Correio Braziliense
É hora de entender que militares demandam
rumos e, se o sistema político se faz ausente e nós não exercemos nenhum
diálogo, regamos, todos, a semente da instabilidade
No dia 25 de agosto de 2010, lá pelo fim da
tarde, uma discreta comemoração estava em curso no gabinete do ministro da
Defesa, Nélson Jobim. O motivo: fora aprovada a Lei Complementar 136, que
instituiu a Política e a Estratégia Nacional de Defesa, além do Livro Branco da
Defesa Nacional.
No dia, poucas notas a respeito na imprensa —
porém, pela primeira vez na nossa história, estava criado um laço entre as
nossas Forças Armadas, a Defesa Nacional e o povo brasileiro, por meio de seus
representantes no Congresso Nacional.
As Forças Armadas não são autônomas, tanto que declarar a guerra e fazer a paz são competências exclusivas do parlamento. Porém, faltava ao Congresso o instrumento necessário para, em diálogo com os militares, determinar que Forças Armadas queremos, como um país com crescente importância no contexto global democrático.
Passados 14 anos daquele 25 de agosto, o que
posso dizer, como relator da Lei 136, é que a esperança se transformou numa
frustração profunda. O Congresso tem se alienado do seu papel em comportamento
que considero irresponsável com a Defesa do Brasil!
Quase diariamente, muitos me pedem
(principalmente jornalistas) uma avaliação dos recentes episódios que registram
o envolvimento de militares, inclusive de altas patentes, numa trama golpista.
Relatórios de quase mil páginas da Polícia
Federal trazem evidências levantadas por extensa e bem documentada
investigação, atestando esses fatos, que estão sob o controle do Supremo
Tribunal Federal (STF).
Poderia me limitar a fazer coro com o que me
parece consensual, ou seja, a condenação veemente a tão grave e repulsiva
atitude de um núcleo minoritário que subverteu o fundamento maior da caserna —
de servir à pátria, fiel à Constituição.
Isso é ponto pacífico, como também o é o fato
de que as Forças Armadas, como instituição, não deram aval a essa aventura
irresponsável. Os que subverteram a ordem serão responsabilizados e punidos na
forma da lei, como já está acontecendo, inclusive com a cooperação das próprias
Forças Armadas.
Isto posto, volto a insistir na ruptura do
Congresso Nacional com a inércia nessa grave matéria. A célula regenerativa é
de natureza política, mas nosso Legislativo, ainda hoje, mantém a
procrastinação como padrão, embora municiado de amplos conteúdos desde a
criação do Ministério da Defesa, em sucessivas gestões civis.
Até sua criação, eram quatro os ministérios
militares: Marinha, Exército, Aeronáutica e o Estado Maior das Forças Armadas
(EMFA). Em seu segundo mandato, o presidente Fernando Henrique conseguiu
efetivamente criar o Ministério da Defesa, em operação coordenada pelo general
Alberto Cardoso, então seu ministro do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI).
Sexto ministro da Defesa, o ex-presidente do
Supremo Tribunal Federal, ex-ministro da Justiça e relator da revisão da
Constituinte de 88, Nelson Jobim introduz o alicerce para um novo ciclo, com as
Forças Armadas subordinadas ao poder civil: a Política Nacional de Defesa, a
Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, já
mencionados, auxiliado por Mangabeira Unger que, mais tarde, seria ministro de
Assuntos Estratégicos nos governos Lula e Dilma.
A Política Nacional da Defesa define
objetivos, a Estratégia Nacional de Defesa, forma e meios, e o Livro Branco
funciona como uma espécie de catálogo dos instrumentos disponíveis para a
realização dos dois primeiros.
A matéria que relatei, aprovada com apenas um
voto contrário, estabeleceu a atualização dos textos de quatro em quatro anos.
Ou seja, sempre no meio dos mandatos, para evitar a contaminação política comum
no princípio e no fim de governos.
Aprovou-se o primeiro em 2008, para ser
atualizado em 2012 e assim sucessivamente, o que não ocorreu. Paramos nesse
primeiro estágio, ou seja, há 12 anos o Congresso não decide sobre a matéria.
Em 2016, o presidente Temer recebeu do
Congresso um arremedo, feito a toque de caixa, não precedido sequer de
audiências públicas, como deve ser a tramitação. Ainda assim, 17 dias antes do
término de seu mandato e por não achar lícito assiná-la ao apagar das luzes,
deixou para a gestão de Bolsonaro, que a tratou como matéria de governo
anterior, e não como questão de Estado.
A nova atualização, de 2020 a 2024, foi
enviada já pelo então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, mas até aqui parece
destinada à mesma indiferença do parlamento. Hoje, duas matérias de
indiscutível urgência não estão priorizadas.
A primeira é a PEC que condiciona o ingresso
do militar na política ao seu afastamento da carreira, sem possibilidade de
retorno às Forças Armadas, o que considero essencial para cessar a politização
nos quartéis e o consequente equilíbrio constitucional.
A segunda diz respeito à participação de
militares no governo, que deve se dar, a meu juízo, em quatro áreas: nuclear,
espacial, segurança cibernética, guarda e proteção do presidente da República,
que não deve ficar a cargo das polícias.
É hora de entender que militares demandam
rumos e, se o sistema político se faz ausente e nós não exercemos nenhum
diálogo, regamos, todos, a semente da instabilidade, num estímulo a bolsões
minoritários para retomarem a ideia de tutela, o que é, registre-se,
inaceitável.
*Diretor-presidente do Instituto Brasileiro
de Mineração (Ibram) e ex-ministro da Defesa e da Reforma Agrária
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