sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Tragédia de Novo Hamburgo expõe leniência com CACs

O Globo

Atirador que matou pai, irmão e dois policiais mantinha em casa arsenal obtido legalmente como colecionador

Na noite de terça-feira em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), um caminhoneiro de 45 anos, depois de manter a própria família como refém, matou a tiros na hora o pai, o irmão e um policial militar. Outro PM morreu no hospital. Feriu ainda a mãe, a cunhada e outras seis vítimas. Segundo a Polícia Civil gaúcha, o atirador foi encontrado sem vida dentro de casa depois de confronto com o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). Cinco baleados — entre eles dois policiais militares e um guarda municipal — permaneciam ontem internados.

A motivação do crime ainda é investigada. Pelo que se sabe, o atirador abriu fogo contra os parentes e policiais depois de ser denunciado pelo pai por maus-tratos. Todas as tentativas de negociação foram frustradas, e ele ainda derrubou dois drones usados pela polícia durante o cerco, que durou mais de nove horas.

O massacre expõe de forma contundente o equívoco de permitir que cidadãos mantenham em casa arsenais com grande poder de destruição. E também as falhas do governo ao fiscalizar as autorizações que emite para compra, porte e guarda de armamentos. O caminhoneiro usou armas legalizadas que mantinha em casa graças a um certificado de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC) fornecido pelo Exército. Foram encontradas no local duas pistolas e duas carabinas. Todo o armamento era legal.

Segundo investigações preliminares, ele não tinha antecedentes criminais, mas em seu nome consta um boletim de ocorrência por ameaça. Em seu quarto havia água estocada e grande quantidade de munição. De acordo com a polícia, ele havia sido internado quatro vezes devido a um quadro de esquizofrenia.

Fica claro o descontrole na autorização para os CACs. As condições psiquiátricas não recomendavam que alguém com tal perfil fosse autorizado a ter armas ou praticar tiro desportivo. Agora, depois do crime, será apurado como obteve o certificado, concedido em 2020. Os investigadores afirmam que, na época, apresentou todos os laudos exigidos. Mais uma demonstração de que a fiscalização é falha. Não será surpresa se existirem outros casos semelhantes.

O país precisa urgentemente reduzir o arsenal em poder dos CACs. Entre 2018 e 2022, no governo Jair Bolsonaro, os registros cresceram 187%. Estima-se que mais de 1 milhão de armas estejam nas mãos de atiradores amadores. É verdade que o governo Lula suspendeu a concessão de novos registros e determinou que os atuais passem por recadastramento. Mas não se pode ignorar que um arsenal poderoso continua em circulação.

É ingenuidade imaginar que essas armas estejam bem guardadas e sejam usadas apenas de acordo com a lei. Não são raras apreensões, com traficantes e milicianos, de armas compradas legalmente por CACs. Algumas vão parar nas mãos de criminosos depois de roubadas, furtadas ou extraviadas. Outras são desviadas deliberadamente por bandidos travestidos de CACs, que se beneficiam do controle frouxo. É uma lástima que o próprio Estado chancele a compra de armas que abastecem a criminalidade ou se prestam a tragédias como a de Novo Hamburgo. É preciso dar um basta a essa barbárie.

Polícia falhou ao não se preparar para confusão com torcedores no Rio

O Globo

Confrontos entre torcidas têm sido frequentes — e eram previsíveis no jogo entre Botafogo e Peñarol

São lamentáveis as cenas de selvageria protagonizadas por torcedores do Peñarol no Rio na manhã de quarta-feira, antes da partida contra o Botafogo pela Copa Libertadores (à noite, o time brasileiro goleou o uruguaio por 5 a 0). Armados com paus e barras de ferro, eles enfrentaram policiais, saquearam e depredaram quiosques, incendiaram veículos e espalharam pânico pela tranquila Praia do Pontal, no Recreio dos Bandeirantes. A polícia usou bombas de efeito moral para controlar os baderneiros. Segundo policiais militares, o tumulto começou após a prisão de um torcedor uruguaio acusado de furtar um celular. Outras versões falam numa briga com flamenguistas na praia e em discussões em meio a acusações de racismo.

