quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Senado precisa rejeitar mudança na Lei da Ficha Limpa

O Globo

Projeto aprovado na Câmara abranda a punição para políticos condenados por corrupção e outros crimes

O Senado adiou ontem a votação do Projeto de Lei Complementar que atenua a Lei da Ficha Limpa, aprovado pela Câmara em setembro. Quando voltar à pauta, os senadores deveriam rejeitá-lo. O texto, concebido apenas para beneficiar a classe política, é contrário aos interesses da sociedade e representa um retrocesso institucional.

A Lei da Ficha Limpa foi resultado de uma longa mobilização da sociedade brasileira por maior idoneidade de candidatos a cargos públicos. Depois da coleta de assinaturas ao longo de 14 anos, o Projeto de Lei por iniciativa popular foi aprovado e sancionado em 2010. Com a Lei da Ficha Limpa, se tornaram inelegíveis os condenados por decisão colegiada (segunda instância), na Justiça ou em outras esferas. As regras também tornaram inócua a estratégia de renunciar às vésperas da condenação para escapar de punição. De lá para cá, por mais que tenha demonstrado limites, a lei representou um avanço, com o fim da política como porto seguro para condenados, em particular nos casos de improbidade ou corrupção.

Daí o espanto e a revolta com a tentativa de modificá-la. O texto aprovado na Câmara, que precisa ser barrado pelo Senado, atenua a punição aos condenados. Os deputados não mexeram na pena máxima, que continua a ser de oito anos de inelegibilidade. Mas, ao alterar o início da vigência, na prática a tornaram mais branda.

Desde que foi sancionada, a Lei da Ficha Limpa prevê, para condenados na Justiça, inelegibilidade a partir do final do cumprimento da pena judicial. Quem é condenado por uma década não pode, portanto, concorrer por 18 anos. Pelo projeto aprovado pelos deputados, porém, o prazo passaria a contar do momento da condenação na segunda instância. Com isso, os condenados descontariam dos oito anos de inelegibilidade a pena judicial. Se alguém é condenado a dez anos, já poderia concorrer dois anos antes de terminar de cumpri-la. A mesma lógica vale para cassados pelo Legislativo ou pela Justiça Eleitoral.

A Associação Brasileira de Eleitoralistas, entidade que reúne advogados (incluindo um dos redatores da Ficha Limpa), chamou o projeto de “gravíssimo retrocesso para as normas eleitorais”. No entender do procurador Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, a medida enfraquece o sistema democrático por abrandar “normas voltadas à garantia de sua higidez, mediante o afastamento de personagens que já se mostraram objetivamente indignos de representar o eleitor brasileiro”.

O Congresso já perde credibilidade cada vez que um deputado ou senador cometem crime ou irregularidade, depois exposto à opinião pública. Perderá ainda mais se promover, em benefício próprio, retrocesso em tema tão premente como a criminalidade na política, dando as costas para a sociedade. E minará a própria confiança na democracia. Os deputados cometeram um grave erro ao aprovar as mudanças na Ficha Limpa, mas o Senado tem a chance de recobrar a seriedade ao rejeitar a ideia de apressar a volta dos corruptos e de outros criminosos à vida pública.

Casos contra Google abrem caminho a jurisprudência sobre monopólio digital

O Globo

Governo americano informou que pedirá divisão da empresa, acusada de atentar contra a concorrência

Decisões recentes da Justiça americana anunciam tempos difíceis para as plataformas digitais. O alvo das duas últimas é a Alphabet, empresa dona do Google (mecanismo de busca predominante na internet), do YouTube (maior site de vídeos on-line) e do Android (sistema mais usado em celulares). Os casos terão impacto em todo o universo digital.

Em agosto, o juiz Amit Mehta, de Washington (DC), decidiu que o Google abusa de seu monopólio nas buscas. O Departamento de Justiça informou ontem que, para remediar o abuso, poderá pedir a divisão da empresa. Ao arbitrar a sentença de outro caso em que a Alphabet foi condenada por abuso de monopólio, o juiz James Donato, de San Francisco, determinou a alteração de regras lesivas a desenvolvedores de aplicativos para Android.

