domingo, 20 de outubro de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - Duas considerações iniciais sobre o resultado das eleições municipais

Pretendo, numa sequência de dois artigos, assentar três afirmações, na tentativa de analisar o quadro esboçado após o primeiro turno das eleições municipais e de começar a refletir sobre o cenário político que pode resultar desse quadro, ainda a ser completado pelos embates do segundo turno.

As duas primeiras afirmações requererão relativamente menos palavras que a terceira e por isso podem ser acomodadas, juntas, neste primeiro texto. Elas acrescentarão menos elementos substantivos ao que, durante os dias subsequentes à eleição, e mesmo antes, foi fartamente abordado no noticiário, sendo submetido a análises especializadas e a nuances do debate político. São elas: 1. Os resultados das eleições não mostraram a extrema polarização que vinha sendo sugerida por embates nas redes sociais e por discursos políticos mais radicalizados; 2. A partir desses resultados municipais, o exercício de predição mais razoável que se pode arriscar fazer, a respeito de embates eleitorais futuros, é sobre as próximas eleições à Câmara dos Deputados e não sobre a disputa presidencial, que segue outra lógica.

A terceira afirmação será mais controversa. Sustentará que os resultados eleitorais reclamam rever, em profundidade, crenças correntes a respeito da descrição e interpretação do que sejam e do que representam os principais campos da geografia política do país e da avaliação das suas possibilidades de êxito nas várias arenas de competição, num futuro imediato, até 2026. Diferentemente das duas primeiras afirmações, a revisão em profundidade de crenças difusas sobre o perfil e a atitude dos atores e sobre as respectivas fortunas de seus campos políticos desafia o senso comum e certas convicções militantes, além de, provavelmente, suscitar objeções, também, de pessoas e ambientes treinados na análise política isenta.  Por isso ficará para o próximo artigo. Ao final dos dois, a reflexão deverá concluir pela conveniência de se revisitar os temas da sucessão presidencial e da futura renovação do Congresso, à luz desses antigos e novos elementos e argumentos.

Começo pelo tema da polarização. Quem orientou suas expectativas pelo confronto nas redes digitais ideologicamente radicalizadas e eleitoralmente interessadas precisa lidar com a decepção vinda do fato de que o eleitorado brasileiro premiou, de modo notório, partidos que não são polos na guerra entre distintas projeções retóricas de ideias de bem e de mal em política. Apenas dois dos quinze embates de segundo turno nas capitais dar-se-ão entre PL e PT. O PL está em mais sete disputas, o PT em mais duas, porém, os pares competitivos nessas nove capitais e nas outras quatro restantes (em que nem PL nem PT aparecem) não se repetem. São 14 distintos pares de partidos em 15 disputas. E não se diga que em vários deles os polos fizeram-se representar, no primeiro turno, por outras siglas. Na grande maioria das capitais onde haverá segundo turno, PL e/ou PT tiveram candidato próprio que ficou pelo caminho. As exceções são Porto Alegre e Porto Velho - onde o PL indicou o candidato a vice em chapas classificadas a segundos turnos - e São Paulo, onde o PT não lançou candidato, apoiando o PSOL Mas mesmo ali, onde se pretendia replicar o duelo nacional, Pablo Marçal refratou a bipolaridade.

Observando as onze capitais onde as eleições foram decididas no primeiro turno, vê-se que só Maceió e Rio Branco elegeram prefeitos do PL e nenhuma alguém do PT. Das nove outras capitais, cada um dos dois partidos teve candidato próprio derrotado em sete. Integraram coligações vencedoras apenas em São Luiz e Salvador (no caso do PL), no Rio de Janeiro e Recife, no caso do PT. Em nenhuma delas foram forças decisivas e só no caso de Recife o PT teve relevância política perceptível, embora discreta.

Na distribuição do conjunto de prefeituras conquistadas no país, os números são ainda mais eloquentes. Os partidos mal chamados de centrão elegeram cerca de 3.500 prefeitos, enquanto toda a esquerda somada não chegou a 800 e o PL, partido que abriga no seu interior o coração e os músculos da direita radical e da extrema-direita (sem, contudo, limitar-se a elas), um pouco mais de 500 prefeitos. Por todos os ângulos que se queira analisar, as urnas municipais não dão argumentos a quem considera a política brasileira polarizada, ideologicamente, entre esquerda e direita, ou pragmaticamente, entre Lula e Bolsonaro. É um equívoco estender às várias arenas de competição do sistema eleitoral brasileiro a característica plebiscitária que persiste apenas na disputa presidencial.

