao governo
camarada.
Porém, mesmo surpreendendo rigorosamente
ninguém, não deixa de ser escandalosa essa desabrida manipulação de uma
política pública para privilegiar certos indivíduos e grupos a partir de seu
grau de afinidade com o governo. Ou, o que é ainda pior, por sua eventual
proximidade com as autoridades certas.
O PNCC foi instituído em setembro de 2023
pela ministra Margareth Menezes. Há 27 comitês de cultura no País, um para cada
Estado e para o Distrito Federal (DF). No DF, um dos primeiros entes
contemplados pelo programa, venceu a Associação Artística Mapati, cujo
vice-presidente era Yuri Soares Franco, secretário de Cultura do PT-DF. Pouco
tempo após a posse do presidente Lula da Silva, Franco ingressou no governo
federal como assessor da Secretaria Executiva do MinC, cargo que ocupa até
hoje. Até o momento, a ONG da qual o assessor era um dos diretores já recebeu
R$ 486 mil de um total de R$ 2 milhões em verbas da pasta a serem repassados
até setembro do ano que vem.
Outro caso ainda mais estarrecedor envolve o
comitê de cultura do Paraná. Lá, além da suspeita de favorecimento financeiro
da ONG Soylocoporti, dirigida pelo petista João Paulo Mehl, houve uma desabrida
desvirtuação do lançamento do PNCC, transformado em plataforma
político-eleitoral para lançamento da pré-candidatura de Mehl à vereança de
Curitiba pelo PT. Além do apoio da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, Mehl
contou com Margareth Menezes em pessoa no evento institucional, transformado em
comício.
Já em Mato Grosso, a ONG selecionada para
dirigir o comitê de cultura estadual, um certo Instituto Mato-Grossense de
Desenvolvimento Humano, está em nome de Plínio Marques, réu por suspeita de
nada menos que peculato e organização criminosa para fraudar, ora vejam,
contratos na área cultural. O MinC sustenta que “todas as instituições
beneficiadas obedeceram a critérios técnicos”. Por uma incrível coincidência,
calharam de ter ligações com o PT e com o Ministério da Cultura.
É questionável se o governo deveria se
imiscuir na produção de cultura, que, por óbvio, é viva como é porque floresce
espontaneamente no seio da sociedade. Mas, havendo fomento público à cultura,
que a política seja orientada por critérios republicanos, não pelo interesse do
governo.
Se a cultura deve ser um meio de expressão
plural, abrangendo as múltiplas vozes e manifestações da sociedade, o que se vê
na distribuição de verbas por meio do PNCC é o exato oposto.
Aumenta a violência contra médicos no Brasil
Correio Braziliense
Apenas no ano passado, foram contabilizados
11 boletins de ocorrência por dia no país por conta de situações de violência
contra médicos no local onde atuam. A média é de um incidente a cada duas horas
A violência, presente em espaços públicos e
privados, afeta cada vez mais uma categoria até então considerada inabalável
pela função que desempenha: a dos médicos. Um levantamento divulgado, nesta
semana, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) tomou por base a quantidade de
boletins de ocorrência (BOs) registrados nas delegacias de Polícia Civil dos
estados brasileiros e do Distrito Federal entre 2013 e 2024. Os dados mostram
que o volume de queixas dessa prática vem aumentando ano após ano.
Desde 2013, foram contabilizados 38.074
boletins de ocorrência em que médicos foram vítimas de ameaça, injúria,
desacato, lesão corporal, difamação, entre outros crimes, em unidades de saúde,
hospitais, consultórios, clínicas, prontos-socorros, laboratórios e outros
espaços semelhantes. Há, inclusive, casos de mortes suspeitas de médicos dentro
de estabelecimentos de saúde. Há um certo equilíbrio no quesito gênero, sendo
que 47% dos registros foram contra mulheres. A média de idade dos médicos que
sofrem algum tipo de violência nos estabelecimentos de saúde é de 42
anos.
Enquanto em 2013 foram registrados pouco mais
de 2,6 mil BOs em que um profissional da categoria sofreu algum tipo de
violência durante o trabalho, seja num ambiente hospitalar público ou privado,
esse número subiu para 3,9 mil casos em 2023, o que significa dizer que, em
média, apenas no ano passado, foram contabilizados 11 boletins de ocorrência
por dia no país por conta de situações de violência contra médicos no local
onde atuam. A média é de um incidente a cada duas horas.
Em termos de localização, a distribuição de
ocorrências entre cidades (sem considerar região metropolitana) mostra que 66%
dos casos ocorreram no interior. São Paulo lidera o ranking das unidades da
Federação, com 18.406 casos, seguido pelo Paraná (3.935), Minas Gerais (3.617),
Rio de Janeiro (1.589), Santa Catarina (1.542), Pernambuco (1.340) e Distrito
Federal (1.270). Entre as unidades da Federação com menores números de
ocorrências, estão Tocantins (117), Paraíba (68) e Maranhão (5).
Há de se ressaltar que parte dos
estados que apresentaram o menor número de ocorrências contra a categoria têm
também a menor densidade de médicos do país. Por exemplo: Acre, que aparece com
registro nulo de ocorrências, assim como o Rio Grande do Norte, tem menos de
dois médicos por 1 mil habitantes: 1,41. O Maranhão, 1,22.
O CFM recomenda que o profissional não fique
calado e denuncie os abusos. Também exige que providências urgentes contra a
violência sejam tomadas, desde a preservação da segurança física desses
profissionais, especialmente nas instalações das instituições da rede pública
(onde ocorre o maior número de registros), quanto à garantia de condições de
trabalho para que a categoria possa exercer a atividade médica, e o acesso dos
pacientes a um direito fundamental, que é a saúde. Abordar o problema em ações
educativas que envolvam os profissionais de saúde, pacientes e acompanhantes
também é um caminho a ser considerado.
Mais um dos tantos crimes envolvendo os violentos CACs, que obtiveram armas legalmente durante o DESgoverno Bolsonaro e então multiplicaram seu número no país. As vítimas e seus familiares podem agradecer a JAIR BOLSONARO e seus milicianos armamentistas por este surto de crimes envolvendo os CACs ou com armas deles.
ResponderExcluirA verdade é essa. Nua e crua.
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