Certo mesmo é que houve falha grave no planejamento do policiamento antes da partida, apesar dos alertas. Sabia-se onde a torcida uruguaia ficaria concentrada. O próprio prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), disse ter alertado a PM sobre o risco de tumulto. A prefeitura relatou ter sido contra a escolha do Recreio para abrigar os torcedores do Peñarol. “Tentamos mudar de qualquer jeito, oferecemos a área do Parque dos Atletas. Eles mantiveram ali, com a garantia de que haveria polícia, Choque, Bope, e nada disso teve”, disse Paes ao GLOBO.

As falhas foram tão evidentes que o próprio secretário de Segurança do Rio, Victor Cesar Santos, admitiu o erro. “Subestimamos aquele efetivo policial que estava ali, achando que ele poderia agir e conter esses três ônibus parados na orla”, disse. “Lições aprendidas, para que isso não aconteça novamente.” Louve-se a sinceridade do secretário em admitir o erro, mas as lições já deveriam ter sido aprendidas há muito tempo.

Confrontos entre torcidas adversárias são previsíveis. Em setembro, antes da disputa entre Peñarol e Flamengo, houve briga na Praia da Macumba. Há cerca de um ano, torcedores do Boca Juniors e do Fluminense se enfrentaram na Praia de Copacabana, dias antes da final da Libertadores no Maracanã. A polícia precisou intervir com balas de borracha e spray de pimenta. Também em jogos do Campeonato Brasileiro, os tumultos entre torcedores adversários infelizmente são corriqueiros. Não deveriam, portanto, surpreender a polícia.

Depois da chegada de reforços, os policiais conseguiram controlar a confusão. Mais de 280 torcedores foram levados para a Cidade da Polícia. Vinte e dois ficaram detidos — e impedidos de assistir ao jogo. Era o que tinha de ser feito. Os baderneiros precisam responder por seus atos e pelos prejuízos.

Mas o problema não se encerra aí. Falhas de planejamento em grandes eventos esportivos são inaceitáveis, especialmente num país onde o futebol é uma paixão. Nos últimos anos, clubes brasileiros têm sido protagonistas da Libertadores, portanto confrontos semelhantes podem acontecer no Rio ou em outras cidades. Enquanto os próprios clubes não forem punidos, essa será sempre uma situação esperada.

Autonomia é mais vantajosa ao Brasil na briga entre EUA e China

Valor Econômico

Com o Brics, o Brasil hoje está mais próximo da China e, politicamente, o governo de Lula não nutre qualquer simpatia pelos EUA

O comércio sempre foi um meio primordial de influência dos Estados Unidos no mundo, e, durante décadas, a América Latina foi considerada um “quintal” para a política e os negócios americanos. A rápida ascensão da China como potência econômica quebrou esse paradigma em vários sentidos. Na América do Sul, ela é hoje a maior fornecedora de mercadorias em nove países da região - Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai - e desbancou os Estados Unidos na última década (Valor, 23 de outubro). A “invasão chinesa” deslocou não só os EUA como o Brasil, que perdeu espaço nas importações desses países, com exceção do Uruguai, de janeiro a agosto deste ano em relação a 2023.

A posição dominante de fornecedora de mercadorias da China traz várias interrogações sobre o destino do novo desenho geopolítico que terá a disputa política, comercial e tecnológica com os Estados Unidos. Seja o republicano Donald Trump o eleito como presidente dos Estados Unidos em 5 de novembro, seja a democrata Kamala Harris, o imenso mercado norte-americano terá restrição ao comércio com a China, seja num grau radical ou moderado.

Uma das peças principais da estratégia norte-americana é o redirecionamento da produção na China para os EUA e países próximos (nearshoring) ou confiáveis (friendshoring), entre os quais são possíveis hospedeiros vários latino-americanos, do México até o Brasil. Mas o comércio exterior desses países depende em grande parte do fornecimento chinês. Suas posições em relação a um conflito que pode, no limite, levar ao desacoplamento das duas maiores economias do mundo e à formação de blocos antagônicos tende a favorecer, considerados os interesses próprios, o não alinhamento. Mesmo o México, que tem um tratado de livre comércio com os EUA e o Canadá, tem a China como sua segunda maior fonte de mercadorias, além de Malásia e Vietnã, que abrigam empresas chinesas e estão entre os dez maiores países fornecedores.

