terça-feira, 5 de novembro de 2024

Boom econômico dos EUA é uma miragem - Ruchir Sharma

Valor Econômico

Suas características desiguais e frágeis ajudam a explicar por que tantos americanos votarão com ressentimento

Os Estados Unidos vão às urnas enquanto a economia parece mostrar uma força incomum. A um crescimento médio de quase 3% por nove trimestres consecutivos, o país vem atraindo enormes fluxos de dinheiro estrangeiro, que ajudaram a elevar sua participação no mercado acionário mundial para bem acima de 60%, um recorde. Ainda assim, os eleitores continuam pessimistas a respeito de suas perspectivas econômicas e financeiras.

Por quê? Para a maioria dos americanos, o crescimento dos Estados Unidos é uma miragem, puxado pelo aumento da riqueza e dos gastos discricionários dos consumidores mais ricos e distorcido pelos crescentes lucros das grandes empresas. Os tempos parecem ser bons, mas esse crescimento é desigual, frágil e altamente dependente dos gastos e do endividamento do governo, que em geral é o credor de última instância.

Embora o mundo admire o consumidor “inafundável” dos Estados Unidos, um número cada vez maior de pessoas tem ficado excluído do mercado imobiliário e acumulado dívidas no cartão de crédito. Os 40% mais pobres em renda agora representam 20% de todos os gastos, enquanto os 20% mais ricos respondem por 40%. É a maior diferença já registrada nos EUA e é provável que se amplie ainda mais, segundo a consultoria Oxford Economics. Agora, a maioria dos americanos precisa gastar uma fatia tão grande de seu dinheiro nos itens essenciais, como os alimentos, que pouco sobra para extras como viagens ou jantares fora.

Os gastos discricionários estão se tornando um luxo possível apenas para os mais ricos, e o mesmo vale para o otimismo. A confiança desabou durante a pandemia e, desde então, recuperou-se muito mais no terço mais rico dos consumidores do que nos terços médio ou inferior. O efeito do aumento da riqueza como um todo sobre os gastos também está concentrado entre os ricos, que possuem a maioria dos ativos.

Nesta década, a alta dos mercados financeiros adicionou US$ 51 trilhões à riqueza dos Estados Unidos e, embora a geração Y tenha se saído especialmente bem, quase todos os seus ganhos se concentraram nos mais ricos dentro dessa faixa etária. Agora, à já existente disparidade de riqueza entre jovens e idosos, podemos somar essa nova fonte de divisão e de ressentimento dentro da geração mais jovem.

Os Estados Unidos cada vez mais se parecem a uma economia folhada a ouro, com uma camada reluzente, mas superficial. No setor empresarial, as dez maiores empresas respondem por 36% do valor de mercado das ações - um recorde desde que os dados começaram a ser registrados, em 1980. A ação mais valiosa dos EUA é negociada a um valor relativo 750 vezes maior do que qualquer ação no quartil inferior - uma diferença bem maior do que a observada há dez anos, de apenas 200 vezes, e a maior desde o início dos anos 1930.

À medida que os já grandes vão ficando ainda maiores, a ansiedade assombra os demais. A porcentagem das pequenas empresas que expressam incerteza sobre a economia e o próprio futuro está atipicamente alta, e seu grau de confiança está em níveis raramente vistos fora de recessões.

A maioria dos analistas vê as grandes empresas de tecnologia como um ponto positivo para a economia dos EUA, que impulsiona o crescimento, justifica os altos preços relativos das ações e atrai um fluxo constante de capital. Nos anos 2010, os estrangeiros investiram cerca de US$ 30 bilhões por ano em ações dos EUA. Em 2024, o valor deve chegar a US$ 350 bilhões.

Desta vez, quem está abrindo o caminho para o boom econômico é o governo; seu déficit mais do que dobrou nos últimos dez anos e ultrapassou 6% do PIB. A dívida pública cresceu US$ 17 trilhões neste período, tendo igualado o aumento somado dos 240 anos anteriores

Normalmente, no entanto, booms econômicos costumam ser financiados por aumentos do endividamento do setor privado. O governo apenas aumenta o seu depois, para ajudar a suavizar o impacto quando o boom perde força. Desta vez, quem está abrindo o caminho é o governo; seu déficit mais do que dobrou nos últimos dez anos. Ultrapassou os 6% do Produto Interno Bruto (PIB) e projeta-se que crescerá ainda mais nos próximos anos. A dívida pública está explodindo. Aumentou em US$ 17 trilhões nos últimos dez anos, tendo igualado nesse período o aumento dos 240 anos anteriores - quase desde a independência dos EUA.

Pela definição contábil, o déficit governamental é a imagem invertida no espelho da poupança privada, que inclui os lucros das empresas. Historicamente, os lucros empresariais dos EUA aumentam com o déficit, um vínculo detectado já em 1908 pela “equação de Kalecki-Levy”. Desde então, isso tem se mantido, embora com ainda mais força nos tempos recentes, uma vez que o aumento dos déficits turbina o crescimento dos lucros empresariais.

Democratas e republicanos discordam em muitos aspectos, mas estão unidos na indiferença ao déficit, que deverá ter forte aumento, não importa quem vença as eleições de hoje. Com tanto dinheiro entrando, por que não continuar a se endividar?

Há dois anos, com o fim da era de juros zero, os chamados “vigilantes dos títulos” acordaram de um longo sono e começaram a punir [vendendo seus papéis] a imprudência fiscal de alguns países, primeiro, os mercados de fronteira, como Sri Lanka e Gana, depois, os emergentes como Brasil e Turquia, e, mais recentemente, os desenvolvidos, a começar pelo Reino Unido e, agora, a França. Graças à forte demanda pela moeda preferida no mundo, os EUA parecem estar menos vulneráveis, mas nenhum país na história fica imune para sempre.

Com déficits em alta, inflando artificialmente o crescimento dos Estados Unidos, já há sinais de que essas forças pressionam os juros para cima. Impérios já fracassaram muitas vezes quando não conseguiram mais cobrir as próprias dívidas, e, pelo rumo que os Estados Unidos estão tomando, o próximo presidente pode aprender essa lição da maneira mais difícil. (Tradução de Sabino Ahumada)

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