Feitas essas afirmações sobre a polarização (as quais suponho serem capazes de expressar certo consenso, ao menos fora das usinas políticas e sociais que a produzem e de áreas contaminadas por ela própria), acrescento um aspecto do viés despolarizador das eleições municipais que é, de costume, menos enfatizado. O ponto é que os eleitores - não necessariamente de modo deliberado, mas efetivo, afinal -, além de fortalecerem partidos situados ao largo dos polos esquerda e direita, reelegeram, em muitos municípios, prefeitos e prefeitas cujas gestões eles avaliavam positivamente já bem antes das eleições. Este aspecto mostra racionalidade do eleitor quando julga a política da sua cidade, atributo que não se deve perder de vista nas análises. Em muitas situações foram premiados políticos e gestores cujos focos, não importando o partido ao qual pertençam, estão distantes das pautas da polarização.

É uma tentação atribuir os altos índices de reeleição a algum fator excepcional como, por exemplo, a força eleitoral das emendas ao orçamento, ou a efeitos conservadores da “descrença geral” no jogo político da democracia representativa e da “escassa politização” dos eleitores, em particular.  Essas explicações desprezam a relevância da interação entre atores ordinários, expressivos de um comportamento eleitoral continuado e novas realidades criadas por mudanças estruturais e culturais. 

Xingada nos palanques e penalizada nas urnas de 2016 (um ponto conjuntural fora da curva, na política municipal brasileira), a dita “velha” política, sempre acesa na disputa de redutos eleitorais e morna em termos ideológicos, voltou, desde 2020, a ter abrigo confortável no regaço dos contextos municipais.

Na vitrine federal e, até certo ponto, na política de estados subnacionais, a gramática político-eleitoral exasperada de 2016 moldou, em agitação politicamente tosca e oca, as eleições de 2018 e seguiu determinante em 2022. Já os pleitos municipais voltaram, em 2020, momento de insólita conjunção da pandemia com um governo de subversão bolsonarista, a mostrar uma gradativa assimilação, pela política tradicional, de novas demandas dirigidas à gestão de municípios de todas as regiões do país.  Variando conforme diferenças de tamanho e/ou de proximidade a eixos dinâmicos da economia e da vida social, pautas contemporâneas, como a ambiental, a da qualidade de serviços públicos, a da inclusão digital e a do empreendedorismo individual abrem passagem, em movimento lento, discreto, mas contínuo. Cada vez mais elas contam para legitimar, perante eleitores que vão ficando um pouco mais exigentes, gestores de insuspeitos partidos e orientações políticas, inclusive quem não as tem.

Em arenas municipais de tradição clientelística ou populista conservam-se essas tradições, atualiza-se e aperfeiçoa-se esses idiomas longevos, mas em interação com novos imperativos. Processo subterrâneo, cuja visibilidade é embaçada pelo alarido de redes digitais e pelo “marketing” espúrio da radicalização ideológica. Enquanto em torno da sede central do poder político transcorre um embate por identidades míticas, o sertão vira mar e traça uma diagonal secular perante essa “nova” política incivil. Dela descolam-se os sertões metropolitanos que, assim como os rincões interioranos, adotam a, de fato, nova gramática da vida real, que a polarização guiada pelo conflito ideológico ignora, nubla e perturba.

A atitude politicamente cética do eleitorado frente a essa onda aparenta alienação, por ficar mais ou menos nas margens do renhido conflito plebiscitário nacional. Mas emerge e mostra-se melhor em eleições municipais. A autocomplacência do governismo federal e de núcleos radicalizados da oposição contenta seus artífices e arautos com a presunção de que redutos de partidos do centro e da direita tradicionais proporcionam a esses dois campos papel coadjuvante, senão residual. Seriam refratários nostálgicos às novas sociabilidades e, por isso, incapazes de disputar o poder central num país tomado por uma divisão que é, ademais, uma tendência internacional. O que ocorre em urnas municipais seria apenas um comportamento anacrônico que tende a ser anulado pela realidade. É assim que se costuma analisar a persistente afinidade entre o eleitorado brasileiro e atores vocacionados para a pequena política sediada, de modo primordial, no Legislativo. A cegueira desse olhar sobranceiro é não ver que aquele comportamento eleitoral assume ares de atitude política, ou seja, de disposição permanente.

A autocomplacência torna-se um autoengano se confrontada com o segundo ponto dessa discussão, isto é, com a afinidade entre as inclinações do voto municipal e as daquele voto que, dois anos após, produz maiorias legislativas nacionais, especialmente as que se formam na Câmara dos Deputados. Nas novas condições da relação entre os poderes, quem faz maioria legislativa não conquista papel coadjuvante. No mínimo postula parceria numa efetiva divisão de poderes e/ou, no limite, um protagonismo político.