Pequim, em sua expansão na América Latina, preparou um pacote completo, incluindo também empréstimos e investimentos, especialmente em infraestrutura, que lhe poderá propiciar acesso a matérias-primas e commodities agrícolas essenciais para seu crescimento. Os EUA, que faziam a mesma coisa, deixaram de dar prioridade à região, enquanto as empresas norte-americanas deslocaram seus investimentos e planos de expansão em massa justamente para a China.

Como credor global, a China já empresta hoje mais dinheiro aos países do que o Banco Mundial e o FMI, e tinha há 5 anos mais de US$ 380 bilhões em financiamento a países emergentes e em desenvolvimento. No ambicioso plano Iniciativa do Cinturão e Rota, enlaçou apoio de 21 países da América Latina e 5 da América do Sul (O Globo, 3.9.2023).

O Brasil não aderiu e se divide sobre a conveniência de fazê-lo. Além dos empréstimos, os chineses investiram diretamente muito dinheiro na região (no setor elétrico brasileiro, por exemplo). Bancos chineses passaram a fazer parte dos mercados domésticos da região, enquanto instituições dos EUA e da Europa encolheram sua presença.

A conquista de apoio político dependerá em larga medida das vantagens que os rivais EUA e China oferecerem. As enormes reservas de minerais estratégicos da região são objeto de cobiça óbvia de ambos, assim como os recursos de que os países da região carecem para explorá-los. Mais importante, a relocalização dos investimentos norte-americanos da China pode trazer para a América do Sul indústrias importantes, depois que os parques industriais domésticos encolheram, em grande parte devido à concorrência das importações vindas da China. Com as indústrias viriam mais empregos, melhores salários, mais exportações e, mais relevante, transferência de tecnologias de ponta do espectro do mundo digital.

Não só uma nova fronteira econômica separando China e EUA é difícil de ser traçada, como também o são as linhas do alinhamento futuro dos países. Ao terem relações tradicionais com os EUA, serem parceiros comerciais recentes do comércio chinês e possuírem atributos que os tornam atrativos para os dois polos em disputa, países como o Brasil teriam como estratégia mais vantajosa a autonomia e a independência em relação a ambos. Com o Brics, o Brasil hoje está mais próximo da China e, politicamente, o governo de Lula não nutre qualquer simpatia pelos EUA.

Apesar de ser o maior parceiro comercial do Brasil, devido às commodities, a China é um poderoso concorrente que tem avançado no mercado “cativo” regional do Brasil. Em oito países da América do Sul, a participação brasileira nas importações caiu de 13,2% para 11% de janeiro a agosto deste ano, enquanto a fatia chinesa avançou de 22,1% para 23,4%. A perda de posição brasileira é mais grave do que os números indicam. As vendas de manufaturados, com maior valor agregado, perderam espaço nas exportações brasileiras. Os países vizinhos estão entre os maiores importadores, e a China penetra cada vez mais nesses mercados. Mais de 90% das vendas brasileiras para Argentina, Paraguai, Colômbia e Peru são de bens industriais.

Brics é menos problemático sem a Venezuela

Folha de S. Paulo

Em raro acerto do Itamaraty, Brasil barra Maduro no grupo, que fortaleceu imagem anti-Ocidente sob China e Rússia

Na tarde desta quinta-feira (23), o Parlamento Europeu concedeu o prestigioso Prêmio Sakharov pela Liberdade de Pensamento aos líderes da oposição venezuelana, perseguidos ou exilados pelo regime autoritário de Nicolás Maduro.

Ao mesmo tempo, o ditador discursava em frente a uma audiência de lideranças que, se não era uma Organização das Nações Unidas, refletia uma fatia significativa do PIB e da população do planeta. Ela foi reunida em Kazan, na Rússia, pelo autocrata Vladimir Putin, o presidente rotativo do Brics neste ano.

