Valor Econômico
Com controle republicano do Congresso e da
Suprema Corte, o presidente eleito deve ser ainda mais belicoso em seu segundo
mandato
Kamala Harris não foi a única a sofrer uma
derrota decisiva nas eleições presidenciais americanas de 2024. Foi também uma
derrota na “batalha pela alma” do Estado de Direito - instituição que define a
democracia americana há quase 250 anos. A ilustração pungente desse fato foi o
pedido do advogado especial Jack Smith para que o Departamento de Justiça
desistisse de processar o presidente eleito Donald Trump.
A vitória de Trump livra-o da sua tentativa
de anular as eleições presidenciais de 2020. Muito provavelmente, ele também
escapará da responsabilidade legal nos outros processos contra ele movidos nos
Estados da Flórida, Geórgia e Nova York.
Pior ainda, o ataque de Trump ao Estado de Direito está só começando. Ele é um conflito de interesses ambulante que não abriu mão de nenhuma de suas participações financeiras. Clamou pelo “fim” da Constituição, brincou com suas aspirações ditatoriais, elogiou líderes autoritários como o presidente russo, Vladimir Putin, e ameaçou atacar jornalistas e “prender” seus opositores políticos.
Tendo encenado o “maior retorno político” e
com seus aliados firmemente no controle de ambas as câmaras do Congresso e da
Suprema Corte, é provável que Trump seja ainda mais belicoso em seu segundo
mandato. Inspirando-se no projeto ultraconservador da Fundação Heritage, o
Projeto 2025, ele está escolhendo fiéis que partilhem de seu desprezo pelo
Estado de Direito para liderar as principais agências de aplicação da lei, como
o FBI, e prometeu deportações em massa e “proibições de viagens”
discriminatórias.
Defensores do Estado de Direito têm de
reconhecer que a lei corre o risco de se tornar uma concha oca e a sua
esterilidade um terreno fértil para o populismo. Ele deve restaurar a fé das
pessoas, tornando-se um símbolo de justiça e baseando seu apelo na moralidade
Desde o escândalo de Watergate, a maioria dos
presidentes dos EUA tem voluntariamente demonstrado alguma contenção no
exercício dos seus poderes, particularmente em relação ao Departamento de
Justiça, que espera-se que funcione afastado da política de Washington. Mas
Trump não tem qualquer respeito por essas normas ou tradições e “testar os
limites” é seu cartão de visitas.
Juristas e cientistas políticos têm jogado
com o sistema de pesos e contrapesos dos Estados Unidos em antecipação de uma
segunda presidência de Trump, e as perspectivas não são boas. Como explica
Barton Gellman, do Centro Brennan para a Justiça, “os jogos demonstraram
repetidamente que um autoritário no controle do poder Executivo, com pouca
preocupação com os limites legais, detém uma vantagem estrutural sobre qualquer
esforço legal para o restringir”.
O risco só aumentou após a decisão histórica
da Suprema Corte dos EUA no caso Trump contra os Estados Unidos, em que a
maioria conservadora concedeu ao presidente “imunidade presuntiva de acusação
em todos os seus atos oficiais”. Entretanto, o poder de perdão presidencial é
mais abrangente do que nunca, e ferramentas como a Lei da Insurreição, que
permite ao presidente o uso interno das Forças Armadas para vários fins
vagamente definidos, estarão à sua disposição.
Trump já fez troça de todas as tentativas
legais para contê-lo. Sua condenação no processo de “dinheiro de cala-boca” em
Nova York foi um impulso para sua popularidade - e para seus cofres de
campanha. Os republicanos se mantiveram fiéis ao seu líder ungido e alguns até
apareceram no julgamento para lhe oferecer seu apoio. Enquanto Harris e os
democratas enfatizaram a ameaça que Trump representa para o Estado de Direito,
muitos eleitores simpatizaram com Trump, que acusou o governo Biden de travar
uma “guerra legal” contra ele.
