domingo, 13 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Isenções e subsídios tributários devem ser alvo de revisão

O Globo

Orçamento prevê R$ 544 bilhões em renúncias a impostos sobre atividades variadas, sem controle de eficácia

Dos 2,2 milhões de contribuintes que, na declaração de Imposto de Renda de 2023, se identificaram como sócios de empresas regidas pelo Simples Nacional, uma minoria de 38,4 mil recebeu R$ 46 bilhões em lucros e dividendos isentos de tributação — média de R$ 1,5 milhão por contribuinte —, revelou um estudo do instituto Samambaia.org com base em dados da Receita Federal. Criado para reduzir o peso da carga tributária e facilitar a vida de empresas de menor porte, o Simples se transformou num atalho para a população de alta renda pagar pouco ou nenhum imposto. Cerca de 10% dos sócios de empresas do regime ganharam mais que os R$ 240 mil imaginados pelo governo como patamar para a isenção.

Esta é apenas uma das inúmeras distorções na distribuição de isenções tributárias no país. De acordo com o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2025, a União deixará de arrecadar R$ 543,7 bilhões com benefícios tributários a pessoas jurídicas e físicas, ou R$ 20 bilhões a mais que neste ano. O total equivale a 4,4% do PIB projetado na PLOA ou a 19,7% da arrecadação federal. Se incluídos subsídios creditícios e financeiros, a conta alcança 6% do PIB. Para efeito de comparação, faltam R$ 166 bilhões para atingir a meta de déficit zero em 2025 e manter as contas públicas sob controle, o equivalente a 30,5% dos benefícios tributários.

Apenas o Simples, que lidera a lista, representa 22,2% das renúncias de impostos, com R$ 121 bilhões. A relação ainda inclui isenções ao agronegócio (R$ 83 bilhões), deduções e rendimentos isentos no Imposto de Renda (R$ 92 bilhões), benefícios a entidades sem fim lucrativo (R$ 46 bilhões), Zona Franca de Manaus (R$ 30 bilhões), medicamentos, microempreendedores individuais, informática, setores automotivo, habitacional, de eventos, embarcações e aeronaves, cultura e audiovisual, ensino universitário e várias outras rubricas.

A distribuição dos incentivos revela as prioridades de governos e o trânsito dos grupos de interesse por Brasília. Para o ano que vem, preveem-se R$ 7,7 bilhões à indústria automotiva, mas apenas R$ 345,4 milhões à gestão ambiental, rubrica relacionada ao controle de desmatamento e queimadas. Gerir é, antes de tudo, estabelecer prioridades — e parece evidente que elas estão mal estabelecidas no Orçamento.

A ministra do Planejamento, Simone Tebet, tem defendido mudanças no Simples para aumentar a arrecadação e reconhece “erros e fraudes” noutros incentivos tributários. Ela sugere uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para que, com o tempo, esses benefícios cheguem, de forma escalonada, a 2% do PIB, patamar compatível com países similares ao Brasil.

Não está em questão a necessidade de oferecer apoio a segmentos da economia ou da sociedade por meio de renúncias tributárias. Qualquer país adota políticas do tipo. A discussão relevante tem a ver com a necessidade de mais transparência nessas isenções, de critérios objetivos para definir prioridades e de avaliações constantes de eficácia, para evitar a perpetuação de subsídios sem justificativas. É extensa a lista de projetos e políticas sustentados com dinheiro do contribuinte sem retorno para a sociedade — dos semicondutores brasileiros à extinta Sunamam. É tarefa do Executivo e do Congresso evitar que casos como esses se repitam e zelar por uma política eficaz de subsídios e incentivos tributários.

Eleição na Amazônia reflete desafio de acabar com o desmatamento

O Globo

Cidades com garimpo clandestino e madeireiras ilegais elegeram prefeitos autuados por autoridades ambientais

Não é surpresa que, nos principais centros do agronegócio brasileiro, os eleitores tenham escolhido prefeitos mais comprometidos com a produção que com a questão ambiental. Oito das dez cidades mais ricas em estados como Mato Grosso, Goiás e Bahia elegeram políticos de legendas como União Brasil, PL, Republicanos e PP. O setor agrícola que move a economia brasileira tem buscado representação política, e parece claro que os partidos de esquerda — em geral defensores das causas ambientais — não têm apresentado propostas capazes de sensibilizar esse eleitorado. Um efeito indesejado dessa situação tem sido a representação fraca da agenda ambiental em alguns municípios onde o combate ao desmatamento é prioritário, especialmente na Amazônia.