O contraste, adicionado da ironia de a láurea homenagear o dissidente soviético Andrei Sakharov, remete ao dilema que a planejada expansão do bloco fundado por Brasil, Rússia, Índia e China em 2006 coloca para seus membros menos poderosos.

De início o acrônimo foi apresentado como uma plataforma em defesa da governança global, amparada num arcabouço elaborado pelas potências ocidentais no pós-guerra. As taxas elevadas de crescimento econômico favoreciam a aproximação dos grandes emergentes na época.

De lá para cá, a era mais próspera ficou para trás —e a profunda disparidade de intenções e capacidades dos membros impediu que o grupo fale em ordem unida.

Isso já parecia desenhado na reunião do ano passado, realizada na África do Sul, que celebrou a entrada de cinco novos sócios, ainda que um deles, a Arábia Saudita, não tenha formalizado integralmente sua adesão.

A expansão foi comandada pela ditadura chinesa, com o apoio da Rússia em guerra, e agendas particularmente opostas às do Ocidente ganharam protagonismo no bloco. Não por acaso, o mais vistoso novo integrante era nada menos que a teocracia do Irã, ícone do antiamericanismo.

Neste ano, o Brasil participou de um movimento que visou segurar a sanha sino-russa. O argumento se amparou numa necessidade prática —é muito difícil integrar novos países, com toda uma burocracia diplomática de equalização de terminologias, tratados, consensos.

Subjacente a isso havia a intenção de mitigar aquilo que o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, chamou de "visão negativa do Brics", ou seja, a imagem de um grupo formado para enfrentar a ordem mundial vigente.

A solução encontrada para acomodar todos foi criar uma categoria nova, a de parceiros, países próximos mas sem poder de voto e veto. Treze nomes acabaram selecionados, e nada garante que todos aceitarão. Mas uma ausência chamou a atenção.

Foi a da Venezuela, grande aliada de Pequim e Moscou. Maduro nem viria a Kazan, mas apareceu de surpresa na tentativa de costurar uma pressão final.

Até aqui, fracassou, num raro acerto do Itamaraty neste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —que, devido à infelicidade de um acidente doméstico, também não passou pelo embaraço de encontrar Putin.

Perda de receita é só um dos danos da guerra fiscal

Folha de S. Paulo

Pesquisa estima valor bilionário em renúncias em 2025; prática eleva tributos a outros setores e pode conter crescimento

Os estados vão abrir mão de arrecadar cerca de R$ 267 bilhões em 2025, segundo estudo da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), entidade sindical dos servidores do setor, divulgado pela Folha. As renúncias equivaliam a cerca de um quinto das receitas estaduais em 2023, último ano para o qual há estimativa de carga tributária.

A abdicação desse montante gigantesco é apenas um dos efeitos nefastos diretos de décadas de guerra fiscal —isto é, as iniciativas de governos de atrair ou manter empresas por meio da oferta de descontos de impostos ou de concessões similares. Contam-se vários outros danos.

Antes de mais nada, tais benefícios a setores específicos elevam a carga tributária de outras firmas ou pessoas físicas. Também é possível que o investimento que se pretendia atrair fosse realizado de qualquer maneira, mesmo sem o favor tributário.

Ademais, a concessão favorece distorções. A desoneração pode induzir investimentos em setores, empresas ou regiões que não são os mais produtivos ou resultem em maior retorno total. Pode ser, pois, um fator de ineficiência e baixo crescimento.

Por fim, a prática induz empresas a fazer lobby à procura de rendas e ganhos que não sejam oriundos da atividade econômica, além de incentivar uma negociação que propicia corrupção.

Esse tipo de renúncia deve acabar entre 2029 e 2033, com a implementação da reforma tributária. Carências regionais de investimentos podem ser compensadas por um fundo. Está previsto um aumento de eficiência, embora não se possa dizer que as gestões estaduais venham a ter expansão de receita equivalente a R$ 267 bilhões.