No cerne desse processo, aberto pela Epic Games, a Justiça considerou que a Alphabet usa o acesso à loja de aplicativos para impor taxas abusivas aos desenvolvedores e ainda os impede de cobrar dos usuários. Donato determinou que o Google não poderá mais impor restrições aos desenvolvedores na forma de taxas, divisão de lucros ou “acesso a qualquer produto ou serviço do Google”. Também não poderá impedir os desenvolvedores de avisar aos usuários que podem fazer assinaturas fora do Android. Está proibido, ainda, de forçar fabricantes de celulares a instalar o aplicativo Google Play e de determinar seu lugar na tela dos aparelhos. Tampouco poderá impedir que o usuário baixe aplicativos concorrentes.

Antes do julgamento, a Alphabet fechou acordo com outra empresa que fazia acusações semelhantes e com 50 estados americanos que as endossavam. Mas a Epic não desistiu. Com a vitória na Justiça, a partir de 1º de novembro o Android terá de permitir que os desenvolvedores instalem suas próprias lojas nos celulares.

Dona do mecanismo de busca e do sistema operacional, a Alphabet afirmou que recorrerá da decisão. É provável que o caso chegue à Suprema Corte, para onde já foi encaminhado outro processo semelhante, aberto pela Epic contra a Apple (também acusada de impor regras draconianas contra os desenvolvedores na App Store). Naquele caso, decidido em dezembro de 2021, a Epic perdeu, mas o juiz permitiu que passasse a cobrar dos usuários fora da loja da Apple. Ambas as partes recorreram. Ao decidir sobre os recursos, a Suprema Corte deverá estabelecer uma jurisprudência sobre a livre concorrência no mercado digital americano.

No caso de Washington, o Departamento de Justiça tem até novembro para apresentar sua proposta de sanção à Alphabet, e a empresa poderá responder até dezembro. Também é provável que, diante de uma decisão contrária como a cisão, o Google leve o caso à Suprema Corte. Na Europa, vários outros casos acusam as plataformas digitais de violar os princípios da livre concorrência, prejudicando o avanço tecnológico e impedindo que os usuários tenham mais opções de preços e serviços. Como as leis europeias são mais rígidas que as americanas, a derrota por lá é ainda mais provável.

IPCA chega perto do teto, e incerteza fiscal eleva juros

Valor Econômico

O governo deveria se esforçar para cortar gastos e buscar o teto da meta fiscal, não seu piso, mirando um superávit primário de 0,25% do PIB, ou maior, em 2025, como era o plano original

O governo está pagando mais na emissão de títulos para rolar uma dívida que só cresce. Para os vencimentos de maio de 2027, a NTN-B registrou taxa de juros 6,7% acima da inflação (Valor, ontem). Em 2015, quando a presidente Dilma Rousseff já se via às voltas com uma recessão intensa e caminhava para ter os malabarismos fiscais de sua gestão condenados pelo Congresso, o mesmo título exigiu do Tesouro juros de 7,53% mais a variação do IPCA. Apesar de a taxa ser maior então, os juros altos são mais desfavoráveis agora. O governo de Dilma trouxe de volta os déficits fiscais, após uma década de superávits. O governo Lula aprofunda déficits que perduram por uma década, com pausa cheia de truques em 2022, último ano do mandato de Jair Bolsonaro.

Apesar do crescimento da economia, da arrecadação advinda dessa expansão e das medidas para aumentar as receitas da União, os juros de curto prazo vão subir ainda mais. O Comitê de Política Monetária decidiu iniciar um novo ciclo de alta e, no caso dos títulos indexados à inflação, seu custo aumentará duplamente, porque a inflação também está subindo. Ontem, o IPCA de setembro registrou 0,44% e, em 12 meses, de 4,42%, a pouca distância do teto da meta de inflação de 4,5%, que provavelmente será ultrapassada até o fim do ano.

