O Globo
As mais brilhantes previsões geopolíticas são
forçadas a realizar um tradicional ‘ouça, pare e olhe’ para a dinâmica da Terra
Todas as sociedades humanas evitam
inesperados. Suas rotinas fabricam hábitos e costumes que, inutilmente,
pretendem controlar o imprevisto entre o cultural e o natural irredutível — a
cabeça e o pé, o lado direito e o esquerdo, o negro da noite e a claridade do
dia, o Sol e a Lua, as enchentes, os terremotos, as tempestades e, acima de
tudo, o silêncio da morte e a paz enternecedora do esquecimento.
Não há sociedade sem ideias sobre nascer, morrer, sobre a injustiça e as causas dos acidentes e doenças que subvertem as classificações. Tudo o que vivemos como básico ou essencial — aquilo que elege os populistas — é alvo de um mitológico e religioso reconhecimento em toda coletividade humana. Todas têm protocolos para a sovinice, o poder e, principalmente, para os inesperados — para o que atravessa as classificações que ordenam o Universo. Para os eventos individuais ou coletivos, incidentais e inesperados, que ameaçam — como ensinaram Durkheim e Mauss — a ordem estabelecida, a estrutura.
Robert Merton publicou em 1936, na American
Sociological Review, um artigo essencial sobre as consequências não previstas
de atos sociais programados. Eu quero ficar rico e compro ações que perdem o
valor. Depois de diagnosticar toda a população de Itaguaí como louca, o douto
alienista descobre o óbvio. O maluco era ele, e sua doidice o faz libertar os
habitantes e, numa inversão inesperada, interna-se no manicômio. A ignorância,
a ambiguidade ou a inocência, como mostra a literatura, são uma dimensão intrigante
da vida social. Ela compete e está ligada às “racionalidades”.
Tais surpreendentes desenganos são a
matéria-prima de gente como Balzac, Borges, Maupassant e outros mestres dos
inesperados, como Allan Poe, O. Henry, Lobato, Machado de
Assis, Tchekhov e Jorge Amado, entre outros...
Uma das fontes do mal-estar do mundo atual
resulta da imperiosa programação do capitalismo ocidental. Ela multiplicou
oportunidades, criou confortos inimagináveis e acelerou um estilo de vida
baseado no progressismo e na quantidade, mas o efeito inesperado desse programa
afeta o clima e o equilíbrio do planeta. As mais brilhantes previsões
geopolíticas são forçadas a realizar um tradicional “ouça, pare e olhe” para a
dinâmica da Terra enquanto palco que reage a um drama incongruente.
A grande contradição não seria a que Marx
anunciou — a classe trabalhadora explorada contra os malvados capitalistas
encartolados —, mas o não previsto desgaste irracional de uma Terra explorada
racionalmente. O imenso e incomensurável inesperado é a ameaça climática que
invade nossas vidas como um palco que, surpreendentemente, se torna ator.
No ensaio “Raça e História”, Lévi-Strauss
adverte:
— A exclusiva fatalidade, a única tara que
pode afligir um grupo humano e impedi-lo de realizar plenamente sua natureza, é
estar só.
Publicado em 1952, o ensaio não tinha como
prever que o mundo trocaria um milenar e parcimonioso isolamento de línguas e
culturas pelo avassalador progressismo movido a cobiça, decorrente das
consequências não previstas de um modo de produção global, voltado para a
quantidade.
A modéstia e a parcimônia de milênios de
evolução deram lugar a uma enxurrada de mensagens expressivas da maldade, do
desejo de confundir e da hipocrisia decorrentes do exagerado poder de
comunicação que a Humanidade conquistou.
Ao lado das perversas fake news, temos a
vergonha de descobrir que a hipocrisia, a maldade e o autoritarismo não são as
marcas de um período histórico ou cultural. São parte constitutiva de nossa
índole que os meios digitais ampliam. Operam seguindo as intenções dos seus
donos — os Musks e os Trumps deste mundo —, mas, eis o inesperado, têm vida
própria. E mostram que os tais “países desenvolvidos” à direta e à esquerda
são, surpreendentemente, muito mais parecidos com o nosso “Brasil
subdesenvolvido” do que imaginávamos.
Valha-nos Deus!
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