Folha de São Paulo
Lula 3 faz gol; UE terá disputa política ou
até jurídica; efeito vai levar ao menos década
O Brasil, com o Mercosul,
enfim deu passo importante para fechar um acordo de
(quase) livre comércio relevante e, se tudo der certo, inédito
(não há livre comércio nem mesmo no Mercosul).Abertura comercial não era ideia
querida no Brasil, ainda menos para a esquerda. Mas é um governo de esquerda
que está prestes a abrir os portos às nações amigas da União
Europeia (ou "muy amigas", como a França). Além
disso, ou apesar disso, Lula 3
conseguiu restringir bastante o acesso dos europeus às compras do governo.
Apesar de tanta festa, não se conhece o texto literal do acordo. Como era esperado e na prática inevitável, o Brasil conseguiu apenas aumentos de cotas (limites quantitativos de exportação) em produtos em que é muito competitivo (carnes, por exemplo). Melhor do que nada. Mas o mercado europeu continua fechadão nesse aspecto (de outro modo, poderia haver revolta ainda maior no agro da UE).
Faltam aprovações formais, claro.
Politicamente, a coisa parece estar mais bem arranjada do que nunca na União
Europeia, mas pode haver rolo. Dizem entendidos que o processo de revisão
legal, tradução e assinatura do acordo pode levar um ano. Depois, tem voto.
Para a
Comissão Europeia, uma espécie de Executivo da UE, a parte comercial do acordo
por ser aprovada sem apoio unânime dos países do bloco. Interessados
no bloqueio do acordo teriam de juntar votos de quatro países com população
equivalente a pelo menos 35% da UE. Difícil.
Mas a França, principal adversária do acordo,
e coalizões políticas e sociais em outros países, dizem que tal mecanismo
(separar acordo comercial do resto, "splitting") é ilegal. Em tese, o
caso poderia parar na Corte Europeia de Justiça.
Note-se ainda que a redução de impostos de
importação a zero pode levar de 4 a 10 anos, a depender do grupo
("cesta") de produtos. No caso de veículos com motor de combustão,
pelo menos 15 anos (o acordo de liberalização pode ser suspenso por até 5 anos
em caso de excesso de importações). No caso de elétricos ou de tecnologias
novas, de 18 a 30 anos.
Quanto à abertura do mercado de compras dos
governos, as restrições parecem grandes, ao menos pelo resumo do acordo
divulgado pelo Itamaraty. Trocando em miúdos, trata-se da possibilidade
de estrangeiros participarem em condições equânimes de concorrências para
o fornecimento de bens e serviços para o governo. Podem não ser equânimes se o
governo der incentivos a empresas, produtos ou tecnologias nacionais por meio
dessas compras. É instrumento de política industrial e desenvolvimento.
Pelo acordo, o mercado fica fechado no caso
de compras do SUS. Terá restrições no caso de "encomendas
tecnológicas", benefícios para micro e pequenas empresas, agricultura familiar.
Compensações ("offsets") tecnológicas e comerciais não terão prazo
para acabar, tópico ainda pouco claro. Do que se trata: quando se importam
bens, em geral de defesa ou complexos, um governo pode requerer em troca
transferência de tecnologia, investimento etc.
A frase mais interessante do texto do
Itamaraty é: "[houve] a preservação de margens de preferências para
produtos e serviços nacionais". Aqui, nesses termos gerais, passa boi,
passa boiada: pode ser qualquer benefício para produtos nacionais em
concorrências.
Mais um gol do governo.
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