O governo avalia que o déficit público poderá atingir 0,25% do PIB, o piso do novo regime fiscal, excetuando créditos extraordinários de R$ 40,5 bilhões para combater as enchentes no Rio Grande do Sul e o fogo do Sudeste à Amazônia. No entanto, o esforço fiscal se mostrou pequeno e insuficiente para deter um avanço do endividamento de mais de 5 pontos percentuais do PIB em um par de anos, uma trajetória semelhante à que trilhou a desastrosa gestão de Dilma Rousseff. Os gastos obrigatórios estão crescendo muito acima do esperado com o novo regime fiscal e dando à economia um ritmo mais veloz do que a expansão da oferta de bens e serviços.

Um triênio de avanço do PIB na faixa de 3%, que não ocorre há dez anos, deveria ser suficiente para suprir receitas adequadas ao Estado que, além disso, obteve mais recursos com o fechamento de brechas na tributação que favoreciam contribuintes de alta renda. Mas as despesas, pelo regime fiscal, acompanham a evolução das receitas, com um limite (de 0,6% a 2,5%). Elas, porém, têm velocidades diferentes de expansão e fogem a essa restrição. É o que acontece com o principal grupo de despesas, as obrigatórias, que seguem regra de correção diferente - a variação da inflação mais o avanço do PIB de dois anos atrás, como o salário mínimo.

Essa regra e outra, atrelada à receita corrente líquida ou líquida de impostos, que corrige gastos com educação e saúde - duas fontes de gastos relevantes no orçamento - deram impulso forte à economia, que agora, pelo diagnóstico do Banco Central, passou a crescer acima de seu potencial. Foi um estímulo muito relevante.

O Ipea, órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, calculou que os gastos públicos sociais, entre julho de 2023 e junho deste ano, subiram de 11,89% do PIB para 13,1% do PIB, um acréscimo de 1,2% do PIB. Esse volume de recursos adicionais, algo como R$ 130 bilhões em valores correntes, propiciou a surpresa do crescimento do PIB muito acima do previsto no segundo trimestre. Os gastos incluem benefícios previdenciários, os de prestação continuada, Bolsa Família, abono salarial e seguro desemprego e a previdência de funcionários públicos e militares. Quase todos seguem o esquema de correção do mínimo.

Os estímulos ocorreram ao mesmo tempo em que o BC tentava levar a inflação à meta de 3% com uma política de juros contracionista, o que significa alto custo do dinheiro para todos que se endividam, inclusive o maior devedor, o Estado. A inflação, que chegou a se aproximar da meta, hoje está longe dela, pela pressão do setor de serviços, do câmbio e agora, além de tudo, do clima.

O IPCA de setembro mostrou a volta das pressões dos preços dos alimentos, que exibiram deflação nos dois meses anteriores, e da energia, que contribuíram com 0,33 ponto da inflação de 0,44% do mês passado. O aumento dos dois itens pode ser atribuído à seca que afetou vastas regiões do país e para os quais a arma do aumento de juros é inapropriada - são choques de oferta.

Para acomodar esses choques, existe o intervalo da meta de inflação, feito para ser usado. Mas o BC está constrangido a não fazê-lo. Primeiro, porque sua margem de manobra é exígua. O IPCA deve romper o teto da meta e, pelas projeções do Focus, tem pouco espaço para acomodação em 2025 (IPCA de 3,9%). E o próximo presidente do BC, Gabriel Galípolo, não deverá mostrar hesitação diante da inflação, reafirmando sua independência dos interesses do Planalto - algo que, a contar por sua sabatina no Senado, será feito.

A eficácia da política monetária continua restrita pela política fiscal. O governo deveria se esforçar para cortar gastos e buscar o teto da meta fiscal, não seu piso, mirando um superávit primário de 0,25% do PIB, ou maior, em 2025, como era o plano original. Para fazê-lo, é preciso vontade política, até agora não demonstrada pelo presidente Lula.

Emendas parlamentares distorcem competição eleitoral

Folha de S. Paulo

Pleito é impactado por verbas direcionadas pelo Congresso; falta de regras põe em risco arranjo político-institucional

As eleições municipais deste ano, realizadas no último domingo (6), acrescentaram um novo item à longa lista de problemas associados às emendas parlamentares.

Já era sabido que elas consomem volume ultrajante dos investimentos federais, pulverizam recursos em despesas paroquiais, dificultam o planejamento de longo prazo e, até decisão recente do Supremo Tribunal Federal, impediam a necessária fiscalização sobre o dinheiro público.

