O Globo
STF recusou o argumento de que crimes contra
a Humanidade são imperdoáveis e imprescritíveis
Flávio Dino provocou
o STF a
renunciar à renúncia. Quase 15 anos atrás, o tribunal reafirmou a Lei de
Anistia, recusando o argumento de que crimes contra a Humanidade são
imperdoáveis e imprescritíveis. De lá para cá, os juízes supremos recusam-se a
ouvir até mesmo ações sobre as pessoas que foram “desaparecidas” pela ditadura
militar. No seu “basta”, Dino propõe um limite: a ocultação de cadáver é um
crime continuado, não um evento do passado.
A decisão de 2010 do STF invocou a intocabilidade dos “pactos que conduziram o Brasil à democracia”. Os juízes de capa preta prenderam o Brasil à chantagem militar de 1979 — ao intercâmbio da abertura política pelo perdão aos gerentes do subterrâneo. No fundo, proclamaram que a Constituição de 1988 é refém de atos jurídicos oriundos de um regime ilegal e, portanto, que à nação brasileira ficam vedados os direitos à justiça e à memória exercidos pelo Chile e pela Argentina.
“Anistia é esquecimento, virada de página,
perdão para os dois lados”, decretou Marco Aurélio de Mello. O ministro do STF
pronunciava uma dessas aberrações jurídicas monumentais. Haveria, segundo ele e
a maioria do tribunal, uma lei imune à revisão constitucional ou parlamentar,
cercada pela fronteira do tabu.
Sob o tacão da anistia, surgiu nossa Comissão
da Verdade, cuja finalidade era fabricar um simulacro de memória esculpido
pelas conveniências do presente. Tribunais produzem verdade jurídica: uma
sentença definitiva. Historiadores escrevem verdade histórica: uma narrativa
temporária, sujeita a revisões. Nossa Comissão da Verdade oscilou no vácuo
entre uma e outra, sem gerar as implicações práticas da primeira nem as
reflexões da segunda.
O debate sobre a Lei de Anistia foi superado
pela tirania do tempo. Os réus potenciais já morreram ou atravessam a quadra
final de sua vida. Mas uma ferida segue aberta: os “desaparecidos”. O filme
“Ainda estou aqui”, citado na decisão de Dino, alerta sobre ela. Os familiares
dos que “sumiram” continuam privados de um direito humano básico. Eles não têm
direito a uma lápide, a um lugar de luto e de memória.
Diferentemente da Argentina ou do Chile,
a África do Sul não
prendeu os responsáveis pelas violações dos direitos humanos durante a era do
apartheid. Contudo, ao contrário do Brasil, sua Comissão da Verdade ganhou
estatuto judicial. Tribunais conduziram investigações e esclareceram os
eventos. A colaboração dos réus figurou como condição prévia para o perdão.
O sistema sul-africano produziu memória
firme. O STF tem, a partir da provocação de Dino, a oportunidade de copiá-lo,
pelo menos para o caso dos “desaparecidos”. Sem encarcerar ninguém ou revogar a
Lei de Anistia, pode instaurar procedimentos judiciais de investigação,
reconstruindo as histórias ocultas dos crimes estatais de eliminação das 210
pessoas catalogadas como “sumidas”.
Rubens Paiva está entre elas. A eventual
descoberta de seu corpo vale bem mais — também, quero crer, para o diretor e os
atores de “Ainda estou aqui” — que qualquer prêmio cinematográfico
internacional.
A anistia corrompeu a memória das Forças
Armadas, que continuam a nomear o golpe de Estado como revolução,
ensinam uma história amputada nas escolas militares e, até há pouco, celebravam
o 31 de março em ordens do dia subversivas. O problema é da sociedade
brasileira, não apenas dos familiares dos “desaparecidos”. Um sintoma da doença
encontra-se no inquérito da PF sobre a articulação do golpe bolsonarista. A
cura passa pela verdade judicial, com sua carga de desonra para os que
torturaram, assassinaram e esconderam os cadáveres de indivíduos sob tutela estatal.
Dez anos atrás, o ministro Teori Zavascki
suspendeu liminarmente a ação penal contra cinco militares acusados pelo
“desaparecimento” de Rubens Paiva. Após a morte de Zavascki, em 2017, a
relatoria do caso passou a Alexandre de
Moraes, que preferiu o caminho da perene inação. Os juízes do STF
cantam, em prosa e verso, o valor dos direitos humanos. Logo saberemos o valor
de seus discursos políticos em moeda judicial.
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