domingo, 1 de dezembro de 2024

A costura a inferno aberto do golpe - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Conspiração às claras é estranho fruto de uma realidade paralela

Quando do atentado do Riocentro, 40 e tantos anos atrás, dirigíamos a TV-E, ao lado de um colega universitário. Recebemos então visitas, uma delas do coronel-ministro. Ele recomendou cautela no noticiário, pois "agimos abertamente, enquanto a direita age embuçada". A conversa, jogo de cena para encobrir censura, valeu uma resposta sorrateira: "Será mesmo, ministro, é difícil validar essa hipótese..." E ele "como assim, então não acham que seja coisa da direita?" Retrucamos: "se estão embuçados, como saber o que são?"

O diálogo enviesado ficou na memória, pois naquele instante já estava claro que o atentado provinha do sistema. Logo, só eles próprios saberiam quem estava encapuzado. O regime militar estertorava (daí, aliás, a razão do terrorismo), já não mais se invadiam residências de cidadãos inocentes como o ex-deputado Rubens Paiva, mas ainda era tempo de cautela.

O incidente ganha pertinência no quadro das 37 pessoas acusadas de sedição, o núcleo de governo do ex-presidente Bolsonaro, cujos crimes atribuídos podem chegar a 28 anos de prisão. Além das já conhecidas tentativas de abolição violenta do Estado de Direito, estarrece o intento de assassinar as mais altas autoridades da República recém-eleitas.

Há de velho e novo nisso tudo. Nova é a transparência do mal à luz do dia. Meio século atrás, algo se embuçava nas trevas dos porões. Mas a trama centralizada no Planalto sempre transpareceu no regurgitamento verbal do mandatário, nos acampamentos, nas ações terroristas, nos documentos e nos celulares dos mandantes. Crime organizado, com delinquentes agindo a inferno aberto.

Conspiração às claras é estranho fruto de uma realidade paralela, com espionagem semioficial e forma espectral de vida criada pelas redes. A massa arrebanhada trafegava num planeta imaginário feito de celulares, enquanto uma quadrilha empoderada, os mentores da trama, surfava na mesma impunidade sonhada pelos escritórios do crime, despercebido substrato do assassinato de Marielle Franco. Ao lado, inédita lógica tabajara: o golpe seria acionado por vivandeiras acampadas, nada de tanques desmoralizados por fumaça. Era, na autodefinição de um dos generais sediciosos, um "alopramento da rataria, com ética abaixo da cintura".

Ações toscas, linguagem sórdida de submundo, mas com a coerência sádica explicitada por M. Blanchot como o cerne da moral sadiana: "A única regra de conduta é que eu prefira tudo que me afeta com felicidade e que eu tenha como nada tudo que em minha preferência possa resultar de mal para o outro" (em "Lautréamont e Sade"). Nenhuma razão política, apenas o gozo de lesar o próximo.

Na derrama de ficções, a única verdade é a traição. Valeria para todo golpe de Estado. Mas, no caso, o álibi fantasioso do anticomunismo deu lugar a uma modalidade extrema, moralmente intolerável e sádica de agarramento ao poder. Nada, como no passado, de matar ideias de esquerda. O que esteve mesmo em pauta foi o desejo confesso por parte de chefetes e vivandeiras, de exterminar fisicamente o outro de si mesmo, o vizinho pensante. Razoável agora é a perspectiva de que as "quatro linhas" traçadas com água suja se convertam nas quatro paredes sólidas da punição.

 

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