Agora ficou comprovada mais uma distorção bastante previsível: elas favorecem sobremaneira os prefeitos que mais receberam essas verbas ao longo de seus quatro anos de mandato.

Levantamento da Folha mostrou uma relação direta e crescente entre a quantidade média de recursos por eleitor recebidos por uma cidade e a taxa de reeleição do chefe do Executivo. Ou seja, quanto maior a proporção de emendas parlamentares em um município, maior o índice de recondução do prefeito.

Em localidades onde as emendas somaram menos que R$ 847,90 por eleitor, 78% dos candidatos conseguiram ser reeleitos. Quando o patamar das verbas dobra, a taxa de sucesso dos alcaides passa para 86%, e vai a 92% se o teto inicial é triplicado.

A progressão é evidente, mas nem por isso se torna menos espantoso o último degrau dessa escalada: dos 116 prefeitos que receberam mais verbas via emendas (acima de R$ 2.543,70 por eleitor), nada menos que 114 lograram se manter no cargo —um índice de sucesso de 98%.

Não há como comparar esse desempenho com o de outros pleitos, pois esta foi a primeira vez que a disputa eleitoral municipal transcorreu sob o poder inédito dos congressistas no controle das verbas federais.

A distorção, contudo, salta aos olhos. Implementada no governo Jair Bolsonaro (PL), a nova maneira de distribuir emendas parlamentares resultou em um total superior a R$ 80 bilhões para as cidades brasileiras de 2021 a 2024.

Se fossem recursos bem fiscalizados, fornecidos de modo republicano e aplicados nas necessidades mais prementes da população, alguém poderia defendê-los, a despeito de seu impacto negativo sobre a competição eleitoral.

Mas nada disso acontece. Tome-se o caso de Bituruna (PR), segunda cidade mais beneficiada por emendas. O prefeito Rodrigo Rossoni (PSDB), reeleito com 75% dos votos, recebeu R$ 35 milhões em emendas assinadas pelo deputado federal Valdir Rossoni (PSDB), que vem a ser seu pai.

Em Barra D’Alcântara (PI), o prefeito Mardônio Soares (MDB) concorreu como candidato único. Destinatário de R$ 23 milhões em uma cidade de 3.600 eleitores, ele próprio descreveu o jogo político local como desleal. De acordo com Soares, o dinheiro das emendas serviu para obras de calçamento e reforma de prédios.

Essa farra precisa acabar, antes que ela provoque danos ainda maiores no arranjo político-institucional brasileiro.

Nobel premia inteligência da complexidade

Folha de S. Paulo

Láureas destacam encontro da IA com a arquitetura molecular, iluminando a evolução da vida e impulsionando a medicina

Neste ano, os prêmios Nobel de ciências naturais se concentram na confluência da inteligência artificial com a evolução da vida.

O encontro é mais evidente na láurea de química. David Baker, Demis Hassabis e John Jumper foram agraciados por trabalhos na área de estruturas de proteínas.

Tais moléculas, as engrenagens que movimentam a vida, são compostas de dezenas a milhares de unidades dos 20 aminoácidos básicos organizados em sequências que lhes determinam a estrutura (como se dobram no espaço tridimensional), por sua vez associada às funções que exercem.

Durante cinco décadas biólogos labutaram para relacionar sequências de aminoácidos com a forma final da proteína, com vistas a entender minúcias dos processos celulares e, por consequência, da saúde e da doença. Contudo solucionaram poucos desses enigmas.

Hassabis e Jumper dividem metade do Nobel pelo recurso à inteligência artificial para predizer estruturas. A empresa DeepMind, criada por Hassabis, apresentou em 2018 um programa para isso que usava redes neurais, arquitetura de processamento inspirada no cérebro humano, aperfeiçoado depois com ajuda de Jumper.

Baker leva a outra metade do prêmio por seu trabalho inverso: técnicas computacionais para design de proteínas com formas desejadas. Produziu, em 2003, uma molécula com formato e sequência nunca vistos na natureza, a Top7, e em 2008 mostrou que seu programa Rosetta podia projetar enzimas inovadoras.