Cidades que ocupam o topo do ranking de desmatamento elegeram prefeitos que foram, eles próprios, alvo de autuações por órgãos ambientais. É o caso de Apuí (AM), Marcelândia (MT), Lábrea (AM), Colniza (MT) e São Félix do Xingu (PA). Como mostrou reportagem do GLOBO, esses municípios somam mais de 488 quilômetros quadrados de área devastada neste ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Ocupando o segundo lugar no ranking de desmatamento e o quarto no de queimadas em 2024, Apuí elegeu prefeito o fazendeiro Antônio Maciel Fernandes (MDB), autuado sete vezes por órgãos ambientais entre 1999 e 2022. As infrações foram motivadas por atos como derrubar ou danificar florestas em áreas de preservação, usar fogo sem autorização e instalar sem licença represas que alteram o regime dos cursos d’água. A eleição de nomes como Maciel está vinculada ao peso que atividades nocivas ao meio ambiente, como extração ilegal de madeira ou garimpos clandestinos, ainda têm na economia desses municípios.

Políticos e moradores dessas cidades costumam rechaçar os responsáveis pela fiscalização ambiental. Em agosto, uma operação conjunta da Polícia Federal, da Funai e do Ibama contra o garimpo ilegal no Rio Madeira resultou num violento confronto entre garimpeiros e agentes. No governo passado, ações contra o garimpo ilegal costumavam gerar romarias de prefeitos a Brasília para se queixar dos órgãos ambientais.

Na Amazônia, as atividades que deterioram o meio ambiente continuarão a contar com apoio de políticos e das populações locais enquanto os governos não oferecerem alternativas de produção sustentável. A dificuldade para retirar os milhares de garimpeiros ilegais que ocupam a reserva ianomâmi ilustra o problema. A despeito de seguidas operações com destruição de maquinários, eles sempre reaparecem. As cidades que enriquecem com o agronegócio produtivo e ambientalmente sustentável oferecem uma resposta apenas parcial à questão da Amazônia. A situação não mudará enquanto o enorme contingente ocupado nas atividades ilegais não for absorvido em projetos que assegurem renda e, ao mesmo tempo, garantam a preservação da floresta.

A degeneração da competição eleitoral

O Estado de S. Paulo

Recursos oficiais e espúrios para campanhas eleitorais, como o Fundo Eleitoral e as emendas parlamentares, estão estrangulando a competição democrática e ampliando a concentração de poder

Muito se tem falado em “ataques à democracia”. A invasão das sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro de 2023 chocou o País. Mas os vândalos e golpistas foram reprovados pela esmagadora maioria da população e estão sendo condenados pela Justiça. O que acontece, no entanto, quando o ataque é orquestrado pelos próprios representantes eleitos e financiado com dinheiro do contribuinte? Com a conivência do Executivo, o Legislativo institucionalizou o abuso do poder político e econômico, e esse abuso está sangrando o coração da democracia: as eleições.

Em 2017, após o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional o financiamento de campanhas por empresas, os congressistas aprovaram um Fundo Eleitoral de R$ 1,7 bilhão. O valor assumidamente alto foi justificado como um mecanismo de transição até que os partidos, como entes privados que são, se organizassem para se sustentar com doações de seus simpatizantes. Não foi o que aconteceu. De lá para cá o valor só aumentou. Neste ano foram destinados R$ 4,9 bilhões às campanhas.

Apologistas do Fundo alegam que a “democracia tem um custo” e que ele garante a pluralidade e a renovação. Mas, para começar, o “custo” da democracia brasileira não tem paralelo no planeta. Uma pesquisa apresentada na Câmara dos Deputados comparando 33 países identificou que já em 2020 os gastos públicos com campanha (R$ 2,03 bilhões) foram 45% maiores que os do segundo colocado, o México, e sete vezes maiores do que a média.

Um levantamento do Instituto Millenium nas eleições de 2022 comprovou que, ao invés de gerar igualdade de oportunidades a minorias (candidatos pobres, negros, mulheres ou neófitos), os recursos são concentrados nas mãos de poucos candidatos, ricos, homens e brancos e que concorrem à reeleição. Ou seja, o Fundo não só é custoso, como, longe de nivelar o jogo, acentua desigualdades e a concentração de poder. Nas eleições deste ano, a taxa de reconduções dos prefeitos foi de 81,4%, a maior da história, superando o pico de 63,7% em 2008.