As estimativas de perda fiscal baseiam-se na hipótese de que os valores seriam arrecadados se houvesse tributação normal sobre operações agraciadas por desonerações. Mas a própria cobrança de imposto provoca mudanças no comportamento do contribuinte e, pois, na receita.

O governo federal, por exemplo, projeta que deixará de arrecadar quase R$ 544 bilhões em 2025. Contudo não viria a reaver, sem mais, todos esses recursos caso ocorresse o cancelamento integral desses gastos tributários.

De qualquer modo, a soma das estimativas de renúncia federal e estadual passa de R$ 800 bilhões, cerca de 6,6% do PIB previsto para 2025. Pelo menos há uma ordem de grandeza de privilégios, de injustiças contra quem custeia os favores, das ineficiências e dos danos às contas públicas. A guerra fiscal já vai tarde.

O Brics que interessa ao Brasil

O Estado de S. Paulo

Cúpula mostra que há dois Brics: um dedicado a hostilizar o Ocidente e outro interessado em favorecer os emergentes onde quer que seja. Brasil, felizmente, parece ter escolhido o segundo

A cúpula do Brics na Rússia expôs as duas facetas em tensão de um grupo em franca expansão. De um lado, sua faceta original de uma coalizão de economias emergentes buscando seu lugar ao sol; de outro, a nova faceta de um clube geopolítico de viés autocrático e antiocidental liderado por China e Rússia.

O tamanho impressiona. Ao quarteto Brasil, Rússia, China e Índia idealizado há 25 anos e logo acrescido pela África do Sul, juntaram-se em 2023 Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes (a Arábia Saudita ainda não confirmou a adesão). Agora, uma dúzia de países adquiriu o status de associada e outros 30 estão na fila. Hoje o grupo representa 45% da população do mundo e 35% do PIB, superando os 30% do G-7. Mas expansão não implica automaticamente potência e pode até, a depender de seus desdobramentos, implicar debilidade.

A ampliação pode, em tese, sinalizar a emergência de uma nova ordem multipolar impulsionada por um movimento de países emergentes não alinhados, ou o alinhamento desses países em um polo hostil ao Ocidente. Mas superestimar essas possibilidades no curto prazo seria subestimar as incoerências do próprio grupo. No próprio Ocidente, há quem tenda à complacência com um grupo que é mais simbólico que prático e há quem se alarme com a ameaça de uma ordem pós-ocidental. Em ambos os casos, as novas configurações do grupo já não permitiram chamá-lo de um “bloco” (“bric” significa literalmente “tijolo” em inglês), mas ele seria mais como uma sopa de letrinhas (BRICSIEAUEE+) ou uma massa de manobra sino-russa. São destinos possíveis, mas ao Brasil não interessa nenhum deles, sobretudo o último.

Como disse Aslı Aydıntasbas, pesquisadora do think tank americano Brookings Institution, o Brics “não é um bloco coeso, mas é uma mensagem coesa, sobre o desejo de apresentar uma alternativa à ordem global”. Ao Brasil interessa preservar o anseio legítimo dessa mensagem por uma governança global reformada, mais inclusiva e com mais soberania política e financeira, e, na medida do possível, conferir-lhe efetividade buscando justamente a coesão que falta ao bloco. Não é um caminho fácil diante da pressão sino-russa. Mas o País não está sozinho. A Índia, em especial, também busca uma política de não alinhamento, e as realidades internas e externas ao bloco oferecem limites às ambições de Pequim e Moscou.

Egito, Emirados Árabes e Arábia Saudita, por exemplo, são parceiros de segurança dos EUA no Oriente Médio. A superação da unipolaridade do dólar até seria, idealmente, desejável, mas isso exigiria instituições confiáveis e alinhamentos multilaterais baseados num Judiciário independente, transparência e accountability. No caso da alternativa plausível, o yuan chinês, Pequim precisaria abandonar seus controles de capital e seu modelo de vigilância estatal, mas essas cartas não estão na mesa.