Esses avanços não seriam factíveis sem as bases da inteligência artificial lançadas por John Hopfield e Geoffrey Hinton, agora laureados com o Nobel de Física. Eles criaram memórias que podem armazenar e reconstruir imagens e padrões observados em dados, além de métodos autônomos para identificar propriedades em massas de dados ou elementos específicos em imagens.

O Nobel de medicina foi para Victor Ambros e Gary Ruvkun, que pesquisaram um tipo especial de RNA —ácido portador do código genético que células usam para especificar sequências de proteínas. No caso, os micro-RNAs, fragmentos dessas mensagens que participam de modo crucial da regulação gênica.

Trata-se de um processo biológico fundamental, que põe por terra modelos mecanicistas da organização de seres vivos. Sua compreensão progressiva não só lança luz sobre a evolução da vida como serve de alicerce para novos avanços da medicina —cada vez mais com recurso ao poder imenso da inteligência artificial.

O prejuízo do ‘ranço ideológico’ de Lula

O Estado de S. Paulo

A indefensável ideologização da política exterior tem causado grandes danos ao País. Agora, ninguém menos que o ministro da Defesa alerta que ela está prejudicando a própria Defesa nacional

A sujeição do Itamaraty ao sectarismo do presidente Lula da Silva inflige danos à política externa e aos negócios. Mas não só. A Defesa também está prejudicada ante as investidas ideológicas do Planalto.

Quem alerta é ninguém menos que o ministro da Defesa. Em evento na Confederação Nacional da Indústria, José Múcio disse que as Forças Armadas enfrentam retrocessos nos investimentos e adversidades sem precedentes causadas por “ranços ideológicos”. Para bons entendedores, meia palavra basta. Mas, na falta deles, Múcio explicitou os embaraços à sua pasta.

O Exército tem previsão orçamentária e competência para comprar as armas de que precisa e organizou uma licitação para adquirir 36 obuseiros – blindados com canhões. Foram escrutinadas empresas de 18 países e não há surpresa que tenha vencido Israel, um país que é celeiro de algumas tecnologias militares mais avançadas do mundo, há muito utilizadas pelas forças de segurança do Brasil.

“Venceram os judeus, o povo de Israel”, disse Múcio, “mas por questões ideológicas não podemos aprovar.” A compra foi travada pelo chanceler paralelo de Lula, Celso Amorim. O Tribunal de Contas da União, em defesa da segurança jurídica, não autorizou contratar o segundo colocado, advertindo que não existem embargos da ONU ou tratados firmados pelo Brasil que impeçam a comercialização com nações em guerra.

Mas o governo não só fabrica argumentos sem esteio legal para inviabilizar importações das Forças Armadas, como subverte esses argumentos para inviabilizar suas exportações. Após impedir a venda de ambulâncias à Ucrânia, o Planalto vetou a venda de munição à Alemanha. “Fizemos o negócio, um grande negócio”, disse Múcio. “(O governo) não faz porque senão a Alemanha vai mandar para a Ucrânia, a Ucrânia vai usar contra a Rússia e a Rússia vai mexer nos nossos acordos de fertilizantes.” Israel trava uma guerra de defesa, mas o governo não compra suas armas pretextando que é “agressor”. Ao mesmo tempo, não vende para a agredida Ucrânia e abastece os cofres da agressora Rússia.

O governo poderia buscar alternativas aos fertilizantes russos e insumos como o potássio não só mais baratas, mas domésticas. O Brasil tem reservas de potássio na região amazônica, algumas em terras indígenas, outras não. No primeiro caso, a Constituição prevê que o Congresso autorize a exploração. Com os devidos cuidados, ela pode ser feita de maneira sustentável, e ser negociada com as comunidades indígenas não só para não lhes causar danos, mas trazer benefícios. Mas, “por questões ideológicas”, como denunciou Múcio, essas possibilidades são barradas. Ao invés disso, o Brasil enriquece indígenas do Canadá, importando potássio de suas reservas.

