Valor Econômico
Apesar de estar na direção correta de maior
progressividade na estrutura tributária do país, a proposta de isenção de IR
até R$ 5 mil, compensada pela taxa mínima de 10% para os mais ricos, criou uma
oposição desnecessária
O Brasil é famoso por possuir uma das piores
distribuições de renda do mundo. Trata-se de um problema antigo cujas origens
remontam a seu passado colonial e escravagista. No passado recente houve
períodos mais favoráveis e outros menos, em termos de redistribuição da renda
da população.
Há vários mecanismos que podem ser utilizados
para minorar o problema. Talvez a mais conhecida do público em geral seja por
meio de transferências de recursos diretamente à população, como no Bolsa
Família e no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Outras se refletem
indiretamente, como no ensino público gratuito e na assistência à saúde por
meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
Uma forma importante de redistribuição, algumas vezes colocada em segundo plano, é por meio da política tributária do país, que tem grande potencial na redução das desigualdades de renda. O Brasil também é conhecido pelas distorções em sua estrutura tributária baseada em grande parte em impostos indiretos, que incidem sobre toda a população. Como as pessoas mais pobres consomem uma parcela maior de sua renda do que as mais ricas, são eles que acabam pagando proporcionalmente mais impostos indiretos. Essa distorção pode ser corrigida por meio de uma política tributária que utilize impostos diretos associados ao nível de renda de cada um. Para isso existe o imposto de renda.
Uma das maiores críticas feitas ao recente
pacote de redução dos gastos do governo foi a inclusão da isenção do imposto de
renda para as pessoas com rendimento de até R$ 5 mil mensais. Um dos argumentos
contra a medida é o fato de que o mercado esperava redução de gastos e não de
receitas. Concordamos que esse não era o melhor momento para tal tipo de medida
do governo, mas é preciso não esquecer que se trata de uma promessa do
presidente Lula no calor da campanha eleitoral, que em algum momento o governo
poderia tentar implementar.
Segundo afirmação do ministro Fernando
Haddad, confirmada por estudos independentes que vêm sendo desenvolvidos desde
o anúncio da medida, tal redução do imposto de renda seria compensada pela
elevação do imposto para o pessoal no topo da pirâmide. Simulações
realizadas na USP e divulgadas no Valor (03/12) mostram
que a queda do imposto de renda na base da pirâmide de rendimentos seria
compensada pelo aumento da arrecadação obtida com a alíquota mínima de 10% para
o pessoal no topo dos rendimentos. Não haveria, portanto, nem redução nem
aumento de receitas.
Um outro ponto importante da proposta do
governo que precisa ficar bem claro é que a redução do imposto de renda está
voltada para a classe média e não para os mais pobres, que já estão isentos do
imposto de renda. Para estes há outros mecanismos de transferência de renda
como os mencionados acima.
O estudo da USP, realizado por Guilherme
Klein, João Pedro de Freitas Gomes e Guilherme Arthen, fornece várias
informações que esclarecem bastante o efeito redistributivo da proposta
governamental. Ao se ordenar a população pelo rendimento segundo seus percentis
nota-se que, segundo a atual legislação, a taxa efetiva paga pelos
contribuintes cresce até o 99º percentil quando atinge 12,5% da renda, caindo
bastante no último percentil (3,5% para o pessoal no 0,1% do topo).
Ainda segundo a simulação dos autores,
atualmente quem está localizado até 79º percentil de rendimentos não paga
imposto de renda e com as mudanças propostas haveria isenção do imposto de
renda até o 93º percentil. A partir daí, as alíquotas se elevariam rapidamente
até atingir valores semelhantes aos atuais no 99º percentil. Apenas o último
percentil seria atingido pela nova alíquota de 10%. Em números absolutos, cerca
de 23 milhões de pessoas seriam beneficiadas enquanto pouco menos de 600 mil
teriam aumento da carga tributária. Em termos distributivos haveria uma pequena
melhora confirmada pela redução no índice de Gini.
Algumas conclusões podem ser tiradas a partir
da análise das simulações efetuadas pelos pesquisadores da USP. A primeira
delas, já foi mencionada acima, confirma sua neutralidade em termos
arrecadatórios, já que a perda na base seria praticamente compensada pelo
aumento no topo. A segunda é que o benefício da nova proposta está voltado para
uma ampla faixa da classe média. A terceira é que o aumento da arrecadação
estaria integralmente concentrado no 1% do topo da distribuição de rendimentos,
que atualmente é beneficiado por uma série de isenções, pagando relativamente
pouco imposto de renda.
Apesar da concentração nos mais ricos, a nova
estrutura do imposto de renda não seria perfeitamente progressiva, na medida em
que tais contribuintes ainda estariam pagando percentualmente menos impostos
que os imediatamente abaixo no nível de rendimentos (10% contra 12,5%). Segundo
os autores do estudo, para que a estrutura do imposto de renda fosse
perfeitamente progressiva, revertendo a atual regressividade no topo da
distribuição, seria necessária uma taxa mínima de 15% e não de 10% como
proposta pelo governo.
O mercado reagiu muito mal ao novo pacote de
redução dos gastos do governo. Segundo o que tem sido veiculado na imprensa,
eram esperadas medidas mais contundentes em relação ao salário mínimo, ao BPC,
ao abono salarial, à desvinculação dos gastos com educação e saúde entre outros
gastos sociais. Se era nisso que o mercado acreditava, me parece que tais
expectativas seriam um tanto irrealistas tendo em vista o viés social do
governo Lula.
Com relação especificamente à proposta de
isenção do imposto de renda até R$ 5 mil, compensada pela taxa mínima de 10%
para os mais ricos, apesar de estar na direção correta de maior progressividade
na estrutura tributária do país, criou uma oposição desnecessária. Me parece
que teria sido muito mais hábil da parte do governo ter simplesmente reajustado
a atual tabela do imposto de renda que se encontra defasada há vários anos.
Seria difícil haver críticas a tal medida que vem sendo reivindicada há muito
tempo pelos contribuintes. A taxa mínima de 10% no topo é uma boa ideia que
deveria ser mantida. Ao insistir na promessa de campanha neste momento, o
governo criou uma oposição desnecessária.
*João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Perfeito !
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente análise, texto perfeito! Obviamente não agrada aos agentes do mercado financeiro e nem aos colunistas que papagaiam as mensagens que recebem dos seus patrões do mercado.
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