O Brasil assume a presidência do Brics e deveria aproveitar a oportunidade para afirmar sua posição de equidistância e independência. A retomada do processo de adesão à OCDE, o grupo de democracias ricas, traria ganhos nesse sentido. Mas nesse caso os rancores juvenis do presidente Lula falam mais alto. No entanto, seu infeliz acidente doméstico foi um golpe de sorte que poupou a ele e ao País muitos constrangimentos na Rússia de Vladimir Putin. E num lampejo de racionalidade o governo vetou a adesão da Venezuela e mostrou interesse na integração da Turquia, que também favoreceria a ala dos não alinhados. O interesse da China na adesão do Brasil à Rota da Seda também pode dar alavancagem ao País para promover seus interesses no Brics. Concretamente, o Brasil, na presidência, poderia trabalhar para que o grupo ao menos estabeleça critérios de adesão coerentes e transparentes.

Lula já disse que o Brics é “contra ninguém”. Seu histórico de ações exige que se tomem essas palavras com cautela. Mas a atuação do Brasil na última cúpula oferece alguma esperança de que as engrenagens profissionais do Itamaraty estão operando a favor de uma atuação racional em busca dos interesses do Brasil e pelo bem do próprio Brics.

A tragédia da mortalidade materna

O Estado de S. Paulo

Programa do Ministério da Saúde pretende reduzir em 25% essa mortalidade até 2027, que hoje é quase o dobro do estabelecido em compromisso do Brasil com a ONU. Oxalá seja para valer

Um dos compromissos firmados pelo Brasil por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU) é o de reduzir, até 2030, a mortalidade materna para no máximo 30 falecimentos a cada 100 mil nascidos vivos. Para tanto, é essencial que iniciativas como a Rede Alyne, programa do Ministério da Saúde que visa a reduzir em 25% a mortalidade materna até 2027, prosperem. Em 2022, a razão de mortalidade materna no Brasil foi de 57,7, bastante superior ao referido nos ODS. Entre mulheres pretas, o índice foi praticamente o dobro, 110,6, uma triste corroboração de que esta, como muitas outras tragédias brasileiras, tem profundo recorte racial. Para atacar o problema, a meta do governo para a redução de mortalidade entre mães pretas até 2027 é necessariamente mais ousada: 50%. Mais que ambição ao traçar o objetivo, contudo, é preciso que a iniciativa seja efetivamente executada.

Em 2002, Alyne Pimentel, jovem negra de 28 anos grávida de seis meses, morreu enquanto buscava assistência médica no município de Belford Roxo (RJ). Vítima de uma série de descasos – entre os quais mau atendimento, negligência médica e falta de ambulância –, Alyne não apenas perdeu o bebê que carregava no ventre, como acabou ela mesma falecendo dias depois, deixando sem mãe uma filha de 5 anos. A morte evitável de Alyne resultou em uma condenação internacional até então inédita no mundo ao Brasil, por violação de direitos humanos das mulheres a uma maternidade segura. A tragédia de Alyne, que agora batiza o programa do governo que visa a enfrentar as mortes evitáveis de mães, segue repetindo-se Brasil afora, sobretudo entre mulheres pobres que, por razões históricas, são majoritariamente pretas ou indígenas.

Enfermidades como a hipertensão, para a qual medidas simples (e bem menos custosas) como a prevenção são comprovadamente eficazes, estão entre as principais causas de mortalidade materna no Brasil. Embora a prevalência de quadros hipertensos seja, por questões genéticas, maior na população negra, é inadmissível que grávidas morram vítimas de doenças que podem ser controladas até mesmo sem a necessidade de medicamentos (quando os casos são leves), se houver acesso à informação e acompanhamento da gestante. Outras causas de mortes evitáveis de mulheres grávidas são hemorragias e infecções, eventos cuja letalidade também é sensivelmente reduzida quando há acompanhamento. O pré-natal, atenção específica que vai do momento da confirmação da gravidez até a hora do parto, é fundamental para a detecção e tratamento de doenças maternas ou fetais. É o básico, e o básico salva vidas.