Não é só ideologia, mas ignorância, e seu corolário é a incompetência. Há pouco, Lula sugeriu que recrutas não deveriam ser treinados para a guerra, mas para “enfrentar a questão climática”. Conflitos se proliferam no mundo e todas as nações estão se armando. Mas, na lógica pedestre de Lula, como o Brasil não enfrenta guerras, não precisa de soldados, mas de bombeiros. Tudo se passa como se agressões pudessem ser contidas à base de “cervejas” – como Lula sugeriu em relação à Ucrânia – e as Forças Armadas fossem uma ameaça à paz, e não sua garantia, sobretudo diante de ameaças reais num mundo cada vez mais violento. Isso não é idealismo nem pacifismo. É só estupidez.

Ao Brasil, resta agradecer a Deus pelo fato de que os riscos de ser invadido por potências estrangeiras (como a Ucrânia foi pela Rússia) ou agredido por terroristas (como Israel pelo Irã e seus associados) são baixos. Não é só que, a depender de Lula, o País seria defendido por bombeiros armados com sucatas, mas – a julgar pela sua insinuação de que, se o presidente ucraniano fosse “esperto” cederia seus territórios à Rússia, e que Israel deveria baixar as armas mesmo com 100 reféns sob o jugo de terroristas – só Deus sabe quanto do território e dos cidadãos brasileiros seu presidente sacrificaria em nome do que chama de “paz”.

O compromisso de Gabriel Galípolo

O Estado de S. Paulo

Aprovado pelo Senado, o próximo presidente do BC garante que manterá critérios técnicos para os juros – mesma promessa que Tombini fez ao assumir o BC no desastroso governo de Dilma

Pouca gente ainda se lembra, mas em 2010 Alexandre Tombini, indicado pela recém-eleita presidente Dilma Rousseff para a presidência do Banco Central (BC), foi aprovado com louvor em sabatina no Senado. Na ocasião, Tombini prometeu solenemente fazer o que fosse necessário para cumprir as metas de inflação e exercer seu trabalho com autonomia. Passados quase 15 anos, hoje sabemos que Tombini se tornou praticamente um ministro de Dilma, cedendo às pressões da presidente para segurar os juros mesmo diante da escalada da inflação.

Não se quer com isso dizer que Gabriel Galípolo, futuro presidente do Banco Central, terá o mesmo destino, mas é bom desconfiar. Aprovado com folga em sua sabatina no Senado, Galípolo não apenas assegurou que o Banco Central continuará autônomo e independente, especialmente nas decisões sobre a evolução dos juros, como fez questão de dizer que tal imperativo partiu dos próprios senadores.

Ocorre que o presidente da República é Lula da Silva, que a cada dia se parece mais com Dilma Rousseff no que diz respeito ao ímpeto gastador e à ojeriza à austeridade. Crítico feroz da alta dos juros para combater a inflação, Lula não esconde que gostaria de ver o presidente do Banco Central atuando em sintonia com seus projetos desenvolvimentistas. Enquanto Galípolo era sabatinado, o presidente voltou à carga, num evento com ruralistas. Ao se dizer muito feliz pelo fato de que a economia está “razoável”, Lula comentou que “a taxa de juros é alta, mas ela haverá de ceder”. Não é por acaso que a indicação de Galípolo para o BC gerou tantas dúvidas no mercado.

Galípolo é um jovem economista formado na heterodoxia e que até aqui mostrou melhor desenvoltura como político do que como administrador de banco – sua única experiência no mercado, presidindo o Fator por quatro anos, resultou em três anos de prejuízo e apenas um de lucro, e na sua despedida o rating do banco foi rebaixado para grau especulativo. Seu bom trânsito com economistas próximos de Lula e do PT o ajudou a integrar o Ministério da Fazenda de Fernando Haddad. Chegou a ser chamado de “menino de ouro” por Lula.

Tombini, é bom lembrar, era funcionário do BC desde 1998 e teve passagens pelo FMI. Ou seja, definitivamente não era um novato nem um despreparado quando chegou à presidência do BC. Mesmo assim, não resistiu à pressão de Dilma Rousseff para moldar a política monetária a seus delírios econômicos, que resultaram em inflação e recessão. Nada garante, portanto, que Galípolo conseguirá cumprir os compromissos que assumiu solenemente perante os senadores na sabatina.