Para agravar exponencialmente a degeneração da competição eleitoral, na última década as emendas parlamentares – recursos da União distribuídos pelos parlamentares a Estados e municípios – saltaram de 4% do orçamento discricionário (volume já fora da curva mundial) para mais de 20%, ao mesmo tempo que os critérios técnicos e os mecanismos de transparência da distribuição eram desmantelados.

Segundo apuração do Estadão, em 25 das 28 cidades que mais receberam emendas per capita desde 2021, os prefeitos eleitos no domingo foram apoiados por um “padrinho” no Congresso, e 23 deles são de partidos do Centrão. Um levantamento do jornal O Globo com os 178 municípios que mais receberam emendas revelou que em 100 o incumbente foi reeleito e em 45 fez um sucessor do mesmo grupo político. Nas cidades onde os prefeitos concorreram à reeleição, a taxa de recondução foi de quase 90%, podendo chegar a 94% no segundo turno.

Eis o paradoxo: a perpetuação dos poderosos no poder sugeriria que estão fazendo uma boa gestão e os serviços públicos funcionam às mil maravilhas, mas essa conclusão esbarra nos baixíssimos índices de confiança da população em relação aos políticos e aos partidos em geral, bem como ao Congresso.

O sistema representativo nacional está capturado por um círculo vicioso. Vivendo confortavelmente de dinheiro público, os partidos se desobrigam de mobilizar simpatizantes, aliciam eleitores nos períodos eleitorais e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar seus feudos controlados por uns poucos caciques que não sofrem pressão nem dos filiados nem do poder público para prestar contas. A distância entre os partidos e a população só aumenta, e a crise de representatividade é escancarada em válvulas de escape como os protestos de 2013 ou a súbita ascensão de candidatos ditos “antissistema”, como Jair Bolsonaro em 2018 ou Pablo Marçal em 2024.

Surtos de revolta como o do 8 de Janeiro não acontecem no vácuo. Esses ataques à democracia são, por óbvio, injustificáveis, mas ninguém pode dizer que sejam inexplicáveis.

A tragédia das crianças sem saneamento

O Estado de S. Paulo

Estudo do Instituto Trata Brasil mostra que a renda futura de crianças sem acesso a água e esgoto tratados é 46,1% menor, pois sua formação básica é brutalmente prejudicada

A falta de saneamento básico no Brasil faz com que 6,6 milhões de crianças de zero a seis anos, a chamada primeira infância, afastem-se de suas atividades, de acordo com o estudo Futuro em risco: efeitos da falta de saneamento na vida de grávidas, crianças e adolescentes, divulgado recentemente pelo Instituto Trata Brasil. Esse contingente de crianças, que equivale à população do Paraguai, segue sendo negligenciado na fase da vida que é, segundo múltiplas evidências nacionais e internacionais, determinante para um futuro digno.

Sem acesso a esgoto tratado e a creches, ou às vezes sem poder frequentar a creche, quando esta existe, justamente porque falta saneamento na região em que vivem, parte significativa das crianças brasileiras cresce com uma herança nefasta, traduzida por uma renda 46,1% menor na idade adulta, de acordo com o estudo. Considerando-se um período de 35 anos de atuação profissional, a diferença de renda entre quem conta e quem não conta com saneamento básico é de mais de R$ 126 mil, montante nada trivial em um país tão desigual quanto o Brasil. Eis o preço do eterno descaso brasileiro com o saneamento: a renda futura de quem não conta com saneamento básico nos primeiros anos de vida é significativamente menor do que a daqueles que simplesmente têm, ora vejam, o básico.

O estudo do Trata Brasil radiografa uma série de efeitos nefastos que vão se acumulando na vida de quem não conta com saneamento na primeira infância. Sem água tratada ou banheiro, crianças de 11 anos têm dificuldade para identificar as horas em um relógio ou para calcular o valor de um troco, habilidades básicas e extremamente necessárias no dia a dia. E esse é apenas um exemplo do quanto a falta do mínimo trava a capacidade de aprendizado e, por consequência, de ascensão social. Crianças que viveram a primeira infância em condições precárias de saneamento chegam à segunda infância (7 a 11 anos) com sequelas no desenvolvimento e têm notas sensivelmente mais baixas em avaliações como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Não é surpresa, então, que jovens de 19 anos sem acesso a saneamento tenham, em média, atraso de 1,8 ano na escolaridade.