Como mulheres pretas seguem morrendo desproporcionalmente durante a gestação, é elogiável, então, que o Ministério da Saúde tenha reestruturado o programa de atenção materna na rede pública, antes conhecido por Cegonha, e agora rebatizado como Alyne. Contudo, é preciso mais que uma iniciativa bem-intencionada para que a gravíssima questão da mortalidade materna seja resolvida. No lançamento do programa, no mês passado, o Ministério da Saúde prometeu mais recursos e integração da rede de saúde pública para que gestantes não tenham mais de peregrinar em busca de assistência médica. De acordo com a pasta, haverá um novo financiamento, com custeio mensal de R$ 50,5 mil, para ambulâncias destinadas à transferência de gestantes e recém-nascidos em estado grave.

Há ainda a promessa de “distribuição mais equitativa dos recursos para reduzir desigualdades regionais e raciais”. Os investimentos no programa como um todo devem chegar a R$ 1 bilhão em 2025 – neste ano, serão de R$ 400 milhões.

Todas essas medidas parecem extremamente razoáveis e, se implementadas, podem sim contribuir para que o Brasil deixe de matar suas grávidas, mulheres que muitas vezes deixam recém-nascidos e filhos mais velhos sem mãe. Mas, por mais bem desenhado que o programa seja, o histórico do Brasil de não avançar com políticas públicas fundamentais é farto. Tomara que desta vez seja diferente.

Cultura para a companheirada

O Estado de S. Paulo

Para o governo Lula, fomento às artes é ação entre amigos, não uma política pública

A revelação feita por este jornal de que o Ministério da Cultura (MinC) tem usado o Programa Nacional dos Comitês de Cultura (PNCC) para favorecer ONGs ligadas a assessores da pasta e apoiadores do PT na distribuição de quase R$ 60 milhões em recursos públicos pode ser tudo, menos surpresa. Afinal, aí estão outros quatro mandatos presidenciais lulopetistas a demonstrar que, para os companheiros, fomento à cultura é sinônimo de “ação entre amigos”, uma espécie de retribuição a determinados artistas e produtores culturais por seu engajamento ideológico ao governo camarada.

Porém, mesmo surpreendendo rigorosamente ninguém, não deixa de ser escandalosa essa desabrida manipulação de uma política pública para privilegiar certos indivíduos e grupos a partir de seu grau de afinidade com o governo. Ou, o que é ainda pior, por sua eventual proximidade com as autoridades certas.

O PNCC foi instituído em setembro de 2023 pela ministra Margareth Menezes. Há 27 comitês de cultura no País, um para cada Estado e para o Distrito Federal (DF). No DF, um dos primeiros entes contemplados pelo programa, venceu a Associação Artística Mapati, cujo vice-presidente era Yuri Soares Franco, secretário de Cultura do PT-DF. Pouco tempo após a posse do presidente Lula da Silva, Franco ingressou no governo federal como assessor da Secretaria Executiva do MinC, cargo que ocupa até hoje. Até o momento, a ONG da qual o assessor era um dos diretores já recebeu R$ 486 mil de um total de R$ 2 milhões em verbas da pasta a serem repassados até setembro do ano que vem.

Outro caso ainda mais estarrecedor envolve o comitê de cultura do Paraná. Lá, além da suspeita de favorecimento financeiro da ONG Soylocoporti, dirigida pelo petista João Paulo Mehl, houve uma desabrida desvirtuação do lançamento do PNCC, transformado em plataforma político-eleitoral para lançamento da pré-candidatura de Mehl à vereança de Curitiba pelo PT. Além do apoio da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, Mehl contou com Margareth Menezes em pessoa no evento institucional, transformado em comício.

Já em Mato Grosso, a ONG selecionada para dirigir o comitê de cultura estadual, um certo Instituto Mato-Grossense de Desenvolvimento Humano, está em nome de Plínio Marques, réu por suspeita de nada menos que peculato e organização criminosa para fraudar, ora vejam, contratos na área cultural. O MinC sustenta que “todas as instituições beneficiadas obedeceram a critérios técnicos”. Por uma incrível coincidência, calharam de ter ligações com o PT e com o Ministério da Cultura.

