Valor Econômico
Para Paul Krugman, “os camelôs de desinformação estão ficando muito doidos com seu próprio estoque de drogas”
A ameaça de uma paralisação do governo no
Natal, provocada pelos principais sovinas dos Estados Unidos, Elon Musk, Donald
Trump e J.D. Vance, foi evitada por pouco. No entanto, vale a pena rever o que
aconteceu, porque o episódio prenuncia perfeitamente a governança disfuncional
que aguarda os Estados Unidos (e o mundo) quando Trump assumir o cargo em
janeiro.
Na véspera do prazo de 20 de dezembro para a aprovação de um projeto de lei para manter o governo federal financiado, a liderança da Câmara e do Senado dos EUA chegou a um acordo que lhes daria mais três meses. Nenhuma das partes estava particularmente satisfeita com o acordo, mas todas podiam viver com ele. Eles tinham os votos para aprová-lo, e a equipe do presidente Joe Biden estava disposta a apresentá-lo para sua assinatura.
Só que aí, Musk ficou furioso, alimentando
uma “reação” ao projeto de lei provisório com “afirmações falsas e enganosas”,
como disse o site Politico, e levando “os republicanos a um frenesi com mais de
100 postagens no X”. Entre suas imprecisões estava a de que o projeto de lei
financiaria o desenvolvimento de armas biológicas, quando na verdade
financiaria laboratórios onde qualquer praga futura poderia ser contida e
estudada. (Não devemos esquecer que a covid-19 não era nem de longe tão
infecciosa ou mortal quanto, por exemplo, o Ebola; não podemos contar com a
mesma sorte da próxima vez).
Musk também alegou falsamente que cada membro
do Congresso receberia um aumento salarial de 40%, quando na verdade eles estão
programados para receber um aumento de 3,8%, independentemente do projeto de
lei em consideração. De acordo com Musk, o projeto de lei continha um subsídio
de US$ 3 bilhões para um novo estádio para o Washington Commanders (time de
futebol americano da NFL), quando na verdade ele transferiria o local do RFK
Stadium - onde nenhum time da NFL joga ou tem planos de jogar - para o governo
do Distrito de Colúmbia, para que o local possa ser reformado.
Essas são apenas algumas das muitas
falsidades de Musk. Elas eram claras como o dia e, ainda assim, Musk conseguiu
intimidar os republicanos com sua promessa de que “qualquer membro da Câmara ou
do Senado que votar a favor desse projeto de lei de gastos ultrajante merece
não conseguir a reeleição daqui dois anos!”. Em vez de apontar que Musk não
sabe do que está falando, os republicanos entraram na linha.
O acordo sem aumento no limite da dívida foi
uma derrota política para Trump, Musk e Vance. Mas eles não se importarão,
porque a política não lhes diz respeito. Trump e novas maiorias republicanas
sabem que têm o apoio fervoroso de eleitores pouco informados
Segundo o que os representantes do Partido
Republicano estavam dizendo na manhã de 18 de dezembro, o próprio Trump não
tinha nenhum problema com o projeto de lei. Contudo, naquela tarde ele e Vance
passaram para a ofensiva, chamando os republicanos do Congresso de “tolos e
ineptos” por “permitir que nosso país atingisse o teto da dívida em 2025”.
Agora, eles precisam aprovar um “projeto de lei de financiamento temporário SEM
AS DERROTAS DOS DEMOCRATAS combinado com um aumento no teto da dívida. Qualquer
outra coisa é uma traição ao nosso país”.
De qualquer forma, a partir de 19 de
dezembro, a liderança democrata na Câmara não sabia mais quem estava no comando
e com quem deveria negociar. Mike Johnson é mesmo o presidente da Câmara,
perguntou Jamie Raskin, “ou Donald Trump é que é? Ou é Elon Musk? Ou é outra
pessoa?”. (De fato, o senador Rand Paul lançou a ideia de colocar Musk como
presidente da Câmara).
No fim, Johnson e o líder da minoria na
Câmara, Hakeem Jeffries, conseguiram fechar um acordo de última hora que inclui
concessões políticas substanciais aos democratas e nenhum aumento no limite da
dívida, resultado que representou uma derrota política para Trump, Musk e
Vance. Mas eles não se importarão, porque a política não lhes diz respeito.
Trump e as novas maiorias republicanas no Congresso sabem que têm o apoio
fervoroso de eleitores predominantemente pouco informados - ou totalmente
desinformados. E esses eleitores não se importarão (ou sequer saberão) que mais
democratas do que republicanos votaram a favor do projeto de lei da Câmara de
Johnson (levando Musk a perguntar: “E então, esse é um projeto de lei
republicano ou democrata?”).
Essa é a situação da política e da governança
americanas hoje. Ela agora canaliza o estilo performático da luta livre
profissional. O ciclo básico de decisões democráticas - no qual os eleitores
elegem servidores públicos que elaboram políticas com efeitos que informam o
resultado das eleições subsequentes - está totalmente quebrado.
Porém, haverá consequências, e não está de
todo claro se Trump, Musk e Vance as consideraram em seus cálculos. Como aponta
Paul Krugman, “desde a eleição, os mercados financeiros têm apostado claramente
que Trump fará muito pouco do que prometeu durante a campanha (...) descontando
as consequências desastrosas que adviriam” de guerras comerciais, deportações
em massa e assim por diante. Mas o mercado parece estar cada vez mais enganado.
Uma “paralisação desnecessária e evitável do governo em resposta a alegações
completamente falsas sobre o que há numa medida inócua de financiamento de
curto prazo sugere que os camelôs de desinformação estão ficando muito doidos
com seu próprio estoque de drogas”.
Os legisladores republicanos poderiam
recuperar a capacidade de se comunicar com sua própria base política? Os
democratas poderiam conquistar maiorias legislativas substanciais e duradouras
nas eleições de meio de mandato de 2026? Tudo é possível, mas não estou
apostando nisso. Há todos os motivos para esperar que o governo federal dos
Estados Unidos, em sua maior parte quebrado, cause danos imensos ao país - e
Trump ainda nem assumiu o cargo. (Tradução
de Fabrício Calado Moreira)
*J. Bradford DeLong foi
vice-secretário adjunto do Tesouro dos EUA e é professor de economia da
Universidade da Califórnia, em Berkeley, e autor de Slouching Towards Utopia:
An Economic History of the Twentieth Century, Basic Books, 2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.