É fato que, na época de Tombini, o BC não tinha autonomia formal, que hoje é garantida por lei. Mesmo assim, é preciso esperar para saber se Galípolo terá força para exercer essa autonomia, ou mesmo se terá interesse em contrariar o presidente da República, decerto preocupado em criar condições para melhorar suas chances numa eventual campanha à reeleição, o que passaria pela redução forçada dos juros mesmo diante de uma pressão inflacionária, como fez Dilma.

Até aqui, não se sabe se por cálculo ou por convicção, Galípolo tem se comportado de maneira exemplar como diretor de Política Monetária do BC. Com uma única exceção, Galípolo votou com os demais diretores quando o Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu aumentar os juros, a despeito da cara feia de Lula.

Em maio, Galípolo e outros três diretores votaram pelo corte de 0,5 ponto porcentual (p.p.), mas prevaleceu a queda de 0,25 p.p., decidida pelos demais cinco membros do colegiado. Neste ano, ainda sob a presidência de Roberto Campos Neto, haverá mais duas reuniões, em novembro e dezembro. Mais do que a definição dos juros em si, o placar do colegiado será acompanhado como uma espécie de termômetro do que esperar do comando de Galípolo. No entanto, será na presidência efetiva do BC que o “menino de ouro” de Lula terá o dever de provar que suas palavras na sabatina eram mesmo para valer.

De tucano a pássaro dodô

O Estado de S. Paulo

Na capital paulista, o outrora poderoso PSDB conseguiu um feito: não elegeu nenhum vereador

O PSDB, que irrompeu na política nacional no fim dos anos 80 como um vistoso tucano, terminou a eleição municipal de domingo passado como um melancólico pássaro dodô – aquela ave extinta que se tornou sinônimo de coisa absolutamente obsoleta.

Seu candidato à Prefeitura, o apresentador José Luiz Datena, que levou nada menos que R$ 9,5 milhões do Fundo Eleitoral para fazer campanha, terminou a eleição com 1,84% dos votos válidos, ou exatos 112.344 votos, menos do que vários dos vereadores eleitos na cidade. Ficou em quinto lugar. Foi o pior desempenho do PSDB na capital em sua história.

Sem rumo nem identidade, o PSDB acreditou que a suposta popularidade de Datena bastaria para torná-lo competitivo. Ao contrário: ao longo da campanha, Datena, claramente sem qualquer vocação para uma disputa eleitoral e manifestando cansaço com a agenda de compromissos, só conseguiu chamar a atenção do eleitorado pela cadeirada que desferiu em outro candidato durante um debate na TV. O destempero, que não foi condenado pela cúpula do PSDB, certamente colaborou para que Datena sofresse uma esmagadora rejeição, anulando sua suposta capacidade de puxar votos para os candidatos a vereador pelo partido.

Com isso, o PSDB conseguiu a proeza de sair desta eleição sem eleger um mísero vereador na cidade de São Paulo. Foi um desempenho e tanto, sobretudo se considerarmos que o partido havia lançado nada menos que 49 candidatos e que, na disputa anterior, havia conseguido eleger 8 vereadores, tornando-se uma das principais bancadas da Câmara. O candidato a vereador mais votado entre os tucanos no domingo passado foi Mario Covas Neto, filho do ex-governador Mario Covas. Mesmo com um sobrenome tão significativo na história política de São Paulo, Covas Neto conseguiu apenas 5.825 votos.

Mas convém lembrar que o PSDB já entrou na campanha sem nenhum vereador, porque seus oito representantes, que não são bobos nem nada, se recusaram a endossar a aventura com Datena e vários se bandearam para a candidatura do prefeito Ricardo Nunes (MDB), herdeiro da gestão tucana do falecido prefeito Bruno Covas. Desses políticos, havia gente com décadas de filiação ao PSDB. Ou seja, alguns eram parlamentares realmente identificados com o partido, mas que já não se reconheciam nele, por razões óbvias.