Garantir acesso a água e esgoto tratados, bem como a educação, é o melhor investimento que o País pode fazer em nome do bem-estar da população brasileira e de seu próprio futuro. Sem esgoto tratado, milhões de brasileiros estão expostos a enfermidades que deveriam pertencer ao passado, sobrecarregando e onerando o sistema de saúde, faltam às aulas (quando e se há escola), aprendem pouco ou quase nada, como demonstram indicadores nacionais e internacionais de educação, e tornam-se adultos despreparados e dependentes de ajuda governamental.

Por não fazer o básico, o Brasil lega a uma parcela significativa da população um futuro medíocre e de dependência, que ademais custa caríssimo ao País; manter programas sociais para quem deles não dependeria houvesse saneamento e educação básica é extremamente deletério para a economia brasileira, que se autocondena a um permanente atraso em relação aos países nos quais as crianças conseguem desenvolver suas habilidades e se tornarem adultos capazes por terem acesso a esgoto tratado e creche.

Nada indica, porém, que essa realidade vai mudar. Em relação ao saneamento especificamente, mesmo quando há avanços, anda-se para trás. Aprovado pelo Congresso em 2020, o Marco do Saneamento estabeleceu que, até o fim de 2033, 99% da população terá de ser atendida com água potável e 90% deverão ter coleta e tratamento de esgoto. No entanto, diferentes associações estimam que, no ritmo atual de investimentos, as metas de universalização serão atingidas, na melhor das hipóteses, apenas em 2046.

Por trás de tanta morosidade, sobra cálculo político. Diz o conhecido adágio eleitoral que “cano enterrado não dá voto”, razão pela qual se investe pouco em saneamento. Ademais, crianças também não votam, e assim o Brasil segue condenando seu futuro, desde cedo, à dependência.

A barbárie segue vencendo

O Estado de S. Paulo

Extinção de penas é novo capítulo da história de impunidade do massacre do Carandiru

A Justiça paulista extinguiu as penas impostas a todos os policiais militares envolvidos no horrendo massacre do Carandiru, ocorrido no dia de 2 de outubro de 1992. No âmbito estadual, a decisão era esperada. Afinal, a 4.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que declarou extintas as penas, não poderia deixar de seguir o controvertido entendimento do Órgão Especial do próprio TJ-SP, que, em agosto deste ano, considerou constitucional o indulto concedido em 2022 pelo então presidente Jair Bolsonaro aos policiais assassinos.

Esse é o mais novo capítulo de uma longa história de impunidade e de desrespeito à Constituição que já dura 32 anos. Não é o último. O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda haverá de julgar o mérito de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) interposta em dezembro de 2022 pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, por meio da qual o Ministério Público Federal pede que os efeitos do indulto de Bolsonaro não sejam aplicados aos policiais que perpetraram o massacre.

Na ADI, Aras argumenta, com toda razão, que o extermínio de 111 presos durante uma rebelião na extinta Casa de Detenção de São Paulo não era tecnicamente classificado à época como crime hediondo, portanto, impassível de indulto. Mas, prossegue o então procurador-geral, “o decreto presidencial que concede o indulto natalino não pode alcançar os crimes que, no momento da sua edição, são definidos como hediondos, pouco importando se, na data do cometimento do crime, este não se qualificava pela nota de hediondez”.

Ou seja, Bolsonaro deveria ter seguido o ordenamento jurídico brasileiro ao conceder seu último indulto de Natal na Presidência da República. Mas o que é a lei para alguém como Bolsonaro senão um detalhe por vezes inconveniente? Bolsonaro sempre esteve mais preocupado com seus próprios interesses do que com qualquer outra coisa, como é notório. A desvirtuação do nobre instituto do indulto presidencial, redigido sob medida para beneficiar os 74 policiais militares condenados por aquela barbárie, foi um agrado do então presidente à sua base de apoio, na qual se incluem muitos militares e agentes das forças de segurança.

O indulto tem uma natureza humanitária que vem de séculos atrás. Não se trata de concessão política, muito menos eleitoreira. Em poucas linhas, no Estado Democrático de Direito moderno o indulto representa a renúncia do Estado a seu direito inalienável de punir cidadãos que transgridam as leis tendo em vista, principalmente, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Mas esta jamais foi a orientação de Bolsonaro. Seu objetivo era sinalizar que a violência policial não só é aceitável, como recomendável em nome de uma política de segurança torpe que pode ser resumida na máxima “bandido bom é bandido morto”.

