Valor Econômico
Até quando aceitaremos passivamente a ameaça de militares à democracia?
No Brasil, a arte imita a vida e a história
se repete não como farsa, mas em golpes que nos prendem a um passado que nunca
deixa de nos assombrar.
Os milhões de brasileiros que têm lotado os
cinemas para assistir a “Ainda Estou Aqui”, obra que narra o drama da família
Rubens Paiva durante a ditadura militar, tomaram conhecimento, na última
semana, de novas evidências da trama de apoiadores de Jair Bolsonaro, inclusive
militares de alta patente da ativa e da reserva, articulando-se praticar
atentados terroristas e anular a vontade popular expressa nas urnas em 2022.
Ao longo da nossa história, foram vários os episódios de tentativas, algumas frustradas e outras infelizmente bem-sucedidas, de intromissão dos militares no jogo político. Essa permanente ameaça traz insegurança democrática e econômica, e deveria ser definitivamente afastada. Porém, se não houver uma real mobilização de boa parte da sociedade, nada mudará.
O próprio governo Lula precisa dar o primeiro
passo, deixando a pusilanimidade de lado e cumprindo a promessa de campanha de
mandar os militares de volta para os quartéis. Para isso, é preciso vetar a
nomeação de militares da ativa e da reserva para cargos em comissão e dotar o
Ministério da Defesa, que deveria controlar as Forças Armadas, de uma
burocracia estável de natureza civil.
No entanto, dados do Portal da Transparência
revelam que, em setembro (última informação disponível) havia 2.892 militares
ocupando cargos no governo federal. A maioria está concentrada bem ao lado de
Lula, em exercício na Presidência da República (997), enquanto outro tanto está
tomando conta dos interesses da própria corporação no Ministério da Defesa
(946).
Há ainda outras centenas de fardados
infiltrados no Ministério da Educação (585, a maioria na Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares), no Ministério da Saúde (200) e em mais de duas dezenas
de outros órgãos. Com tanto milico ocupando cargo de civil, fica difícil conter
sua fome de poder.
Acadêmicos e intelectuais que escreveram
artigos e mais artigos de jornal louvando o trabalho de Daron Acemoglu, James
Robinson e Simon Johnson como prêmio Nobel de Economia neste ano precisam
deixar a teoria de lado e defender medidas concretas para romper o ciclo de
instituições extrativistas que concentram poder e prendem o Brasil ao
subdesenvolvimento.
Podem começar, por exemplo, pressionando o
Congresso a aprovar a PEC nº 42/2023, que exige que os militares da ativa das
Forças Armadas, para disputarem eleições, tenham que previamente solicitar a
sua transferência para a reserva. Aliás, o texto atualmente em tramitação no
Congresso deveria ser aperfeiçoado, exigindo uma quarentena mínima de quatro
anos, além de estender as mesmas restrições para egressos das polícias
militares, civis e federal, além de guardas civis.
Outra medida louvável seria a extinção da
Justiça Militar. O Brasil é um dos poucos países relevantes do mundo a ainda
possuir um ramo do Poder Judiciário exclusivo para julgar crimes militares. Não
se trata apenas de uma Justiça dos militares, é uma Justiça para os militares -
afinal, sendo composto por dez ministros vindos da caserna (três generais da
Marinha e da Aeronáutica e quatro do Exército) e apenas cinco civis, o Superior
Tribunal Militar tem uma forte inclinação corporativista, que tende a inocentar
ou abrandar penas para os criminosos de fardas. Sem falar que é uma instituição
cara: em 2022, cada processo pendente no STM custou R$ 162,5 mil (mais de R$
600 milhões no total), contra um custo de R$ 6,4 mil por causa civil em
tramitação no Superior Tribunal de Justiça.
Economistas e operadores do mercado
financeiro que não se cansam de pedir cortes nas despesas do governo deveriam
deixar a obsessão com o financiamento das políticas públicas por um momento e
lutar por um verdadeiro ajuste nas contas dos militares.
Os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet
até que têm tentado incluir os fardados no ajuste fiscal, mas a resistência é
grande. Talvez com a ajuda de influentes agentes do mercado consiga-se fazer o
Congresso finalmente aprovar uma reforma da Previdência para os militares.
Estabelecer uma idade mínima para a passagem
à reserva, elevar a contribuição de ativos e inativos, eliminar a promoção
automática de patente quando se passa à inatividade e rever o regime de pensões
militares é um pacote básico para reduzir um pouco o déficit anual de quase R$
48 bilhões (13% de todo o desequilíbrio previdenciário federal, incluindo INSS
e o regime dos servidores civis, muito mais numerosos).
Além da Previdência, se investigarem melhor
as contas dos militares, a economia pode ser muito maior. Somente em pagamentos
extras para os adidos e outros militares que serviram no exterior em 2023
(foram 2.454 no total), em embaixadas e organismos internacionais, a conta em
2023 ficou em R$ 768,8 milhões.
Eunice e Rubens não merecem apenas um Oscar
pela sua triste e bela história. Em sua memória, precisamos fazer um país
melhor - com os militares no seu devido lugar, bem longe do poder.
Exatamente!
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