O fracasso da lei em responsabilizar Trump
reaviva um debate antigo, que tem se desenrolado tanto em abstrato como em
contextos específicos, desde a legislação nazista e a escravatura até o regime
do apartheid sul-africano, sobre quando é que as leis “más” ou “perversas”
deixam de ser válidas. A escola de pensamento dominante na teoria jurídica - o
positivismo, iniciado por pensadores como Jeremy Bentham, Hans Kelsen e HLA
Hart - defende que “o direito é o direito” como uma questão de fato social. De
acordo com esta “tese da separação”, a validade da lei não tem nada a ver com
moralidade e exige apenas que os funcionários a aceitem (adotem o “ponto de
vista interno”) e que seja obedecida em linhas gerais. Ao fazê-lo, correm o
risco de legitimar regimes em que o poder tem razão.
O trabalho de Gustav Radbruch, filósofo
alemão relativamente esotérico, pode ser mais relevante para este momento. A
Fórmula de Radbruch afirma que “(o) conflito entre justiça e segurança jurídica
pode muito bem ser resolvido desta forma: O direito positivo, assegurado pela
legislação e pelo poder, tem precedência mesmo quando seu conteúdo é injusto e
não beneficia o povo, a não ser que o conflito entre a lei e a justiça atinja
um grau tão intolerável (destaque meu) que a lei, como ‘lei defeituosa’, tenha
de ceder à justiça”.
Radbruch, que no início tinha inclinações
positivistas, desenvolveu esta fórmula como reação ao fato de ver os nazistas
chegarem ao poder na Alemanha por meios legais. Segundo ele, “o positivismo,
com o seu princípio de que ‘uma lei é uma lei’, tornou de fato a profissão
jurídica alemã indefesa contra estatutos arbitrários e criminosos”. A
ressonância histórica aqui é difícil de ignorar. O regime do Estado de direito
americano encontrou seu par em Trump; de fato, sua própria popularidade parece
dever algo à desconfiança do público em relação a ele.
Para que o Estado de Direito tenha chance de
lutar, seus defensores têm de reconhecer que a lei corre o risco de se tornar
uma concha oca e a sua esterilidade um terreno fértil para o populismo
combativo. O Estado de Direito deve restaurar a fé das pessoas, tornando-se um
símbolo de justiça e baseando seu apelo na moralidade e num significado
partilhado. Como o próprio preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos
implica, a busca de uma “União mais perfeita” está inextricavelmente ligada ao
esforço de “estabelecer a Justiça”. Mas, para ter sucesso, o Estado de Direito
terá de descobrir uma alma. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)
*Antara Haldar, professora associada de
Estudos Jurídicos Empíricos na Universidade de Cambridge, é membro convidado da
Universidade de Harvard e pesquisadora principal de uma bolsa do Conselho
Europeu de Investigação sobre direito e cognição.
Tão preocupado com a demora nos EUA
ResponderExcluirE a ditadura do STF/ PT aqui no Brasil?
Democracia nos EUA
ResponderExcluirCentenas de presos políticos sem processos legais
ResponderExcluirMais de 200 exilados só na Argentina, a maioria passando necessidades
Jornalistas exilados nos EUA
Estamos vivendo uma realidade semelhante a 64 na ditadura militar
Excelente texto, análise perfeita! Trump é a maior ameaça à Democracia dos EUA! E ao próprio país, pois um mentiroso maluco decidirá as coisas mais perigosas e importantes por lá, e certamente influenciando o mundo inteiro.
ResponderExcluirQual a solução???? Falar que é o partido democrata fazer boas gestões e proibir o Partido Republicano de existir, e caso insista de existir, proibir as pessoas de ter livre arbítrio pra votar neles, ah sim, esqueci, aí a turma da "democracia" mostraria a verdadeira face, e terão que parar de fazer textos hipócritas cheias de mentira ras.....
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