O Globo
A oposição ganhou e não levou na Venezuela, e
a ditadura de Maduro vai se tornando uma paisagem natural
Não tenho nenhuma conclusão definitiva sobre
o ano que termina, exceto que passou rápido, voou como todos os outros
ultimamente.
Destaco a eleição de Trump como algo que,
indiretamente, marcará nossas vidas. Comemoro a queda de Bashar
al-Assad na Síria, mesmo sabendo que
inaugura uma era de incerteza.
Li sobre o impacto do El Niño no
contexto das mudanças climáticas, mas me surpreendi com as devastadoras
tempestades no Sul. Tudo o que tentamos antecipar numa sessão do Senado era
quase nada diante da destruição que se aproximava.
Sofremos com os gritos sobre escombros em Gaza, mas hoje se tornaram apenas gemidos. Quase não se fala mais nisso. Foi horroroso o desfecho do processo eleitoral na Venezuela. A oposição ganhou e não levou, e a ditadura de Maduro vai se tornando uma paisagem natural.
Felizmente, há o consolo dos livros. Chegam
diariamente, e há aqueles que compro on-line. Com essa história de bastar um
toque para comprá-los, tenho me excedido. Aliás, como nos tempos das visitas
frequentes às livrarias, acumulo mais do que o tempo livre me permite ler.
Curiosidade. Li três relatos autobiográficos
de forma isolada e descobri que os três autores são amigos: Salman
Rushdie, Martin Amis e Christopher Hitchens. Escrevi um texto sobre
o livro “Faca”, em que Rushdie conta o atentado à faca que sofreu. O livro de
Amis “Os bastidores” é sobre a arte de escrever, cheio de intuições geniais. E,
finalmente, Hitchens fala, em “Mortality”, de sua convivência com um câncer
devastador, passando por clínicas ultramodernas, fazendo palestras e debates
heroicamente, na base de morfina e adrenalina.
Hitchens era um intelectual exuberante.
Esteve no Brasil, mais precisamente na Festa Literária Internacional de Paraty.
Participamos de uma mesma mesa. Divergimos frontalmente quanto à invasão do
Iraque, para mim baseada numa mentira que Colin Powell contou na ONU:
o Iraque, disse ele, tinha armas de destruição em massa. Hitchens ficou um
pouco irritado comigo e creio que me tomou como um radical de esquerda. Alguns
meses depois, mencionou minha trajetória com simpatia num artigo. Uma prova de
grandeza e generosidade.
O mais importante em “Mortality” é ver tanta
lucidez e coragem diante de uma situação terrível, o corpo manipulado por
estranhos, o mergulho irreversível no território da doença, a certeza da
proximidade do fim. Hitchens não aceita a clássica expressão: lutar contra um
câncer. Ele vivia com paixão, apesar do câncer que o atacava.
A extraordinária trajetória de Hitchens me
fez conhecer melhor a mortalidade. No mesmo ano, relendo Fernando Pessoa,
pensei nestes versos que poderiam completar minhas anotações: Se soubesse que
amanha morria/E a primavera era depois de amanhã/Morreria contente porque ela
era depois de amanhã/Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no
seu tempo?
No Brasil estamos mergulhados numa crise de
segurança pública. Nem todos se dão conta. No campo político, o grande fato foi
a revelação de uma tentativa de golpe que até mataria Alexandre de
Moraes, envenenaria Lula e Geraldo
Alckmin. Escrevi muito sobre isso, colocando algumas questões que me
parecem pertinentes. Não importam muito. Haverá um julgamento, e isso está mais
ou menos marcado para setembro.
Mas o ano que passou, passou. Num próximo
artigo escreverei sobre o ano que entra e todas as coisas que já sabemos que
acontecerão em 2025. Trata-se de um modesto exercício, num país de realismo
mágico, habitado por um personagem de Nélson Rodrigues que não se limita ao
futebol: o Sobrenatural de Almeida.
Tenho muitos amigos que torcem pelo Botafogo.
Finalmente, vivemos um ano em que o Botafogo é campeão. Viva.
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