Valor Econômico
Decisão do STF de extinguir o regime jurídico
único e apoio ao PL dos Supersalários podem gerar efeito contrário ao esperado
Funcionária pública de alto escalão, Maria
Candelária tinha uma rotina de trabalho que era uma moleza: entre idas ao
dentista, ao café e à modista, só passava na repartição para assinar o ponto e
dava no pé. As más línguas diziam que era amante de um político importante, por
isso caiu no serviço público de paraquedas, sem concurso.
Também foi sem se submeter a um processo seletivo que Barnabé se tornou servidor. Contratado como temporário (o termo na época era “extranumerário”), não gozava de estabilidade e ainda era mal remunerado, ganhando pouco mais do que o necessário “para o cigarro e o café”.
Maria Candelária e Barnabé são tema e título
de marchinhas que fizeram sucesso nos carnavais por satirizar a realidade dos
servidores públicos nos anos 1950. Foi buscando dotar o Estado brasileiro de
uma burocracia profissional, estável e bem preparada tecnicamente que o governo
de Getúlio Vargas criou o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp)
e depois aprovou um Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, que
vigorou até 1990.
Embora importantes para melhorar a qualidade
do quadro de servidores, com a institucionalização de algumas carreiras de
referência, para as quais o acesso se fazia por concurso, essas medidas não
foram capazes de eliminar o aparelhamento político da administração pública,
com a indicação de apadrinhados e a contratação precária de trabalhadores que
com o passar do tempo se tornavam estáveis.
A Constituição de 1988 representou uma nova
tentativa de se garantir um funcionalismo de alto nível e meritocrático, diante
dos imperativos de ampliação de direitos individuais e coletivos e de
universalização de serviços públicos essenciais como educação, saúde e
segurança. Para tanto, o concurso foi estabelecido como forma primordial para
acesso à carreira pública, além de se estabelecer um regime jurídico próprio,
com direitos e deveres para os servidores.
Desde então, o número de servidores
expandiu-se consideravelmente, sobretudo nos Estados e ainda mais nos
municípios, que são os grandes provedores do atendimento direto aos cidadãos.
Ainda assim, o tamanho do funcionalismo brasileiro, em relação à nossa força de
trabalho, é bem menor do que o de países avançados e mesmo em desenvolvimento.
A derrubada do mito do inchaço da máquina
pública brasileira é apenas um dos vários méritos do “Anuário de Gestão de
Pessoas no Serviço Público”, publicado recentemente pela entidade
República.org. Elaborado por Vanessa Campagnac, Ana Luiza Pessanha, Paula Frias
e Ana Paula Sales, o documento é o mais abrangente panorama sobre a gestão de
pessoal no setor público, e traz números (muitos números!) para iluminar os
debates atuais sobre cortes de gastos e reforma administrativa.
Premidas pela necessidade de reduzir despesas
para manter de pé o arcabouço fiscal, autoridades da área econômica do governo
vêm sinalizando a intenção de ressuscitar o PL dos Supersalários para
economizar recursos com a folha de pagamentos nos três Poderes e níveis
federativos. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal encerrou uma longa
pendência jurídica envolvendo um dispositivo da reforma administrativa aprovada
por Fernando Henrique Cardoso em 1998 e acabou derrubando o regime jurídico
único para a administração direta, reabrindo a possibilidade para a contratação
de servidores pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Corrigir distorções remuneratórias e abrir
novas possibilidades para arranjos e vínculos trabalhistas no Estado são
fundamentais para o equilíbrio fiscal e o melhor atendimento à população.
Porém, ao fazê-lo de forma atabalhoada, sem estudos prévios e a escuta de
especialistas, por meio de medidas isoladas, corremos o sério risco de
alcançarmos o pior dos mundos: não economizar recursos e ainda precarizar o
serviço público.
Como demonstra o anuário da República.org, o
contingente de pessoas contratadas de forma temporária por União, Estados e
municípios cresceu impressionantes 1.760% entre 2003 e 2022. Contratados de
forma simplificada e com poucas garantias empregatícias, os temporários
representam não apenas um elevado risco jurídico para o Estado como abrem as
portas para apadrinhamento político-partidário, descontinuidade na prestação de
serviços e até mesmo corrupção.
Além disso, simplesmente aprovar o PL dos
Supersalários, além de não gerar o resultado fiscal esperado (como argumentei
aqui na coluna de 21/10), pode representar a perda de oportunidade de se
corrigir distorções muito mais profundas na estrutura remuneratória estatal.
O trabalho da República.org apresenta
evidências contundentes de como, no Brasil, não há equivalência entre o salário
de servidores e a complexidade do seu trabalho, de carreiras similares com
salários distintos e ainda de uma ausência completa de padronização entre
vencimentos de início e de fim de carreira - além do desvirtuamento dos
penduricalhos para uma pequena elite de magistrados, membros do Ministério
Público, advogados públicos e fiscais, entre outros.
Precisamos urgentemente de uma discussão
ampla e bem embasada sobre o Estado que queremos, e não balas de prata e
medidas salvadoras que podem piorar o que já temos.
Muito bom o artigo.
ResponderExcluir" Porém, ao fazer ( uma reforma administrativa) de forma atabalhoada, sem estudos prévios e a escuta de especialistas, por meio de medidas isoladas, corremos o sério risco de alcançarmos o pior dos mundos: não economizar recursos e ainda precarizar o serviço público. "
ResponderExcluirComo exemplo de medidas, em princípio, atabalhoadas, só ler " Crônica de um vexame anunciado ", do Estadão, postado hoje neste blog.
😏😏😏
Excelente texto! Estamos diante de um grande cilada.
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