Agora, recai sobre o STF a única esperança que resta aos cidadãos que não confundem justiça com “justiçamento” e desejam ver o Brasil sob a égide do Estado Democrático de Direito em toda a sua plenitude, garantindo os direitos fundamentais de todos os cidadãos, criminosos ou não.

Não basta punir mais o feminicida

Correio Braziliense

Penas mais duras para crimes violentos ressaltam o poder coercitivo do Estado, característico de sociedades que ainda não encontraram um grau de civilidade entre seus membros

Na última quinta-feira, o Brasil endureceu as penas para quem comete feminicídio. Por meio de sanção presidencial, passou a vigorar o Projeto de Lei nº 4.266 de 2023, que estabelece até 40 anos de prisão a quem retira a vida de uma mulher em razão de sua essência. 

É um debate clássico no direito penal sobre a efetividade punitivista para coibir a ocorrência de crimes. Inclui-se na discussão, por exemplo, a aplicação da pena capital, como ocorre em dezenas de localidades dos Estados Unidos e em outros países. Há muita controvérsia acerca da medida extrema de executar um criminoso como forma de alertar a sociedade sobre condutas ilícitas, bem como contesta-se a ideia de que o Estado, em última instância, tem o poder sobre a vida do indivíduo. 

É conhecido também o argumento de que penas mais severas não necessariamente diminuem a ocorrência de crimes violentos. Tome-se novamente como exemplo os Estados Unidos, onde muitos juristas sustentam que a pena capital não reduziu os índices de violência. O caso do Brasil também indica contradição semelhante. Apesar de a legislação prever até 40 anos de pena máxima, o país permanece entre os mais violentos do mundo. Ou seja, a pena em si não garante a paz social, muito menos doméstica.   

É precisamente esse ponto que juristas da corrente garantista sustentam. No caso do feminicídio, há quem considere a medida insuficiente para demover um agressor de interromper os ataques à vítima. "A aprovação desse projeto se dá pelo avanço do discurso punitivista no Brasil. Aumentamos as penas e vamos dormir tranquilos. O crime vai diminuir? É claro que não. Esse é um debate simplista, que não resolve o problema de ninguém, menos ainda das mulheres que morrem todos os dias, vítimas da violência doméstica", sustentou a ministra do Superior Tribunal de Justiça Daniela Teixeira, em entrevista ao Correio. 

A magistrada se junta ao entendimento de que não basta aumentar as penas. É preciso interromper o ciclo de violência logo nos primeiros sinais; adotar medidas dissuasórias, como o afastamento imediato do agressor da convivência com a vítima; dar mais celeridade na aplicação de penas antes que se chegue a um feminicídio; implementar políticas de estímulo à denúncia; fomentar a educação de gênero no âmbito escolar e profissional. Como se vê, não basta apenas uma punição mais severa para impedir um homem de matar uma mulher. 

Penas mais duras para crimes violentos ressaltam o poder coercitivo do Estado, característico de sociedades que ainda não encontraram um grau de civilidade entre seus membros. O castigo por si só pode trazer algum conforto moral e ético, mas é incapaz de impedir que a violência seja combatida por meio de mais violência, praticada pelo poder público. Para conter o flagelo do feminicídio, o Estado e a sociedade brasileira precisam fazer mais.

Limitar decisão monocrática ajuda equilíbrio institucional

Folha de S. Paulo

Esse é o único projeto meritório aprovado na CCJ da Câmara; permitir que Congresso suste ordens do STF seria retrocesso

As decisões monocráticas, pelas quais um dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal arbitra, a título precário, sobre litigâncias que não raro envolvem somas e questões gigantescas, são uma decantada anomalia brasileira. Acabar com elas, ou reduzi-las ao mínimo necessário, deveria ser objetivo de todos os que almejam uma institucionalidade mais equilibrada.

Por isso, a proposta de emenda à Carta que praticamente fulmina o poder do juiz da corte de suspender sozinho os efeitos de leis aprovadas no Congresso e sancionadas pelo presidente da República deveria ser encarada como um avanço —a despeito de a motivação por trás de muitos apoiadores do diploma ser a de desfechar uma vendeta contra o STF.

O projeto, aprovado por 64% dos senadores em novembro de 2023, recebeu nesta quarta (9) o aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Ele também estipula prazo de seis meses após a concessão de liminar para que o colegiado do tribunal decida o mérito das ações que pleiteiam a declaração de inconstitucionalidade de uma lei.