Para onde quer que se olhe, o desempenho do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo é o símbolo do desaparecimento do partido em seu berço político. Ao apostar em um candidato a prefeito que nada tinha a apresentar senão seu histrionismo de apresentador de programas policiais na TV, o PSDB, fundado por faróis da democracia como Mario Covas, Franco Montoro e Fernando Henrique Cardoso, portou-se como um partido nanico, incapaz de oferecer ao eleitor uma proposta coerente com sua história. Depois de ter governado a cidade de São Paulo por três vezes nas últimas duas décadas, o PSDB virou motivo de piada. Havia maneiras mais honrosas de morrer.

Inteligência artificial, glórias e desafios

Correio Braziliense

Considerados os pioneiros da inteligência artificial, vencedores do Prêmio Nobel de Física são enfáticos ao alertar sobre os riscos de lidarmos "com coisas mais inteligentes que nós"

Trabalhos premiados com o Nobel de Física costumam ser de difícil entendimento — as complexidades sobre as quais os pesquisadores da área se debruçam levam mesmo a caminhos enigmáticos e promissores. Mas neste ano a Real Academia Sueca de Ciências escolheu estudos pioneiros para o desenvolvimento de soluções acessíveis até mesmo para quem nunca entrou em um laboratório: a inteligência artificial. Tecnologias baseadas em IA chegam cada vez mais às residências, permitindo, por exemplo, que geladeiras façam lista de compras e câmeras de segurança identifiquem comportamentos suspeitos. Nem por isso, esses recursos estão na prateleira da simplicidade. Ao contrário. Os próprios laureados de 2024 são enfáticos ao alertar sobre os riscos de lidarmos "com coisas mais inteligentes que nós".

Geoffrey Hilton, um dos vencedores, pediu demissão do Google em 2023 para poder falar mais livremente sobre os perigos da inteligência artificial. Antes, abandonou um projeto financiado pelo Pentágono por não concordar com o uso dessa tecnologia em guerras, o que chamou de robôs soldados. Na última terça-feira, após o anúncio do Nobel, o hoje professor da Universidade de Toronto disse que a IA tem o poder de causar mudanças tão grandes quanto a Revolução Industrial e não descartou a possibilidade de ela sair do controle. 

John Hopfield, que divide o Nobel 2024 com Hilton, chega a cogitar uma catástrofe caso o uso da IA não seja mediado. Já com o Nobel em mãos, o professor da Universidade de Princeton lembrou do surgimento de outras duas tecnologias também promissoras e perigosas, a engenharia genética e a física nuclear, e admitiu não saber quais limites deveriam ser impostos à inteligência artificial. Ellen Moons, presidente do Comitê Nobel de Física deu um norte ao anunciar os vencedores deste ano: "Podemos escolher utilizar ferramentas com bons fins".

Na prática, porém, é extensa a lista de aplicações dessa tecnologia para objetivos escusos e criminosos. Dois casos recentes no Brasil ilustram bem a dimensão desse desafio. Ao menos uma dezena de candidatas no primeiro turno das eleições municipais de 2024 foi vítima de deep nudes, a divulgação na internet de fotos manipuladas por IA em que pessoas, principalmente mulheres, aparecem em poses sensuais. Operações da Polícia Federal — como a Terabyte, deflagrada no mês passado — têm mostrado o quanto redes internacionais de pedofilia têm recorrido à IA para criar imagens sexualizadas de crianças.

Em ambos os casos, há de se ressaltar que essas inovações tecnológicas são empregadas para a prática de violências que são estruturais no país, o que torna urgente a atualização dos arcabouços de enfrentamento, como as legislações e as estruturas investigativas. O Brasil está atrasado nessa questão.  Existem iniciativas pontuais, como a Estratégia Nacional de Inteligência Artificial e a Lei Geral de Proteção de Dados, mas há a necessidade de uma regulação ampla e que garanta a segurança da população, como tenta fazer a União Europeia.

Em maio, os europeus aprovaram uma legislação abrangente, com aplicação progressiva até 2026, para garantir que o avanço da IA não atropele os direitos fundamentais. Sendo o Brasil um dos países em que há mais confiança nessa tecnologia — ocupa a quarta posição, segundo levantamento da  KPMG Austrália —, passou da hora da adoção de medidas que impeçam que esse entusiasmo se transforme em vulnerabilidade para os crimes cibernéticos. 


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