Recentes reações serenas do presidente Lula diante da óbvia derrota eleitoral talvez signifiquem que o faro do animal político registrou, afinal, um recado reiterado que já dura o tempo transcorrido de seu mandato. Várias vezes, de 2022 para cá, quem aventou a hipótese de que o realismo político prevaleceria no entorno do presidente deu com os burros n’agua. Na esquina seguinte, o voluntarismo do ego redentor revalida a hipótese oposta. Mas a esperança é teimosa e em seu nome podemos chamar de ambiguidade o que pode ser apenas desorientação e inconformidade com a perda de protagonismo.

Em contraste, uma percepção quase consensual é a de que, do outro lado da Esplanada o realismo político, ancorado no corporativismo parlamentar, reinaria compacto e soberano. O impacto das eleições municipais relativiza essa certeza também, ao revelar fissuras onde se via estabilidade. Nesse sentido, o curso mais recente da sucessão de Artur Lira na presidência da Câmara é emblemático. A noção de que poder acumulado previamente é passaporte para um presidente fazer seu sucessor é, mais uma vez, posta em dúvida. A pluralidade mundana do Legislativo não chancela impérios perenes. Se podemos trazer um grande poeta para esse chão de mundanidade pragmática, sem ofensa à sua obra e à sua memória, podemos dizer que o amor dos pares não é imortal, posto que é chama. No máximo será infinito enquanto dure. Sem ilusões quanto à virtù ou à fortuna de quem venha a ser o sucessor, que assim seja e siga sendo, pela arte racional (ops!) da política, chama permanente da democracia.

Já estamos plenamente no segundo tema de hoje, a conexão entre eleições municipais e o estado da arte no legislativo nacional. A correlação positiva entre eleições para a Câmara e as municipais é fato há muito flagrado pela ciência política brasileira e pelo jornalismo político mais qualificado.  A novidade é a significativa influência que arranjos eleitorais feitos no vértice dessas duas competições passaram a ter sobre o efetivo exercício do poder político no país. Eleger bancadas de peso no Congresso vai aos poucos deixando de ser uma opção de determinados partidos para ser um imperativo imposto a todos. 

Nos tempos relativamente longínquos do presidencialismo de coalizão, pequenos partidos e mesmo legendas minúsculas viviam de recursos residuais de poder e de alianças eleitorais ad hoc, uns e outras patrocinados por chefes de governo. Hoje, o status das emendas parlamentares ao orçamento (aqui não confundir prerrogativas exercidas pelo Congresso desde 2016, que são avanços institucionais reais, com orçamento secreto e outras práticas espúrias convertidas em reais) e o fim das coligações em eleições proporcionais fazem a sobrevivência dessas legendas depender do tamanho de suas bancadas.

No andar de cima - a outra ponta, primeira página da tabela do campeonato partidário - é também relevante a mudança, não de qualidade, mas de intensidade da competição. Durante a vigência do presidencialismo de coalizão, o partido do presidente da República podia ter, sem maiores problemas, peso parlamentar mediano. Sua desvantagem comparativa perante partidos que, solteiros ou temporariamente associados, o superavam no Legislativo era neutralizada pela intervenção do presidente, o detentor dos poderes substantivos de agenda, de cooptação e de chantagem eleitoral. A ação desequilibradora podia dar-se pela veiculação de consensos eleitoralmente decisivos (como a estabilidade monetária trazida pelo Plano Real ou o compromisso com o social), pela condução inclusiva da “pequena política” de amplíssimas coalizões, ou ainda pelo poder dissuasivo de excluir infiéis da coalizão. Fosse zagueiro, armador ou artilheiro, o presidente, como dono da bola, tinha, merecesse ou não, a prerrogativa de jogar como se fosse o craque do time.  

Assim, como mostrava, por exemplo, o cientista político Carlos Ranulfo Melo, em sua reflexão sobre “jogos aninhados”, partidos como os antigos PFL e PMDB podiam especializar-se em eleições para o Congresso ou em pleitos regionais, enquanto PSDB e PT disputavam plebiscitos nacionais.