Há virtudes em ambos os movimentos. Ao circunscrever o período em que a validade de um diploma legal permanece em dúvida, a PEC favorece a segurança jurídica. Ao restringir a atuação solitária de ministros, ela valoriza a colegialidade, a pedra angular de um tribunal constitucional.

A proposta não retira nem sequer um milímetro do poder da corte. Na verdade o fortalece.

O mesmo não se pode dizer dos outros projetos que versam sobre o Supremo também aprovados pela CCJ da Câmara. Nesse caso, o ânimo de ir à forra contra o tribunal —que mantém suspensa a execução das bilionárias e opacas emendas parlamentares— reduz competências do Judiciário e carrega apenas elementos nocivos ao equilíbrio institucional.

A maior aberração seria conceder ao Congresso, como dispõe um desses projetos, o poder de suspender decisões do STF. O princípio civilizatório da separação dos Poderes, cláusula pétrea da Constituição de 1988, restaria irremediavelmente conspurcado pela medida, que transformaria o Legislativo federal num Leviatã.

Também não passam no teste de integridade as propostas que ampliam casos em que ministros do Supremo estariam sujeitos a impeachment. Trata-se de tentativa rasteira de intimidação por uma franja de lunáticos que abraçou o autoritarismo bolsonarista e deseja ver a corte de joelhos.

Não há dúvidas de que o Supremo deveria ser mais reverente ao produto de tramitações legislativas, que envolvem votações majoritárias de representantes eleitos pela população em duas Casas independentes. O método para atingir esse objetivo, porém, não pode ser a subtração de prerrogativas da Justiça nem a ameaça.

Enfrentar o problema com maturidade deveria passar pelo reconhecimento, pelo Congresso, de suas próprias exorbitâncias, como o gasto ciclópico com emendas e fundos partidários.

China eleva incerteza sobre desempenho econômico

Folha de S. Paulo

Pacote frustra mercado, com valor abaixo do esperado; dependentes das demandas de Pequim, como Brasil, ficam em alerta

Depois de se tornar um motor da economia mundial no início deste século, com taxas de crescimento acima dos 10% anuais, a China hoje enfrenta dificuldades consideráveis para alcançar a meta anunciada de ao menos 5% neste ano e no próximo. Um prometido pacote fiscal de estímulo à atividade, anunciado na semana passada, mostrou-se uma decepção.

O politburo chinês determinou a injeção de 200 bilhões de iuanes (R$ 156 bilhões) no mercado doméstico e em obras de infraestrutura. Para as dimensões do Produto Interno Bruto do país emergente, é pouco.

O valor representa apenas 10% do volume de recursos indicado por Pequim, uma semana antes, para alcançar tal objetivo. A expansão fiscal requerida é estimada em cerca de 2 trilhões de iuanes (R$ 1,56 trilhão) —metade do valor oficial despendido durante a crise mundial de 2008.

Há expectativas de novos pacotes surgirem ainda neste ano. Contudo, apesar de o mais recente ter frustrado o mercado, certamente consolidou no politburo a convicção de que o rumo seguido até o momento, centrado em agressivas exportações, não trará os resultados esperados.

Assim como no pós-2008, a China volta-se ao mercado doméstico como fonte primordial de geração de riqueza. Uma parte do pacote prevê incentivos antes repudiados pelo líder Xi Jinping.

As medidas devem contemplar do incentivo às famílias e empresas para a troca de equipamentos, veículos e eletrodomésticos por modelos ecológicos à concessão de ajuda do governo para casais que tiverem mais de um filho.

As medidas fiscais, a rigor, complementam as decisões do Banco Central chinês no fim de setembro, quando cortou a taxa de juros básica e baixou o custo das hipotecas, um sorvedouro dos ganhos das famílias.

O BC igualmente prometeu subsídios e outras benesses para impulsionar o mercado acionário, ainda combalido pelos efeitos da crise imobiliária. O setor de construções, por sua vez, será beneficiado pela outra metade do pacote fiscal.

A incerteza sobre o desempenho da economia chinesa certamente traz sinais de alerta para os países mais dependentes de sua voracidade por commodities, como é o caso do Brasil.

O gigante asiático vai se deparando com limites, a começar por sua dívida pública, que hoje passa dos 85% do PIB, o dobro do patamar de dez anos atrás. Mesmo que venha a intensificar o uso de dinheiro público para aquecer a demanda interna, esse não é expediente de eficácia duradoura.

 

 

 

 


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