É questionável se o governo deveria se imiscuir na produção de cultura, que, por óbvio, é viva como é porque floresce espontaneamente no seio da sociedade. Mas, havendo fomento público à cultura, que a política seja orientada por critérios republicanos, não pelo interesse do governo.

Se a cultura deve ser um meio de expressão plural, abrangendo as múltiplas vozes e manifestações da sociedade, o que se vê na distribuição de verbas por meio do PNCC é o exato oposto.

Aumenta a violência contra médicos no Brasil

Correio Braziliense

Apenas no ano passado, foram contabilizados 11 boletins de ocorrência por dia no país por conta de situações de violência contra médicos no local onde atuam. A média é de um incidente a cada duas horas

A violência, presente em espaços públicos e privados, afeta cada vez mais uma categoria até então considerada inabalável pela função que desempenha: a dos médicos. Um levantamento divulgado, nesta semana, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) tomou por base a quantidade de boletins de ocorrência (BOs) registrados nas delegacias de Polícia Civil dos estados brasileiros e do Distrito Federal entre 2013 e 2024. Os dados mostram que o volume de queixas dessa prática vem aumentando ano após ano.

Desde 2013, foram contabilizados 38.074 boletins de ocorrência em que médicos foram vítimas de ameaça, injúria, desacato, lesão corporal, difamação, entre outros crimes, em unidades de saúde, hospitais, consultórios, clínicas, prontos-socorros, laboratórios e outros espaços semelhantes. Há, inclusive, casos de mortes suspeitas de médicos dentro de estabelecimentos de saúde. Há um certo equilíbrio no quesito gênero, sendo que 47% dos registros foram contra mulheres. A média de idade dos médicos que sofrem algum tipo de violência nos estabelecimentos de saúde é de 42 anos. 

Enquanto em 2013 foram registrados pouco mais de 2,6 mil BOs em que um profissional da categoria sofreu algum tipo de violência durante o trabalho, seja num ambiente hospitalar público ou privado, esse número subiu para 3,9 mil casos em 2023, o que significa dizer que, em média, apenas no ano passado, foram contabilizados 11 boletins de ocorrência por dia no país por conta de situações de violência contra médicos no local onde atuam. A média é de um incidente a cada duas horas.

Em termos de localização, a distribuição de ocorrências entre cidades (sem considerar região metropolitana) mostra que 66% dos casos ocorreram no interior. São Paulo lidera o ranking das unidades da Federação, com 18.406 casos, seguido pelo Paraná (3.935), Minas Gerais (3.617), Rio de Janeiro (1.589), Santa Catarina (1.542), Pernambuco (1.340) e Distrito Federal (1.270). Entre as unidades da Federação com menores números de ocorrências, estão Tocantins (117), Paraíba (68) e Maranhão (5).

 Há de se ressaltar que parte dos estados que apresentaram o menor número de ocorrências contra a categoria têm também a menor densidade de médicos do país. Por exemplo: Acre, que aparece com registro nulo de ocorrências, assim como o Rio Grande do Norte, tem menos de dois médicos por 1 mil habitantes: 1,41. O Maranhão, 1,22.  

O CFM recomenda que o profissional não fique calado e denuncie os abusos. Também exige que providências urgentes contra a violência sejam tomadas, desde a preservação da segurança física desses profissionais, especialmente nas instalações das instituições da rede pública (onde ocorre o maior número de registros), quanto à garantia de condições de trabalho para que a categoria possa exercer a atividade médica, e o acesso dos pacientes a um direito fundamental, que é a saúde. Abordar o problema em ações educativas que envolvam os profissionais de saúde, pacientes e acompanhantes também é um caminho a ser considerado.  

 

 

2 comentários:

  1. Mais um dos tantos crimes envolvendo os violentos CACs, que obtiveram armas legalmente durante o DESgoverno Bolsonaro e então multiplicaram seu número no país. As vítimas e seus familiares podem agradecer a JAIR BOLSONARO e seus milicianos armamentistas por este surto de crimes envolvendo os CACs ou com armas deles.

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  2. A verdade é essa. Nua e crua.

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