O Estado de S. Paulo
O principal capital das universidades é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do estudo, da pesquisa, da independência intelectual
Quando Gustavo Capanema quis construir a Universidade do Brasil, na década de 1930, ele abriu um concurso internacional para construir a Cidade Universitária. Ganhou Marcello Piacentini, o arquiteto de Mussolini. Os perdedores, o grupo de Lucio Costa associado ao francês Le Corbusier, protestaram, e acabaram recebendo como compensação o projeto do edifício do Ministério da Educação. Com a guerra, a universidade de Piacentini nunca passou da maquete. O edifício do Ministério da Educação ainda resiste, meio abandonado no caos urbano do centro do Rio de Janeiro. Aprendi isso quando pesquisava os arquivos de Capanema, e me fazia lembrar a frase de que uma universidade começa com uma conversa informal ao pé de uma lareira, que havia lido nos papéis que descreviam a fundação, cem anos antes, da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde estive para meus estudos de doutorado.
A ideia de que universidades são feitas por
comunidades de pessoas, e só depois por leis e edifícios, foi o fio condutor de
uma série de estudos em que participei ao longo dos anos. Claro, elas precisam
de prédios, equipamentos, pessoal administrativo, e atender às expectativas dos
estudantes, da sociedade e das profissões. Mas seu principal capital, que faz a
diferença, é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do
estudo, da pesquisa, da independência intelectual e da competência técnica, que
desenvolvem e transmitem a seus alunos e a toda a sociedade. Se isso é verdade,
então os professores universitários formariam uma espécie de profissão das
profissões, uma comunidade cuja identidade central seriam esses valores, que
transcenderiam outras identidades institucionais, profissionais e mesmo
nacionais.
Existe, no entanto, outra visão, a de que o
ideal das profissões autônomas é um mito, que elas na prática são ou acabam
sendo controladas pelas grandes burocracias públicas e privadas. Os
profissionais autônomos se transformariam em empregados, e as comunidades
profissionais, em sindicatos de um proletariado letrado. Quando, na década de
1990, fizemos uma pesquisa sobre os professores universitários no Brasil,
constatamos que havia, no País, um pequeno grupo de professores de alta
formação, pesquisadores, que compartilhavam os valores de autonomia e liderança
intelectual da comunidade acadêmica; um grupo bem maior, de formação
intermediária, funcionários das universidades públicas, em que prevalecia a
identidade corporativa e sindical; e um terceiro grupo fragmentado, sem
identidade própria, trabalhando de forma precária para o mercado de ensino
superior privado.
O que aconteceu com os professores
universitários brasileiros desde então? Olhando os dados, algumas coisas chamam
a atenção. Entre 2010 e 2023, o número de estudantes universitários passou de 6
milhões para 10 milhões, mas o número de professores permaneceu praticamente o
mesmo, cerca de 350 mil, metade no setor público, metade no privado. A razão é
que o sistema público cresceu pouco, e o sistema privado aumentou sua
eficiência pelo uso mais intensivo de seus professores, sobretudo através do
ensino a distância. O número de alunos por professor no setor privado subiu de
22 para 40, enquanto, no setor público, permaneceu entre 10 e 12. Desapareceu,
praticamente, a figura do professor horista no setor privado, substituído pelos
contratos em tempo parcial.
Depois, os professores ficaram mais velhos e
mais qualificados. Essa é a tendência geral, mas existem grandes diferenças por
setor. No setor privado, a proporção de professores de 40 anos ou menos passou
de 46% para 35%. Nas universidades federais, de 37% para 26%; e nas
universidades paulistas, de 16% para 9%. A proporção de professores com
doutorado passou de 56% para 75% no sistema federal, de 15% para 33% no sistema
privado, e permaneceu acima de 95% no sistema paulista.
Ao mesmo tempo, as vantagens relativas dos
professores universitários, em termos salariais, pioraram. Em 2012, ter um
diploma universitário significava ganhar 253% acima da média do País, duas
vezes e meia a mais. Ser professor universitário do sistema privado significava
ganhar 300%; e, do setor público, 400%. Em 2023, essas proporções haviam caído
para 202%, 268% e 357%, respectivamente, pelos dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad).
Só com esses dados não dá para dizer quanto
ainda persiste, entre eles, o modelo das comunidades profissionais autônomas,
das corporações profissionais ou dos sindicatos. Mas temos indicações, por
outros lados, de que o prestígio dos professores tem caído e sua autoridade, e
da ciência que incorporam, contestada. No setor privado há um processo de
profissionalização fragmentada que parece se consolidar: os professores
trabalham mais, ganham menos, não têm estabilidade no trabalho, e formam um
“precariado” que não consegue se organizar para defender seus interesses. No
setor público, com a maior qualificação, envelhecimento e perda relativa de
vantagens, podemos entender que prevaleça entre muitos uma atitude defensiva e
de ressentimento, mais do que a de uma profissão autônoma e altiva. E quase não
temos lareiras para nos sentarmos a seu pé para conversar.
Pois é!
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