 Tudo isso é passado e embora nada proíba que volte a ser presente, não há sinal visível no horizonte, nem de restauração de um presidencialismo forte - no sentido de presidentes formalmente empoderados, mesmo que presidindo governos politicamente frágeis – nem de partidos especializados. Hoje a competição interpartidária dá-se em chave única e o troféu é o Congresso. As reações de Dilma Rousseff às ações da Câmara não tinham como evitar sua queda, mas fizeram um barulho capaz de mostrar uma divisão do país. A queda de braço paralisava o governo e a paralisia não se resolvia na rotina, porque o Executivo e aquela banda do Legislativo eram tigres de papel. Ambos rugiam, mas não podiam governar sem o outro e, por isso, o processo foi resolvido no Senado e no STF. Sob Temer e Rodrigo Maia, um armistício permitiu a volta da rotina.  Mas a ascensão de Bolsonaro trouxe uma veleidade nova. O chefe carismático não pretendeu restaurar um presidencialismo forte e sim fundar a lógica despótica do homem forte. Do vácuo criado por essa imprudência resultou que o Congresso – Câmara e Senado – com a cobertura do STF, de governadores e da burocracia do Estado, fixou, pela via da política que o ex-presidente desprezava, bases de uma governabilidade emergencial à revelia do Executivo e de um novo padrão na relação futura entre os dois poderes, cujo desenho ainda não é nítido. Lula não é Bolsonaro e restaurou o poder governativo presidencial, mas não o presidencialismo de seus tempos dourados. Se teimasse, paralisaria seu governo, mas o Legislativo, já não mais. Impeachment seria ocioso, o Congresso já dispensa isso para agir. As mudanças não foram conjunturais.

A legitimação política desse novo status do Legislativo nada tem a ver com o que a sociedade civil e a opinião pública politizada, ou corporativamente organizada, pensa sobre deputados e senadores. Esses atores individuais, partidariamente organizados, estão em sintonia com os indivíduos que compõem um ente distinto, que é o eleitorado. Eleitores brasileiros podem não valorizar a instituição legislativa, ou os partidos, mas não abrem mão de votar massivamente em pessoas para compor a primeira e, assim, passam a ser governados por um sistema institucional cujo pluralismo é assegurado pelos partidos, que nele cumprem papel cada vez mais relevante, à medida em que o do Legislativo é reforçado. Mais do que isso: eleitores não parecem ter ilusões sobre virtudes e pecados de políticos. Nessa relação não há chama, posto que não é amor, mas interesse e valores também, na medida imperfeita da vida real.

Eis o lado positivo da realidade democrática que a cada eleição o eleitor escancara. Momentos únicos de sua soberania, neles desafiam crenças sociológicas ou ideológicas sobre sua suposta indiferença para com a democracia representativa. Políticos e partidos no Congresso recebem e traduzem a seu modo os sinais eleitorais municipais (de eleitores, de prefeitos e de vereadores) porque sabem, tanto ou mais que cientistas políticos, que ali está o mapa da mina das reeleições dos primeiros e do empoderamento institucional dos segundos. Sabem que nas eleições municipais joga-se um jogo paralelo e não mais necessariamente aninhado com o jogo plebiscitário da eleição presidencial. Enquanto ódio, intolerância e baixaria ocupam vitrines espetaculares, profissionais não param de trabalhar nas rotinas da política

Nas eleições municipais de 2020 o eleitor deu, como agora, um recado pela moderação política. É engano pensar que toda a elite política o ignorou. As eleições à Câmara dos Deputados de 2022 premiaram quem prestou atenção no dever de casa. Eleições municipais são hora de escrever scripts num cardápio eleitoral construído com movimentos centrífugos. Eleições para o Congresso são hora de saber como os eleitores usaram o cardápio dois anos antes e de balizar, nos estados, a estratégia política para as eleições legislativas nacionais com uma lógica centrípeta, para gerar uma força idem, colada no sentido geral daquelas escolhas. Assim, partidos fortalecidos em 2020, que a preguiça analítica chama de fisiológicos (como se esse adjetivo distinguisse, quando nivela), tiveram influência autônoma e decisiva nas municipais de 2024. Tudo indica que seguirão lendo bem os resultados e reforçarão seu poder no Congresso a ser eleito em 2026. Quem quiser ter voz ativa em um sistema político cada vez mais compartilhado entre dois poderes institucionais, vai ter que ler e escrever com idêntica perícia.

Para se situar nessa teia, penso ser preciso reformular, ou abandonar, o “conceito” de “centrão”; dimensionar com realismo a força da direita radical e suas versões extremistas; e compreender em profundidade a crise da esquerda e da centro-esquerda, que está longe de ser só uma crise eleitoral. As três proposições desdobram e detalham a terceira das afirmações iniciais. Fica para a próxima semana.

* Cientista político e professor da UFBa


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