Valor Econômico
Acordo por tragédia em Mariana é mais um capítulo de um século de exploração minerária
“Cada um de nós tem seu pedaço no pico do
Cauê”, escreveu o jovem Carlos Drummond de Andrade em seu livro de estreia,
“Alguma Poesia”, de 1930.
O verso vem de um poemeto chamado “Itabira”,
parte de uma série de oito, cada qual nomeado por uma localidade, enfeixados
sob o título de Lanterna Mágica, antigo aparelho utilizado para projetar
imagens na parede, precursor do cinema e dos slides.
Itabira, óbvio, é a cidade natal de Drummond. E o pico do Cauê, marco geográfico da região, não existe mais. “A pedra que brilha” (Ita-bira), como os povos originários designaram aquela montanha, “foi roída pela atividade mineradora, ao longo das décadas, a ponto de ter se transformado numa inominável cratera que cava seu perfil em negativo no fundo da terra”, como descreveu José Miguel Wisnik no excepcional “Maquinação do mundo: Drummond e a mineração” (Companhia das Letras, 2018).
O pico do Cauê foi virado e revirado do
avesso, e hoje é a mina do Cauê, propriedade da antiga Companhia
Vale do Rio Doce, hoje simplesmente Vale S.A.,
fundada em Itabira em 1942, após um longo processo de negociações com ingleses
e americanos sobre quem deveria ser dono da jazida do minério de ferro mais
puro do mundo, como se dizia na época de Drummond.
Escrito quando o Cauê começava a ser minerado
pela Itabira Iron Ore Company, de capital britânico e norte-americano, o verso
de Drummond já iluminava o futuro da nossa relação com a empresa e sua
atividade principal.
Mesmo depois da nacionalização da mineradora,
a criação da estatal CVRD e sua posterior privatização em 1997, cada um de nós
tem seu pedaço no pico do Cauê. E também na barragem do Fundão, em Mariana, ou
no Córrego do Feijão, em Brumadinho.
Tem seu pedaço no pico do Cauê cada detentor
de ações da companhia, seja na B3 ou na Bolsa de Nova York - ações que levaram
poucas semanas para recuperar o seu valor logo após as tragédias de Mariana e
de Brumadinho e que mostraram um desempenho muito superior ao de seus
concorrentes BHP (sócia da Vale na
Samarco, em Mariana) e Rio Tinto nos últimos anos.
Na fria lógica das análises financeiras,
desastres ambientais tendem a valorizar as commodities, pois a redução
temporária da oferta, em mercados oligopolizados, pressiona os preços,
aumentando os lucros das mineradoras.
Mas graças à Vale e
à sua atividade mineradora, todos nós também recebemos o nosso pedaço do pico
do Cauê. E dos lucros gerados nas minas que romperam as barragens de Mariana e
de Brumadinho.
Cada brasileiro recebe o seu pedaço do pico
do Cauê (e do Fundão e do Córrego do Feijão) na forma dos R$ 29,2 bilhões que
a Vale declara
pagar em tributos no Brasil (US$ 5,9 bilhões).
(Muito embora cada um de nós, brasileiros,
deveríamos ter direito ao nosso pedaço no pico do Cauê pelo US$ 1,1 bilhão em
isenções fiscais usufruídos pela empresa em âmbito federal, sem falar nos
benefícios estaduais.)
Cada um de nós também recebe o nosso pedaço
do pico do Cauê (e de Mariana e de Brumadinho) representado em parte expressiva
dos 378,1 milhões de toneladas de minério de ferro exportadas em 2023, que
representaram US$ 30,6 bilhões em receita que evitaram que o dólar rompesse a
barreira de R$ 6 no ano passado.
Até artistas e amantes das artes recebemos o
nosso pedaço do pico do Cauê com os R$ 221,7 milhões que o Instituto
Cultural Vale está
distribuindo em patrocínios só neste ano de 2024.
Sobretudo, todos nós recebemos o nosso
quinhão do pico do Cauê (e de Mariana e de Brumadinho) na forma de todos os
produtos à base de ferro e aço sem os quais a nossa vida, da forma como a
levamos, seria inviável.
Talvez seja por isso que cada um de nós -
acionistas, cidadãos, consumidores - tenhamos nos resignado com o que a Vale provocou
em Mariana e em Brumadinho. Possivelmente pelo pedaço que cada um de nós recebe
pela destruição do pico do Cauê e do Vale do Rio
Doce (que foi riscado do nome da Vale em
2009, muito antes de Mariana e Brumadinho), nossa indignação não tenha ido
muito além das poucas semanas após o rompimento das barragens, tal qual a queda
nas cotações da empresa na bolsa.
E certamente por isso o acordo celebrado por
autoridades e os executivos da Vale e
da BHP na semana passada, no Palácio do Planalto, diante do presidente Lula,
tenha sido comemorado tão efusivamente por todos aqueles que terão um pedaço
ainda maior no pico do Cauê e nas tragédias de Mariana e Brumadinho.
Afinal, o governo federal, os Estados de
Minas Gerais e do Espírito Santo e os municípios do Vale do Rio
Doce irão administrar a parte principal do pacote de R$ 170
bilhões que as empresas responsáveis pela maior tragédia ambiental da história
brasileira aceitaram pagar para se livrarem do peso dessa destruição.
Pouco importam as famílias que perderam seus
entes queridos, as vidas das comunidades ribeirinhas, o Rio Doce e a fauna
marinha.
R$ 170 bilhões e vida que segue.
Como diria Drummond, no complemento do seu
poemeto sobre o pico do Cauê “na cidade toda de ferro / as ferraduras batem
como sinos. / Os meninos seguem para a escola. / Os homens olham para o chão. /
Os ingleses compram a mina. / Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na
derrota incomparável.”
Pois é!
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