Passei quase dez anos de minha vida fora do Brasil. Estou preparando um livro novo, intitulado provisoriamente ‘Em busca de um país’, sobre a minha formação e experiência como historiador e cidadão. Trata-se de um prolongamento, se posso dizer assim, ao livro ‘O historiador e o tapeceiro’, que lancei em 2015, pela Fundação Astrojildo Pereira.
As notas que se
seguem são relativas ao meu encontro com pessoas no exterior.
No plano internacional, conheci figuras que muito me impressionaram também e poderia citar o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o fotógrafo Henri Cartier-Bresson, o psiquiatra Tony Lainé, o estadista Nelson Mandela e o operário comunista Jacques Duclos, este último o líder da Resistência francesa à ocupação nazista de seu país. Nas eleições presidenciais de 1969, Duclos obteve quase 22% dos sufrágios. Respeitadíssimo na França, Jacques Duclos compôs, juntamente com Benoît Frachon e Charles Tillon, a direção clandestina do Partido Comunista Francês sob a ocupação hitlerista. Viveu quatro anos nos esgotos de Paris, sem praticamente ver a luz do dia. Frachon era o secretário-geral da CGT (Confederação geral do Trabalho) e Tillon o responsável pela guerrilha, o chefe dos partisans. Da Resistência ao ocupante nazista da França, conheci ainda Jean Favre, nascido no Vietnã e um dos três redatores do Programa Comum que levaria os comunistas, os socialistas e os radicais de esquerda (um partido de centro, apesar do nome) ao Governo. Além dele, possa citar o diretor do jornal do Partido Comunista Francês, L´Humanité, René Andrieu, um dos líderes dessa luta antifascista tão gloriosa, assim como o operário metalúrgico Roger Lainé, figura admirável. Certa vez eu perguntei ao René Andrieu para que me explicasse o fenômeno De Gaulle na França. Apesar de reconhecer seu importante papel na Resistência, Andrieu examinava o posicionamento do General De Gaulle sob a ótica, correta pelo que entendi, da política de classe da burguesia, que nunca colocava todos os ovos em um cesto só. A burguesia apoiou o Marechal Pétain, o colaboracionista de Hitler, mas mantinha um setor seu dialogando com De Gaulle, em Londres.
Com a saudosa amiga
Julia, basca de Espanha, que passou dez anos nos cárceres franquistas, muito
aprendi sobre a Guerra Civil em seu país, nos anos 30 do século XX. O mesmo
digo de seu marido Marcelo, também ele prisioneiro de Francisco Franco. O
militar espanhol poderia perfeitamente ser dicionarizado como sinônimo de
repugnância. Julia e Marcelo estavam exilados em Ivry-sur-Seine, cidade onde eu
morava, na chamada Cintura Vermelha de Paris. Quando Franco morreu, eu fui à
sua casa, mas eu a encontrei muito triste e abalada. “Para além da morte dele,
existem recordações terríveis daquela época. A morte de Francisco Franco remexe
com as feridas ainda abertas na Espanha de hoje. Será uma transição difícil”.
Entendi perfeitamente sua aflição.
O líder de uma outra
Resistência, igualmente extraordinária, o comunista Malek Benayad, que se
insurgiu contra o colonialismo francês na sua querida Argélia, também muito me
impactou por sua dignidade e dedicação à causa da liberdade. Malek era saarauí,
ou seja, um grupo étnico do deserto do Saara. As torturas que sofreu, nos
diferentes cárceres por onde passou ao longo da vida, são indescritíveis. Foi
uma das pessoas mais dignas que conheci na vida.
Outra figura que me
impressionou muito foi o comunista egípcio Samir Amin, então presidente da
Associação Internacional dos Sociólogos. Educadíssimo, muito culto, teve de
deixar o Egito após asperseguições movidas contra ele pelo Governo Nasser,
ainda nos anos 50, vivendo desde então no Senegal. Samir Amin deu uma
contribuição importante ao marxismo, sobretudo no tocante ao papel das áreas
periféricas, submetidas ao domínio do capital internacional.
No Uruguai, trabalhei
um período na edição do Guia do Terceiro Mundo ao lado de Samuel Blixen, um dos
três fundadores do MLN-Tupamaro, juntamente com Raúl Sendic e Pepe Mujica. Era
uma figura que impressionava pela retidão, tornando-se posteriormente biógrafo
de Pepe Mujica, presidente do Uruguai pela Frente Amplio. Mais tarde, eu iria
conhecer outro uruguaio que impressionava igualmente pela retidão e vasta
cultura– Eduardo Galeano, colaborador da Editora Terceiro Mundo em Montevidéu.
Sempre que vinha ao Rio de Janeiro, Galeano visitava a nossa redação na Rua da
Glória.
Com Andrea Lanzi,
veterano responsável pela grande central sindical CGIL e também pelo antigo
Partido Comunista Italiano (PCI) na América Latina, hoje no Partido Democrático
(PD), tive e tenho um grande contato político e de amizade. Com o Andrea estou
sempre aprendendo sobre a realidade italiana e europeia em geral. Outra grande
figura do antigo PCI com quem muito aprendi foi Carlo Cioni. Tendo residido por
alguns anos na antiga União Soviética, Carlo se tornou amigo pessoal de Mikhail
Gorbachev e me relatou, certa vez, que Gorbachev e Alexander Dubcek estudaram
juntos na escola de Quadros mantida pelo PCUS em Moscou, nos anos 50. Assim, um
teria influenciado o outro na busca por um socialismo mais democrático e
humanista. Fica o registro. Outra grande figura do antigo PCI que conheci foi
Giuseppe Vacca, que presidiu a Fundação Gramsci, sediada em Roma. Homem
profundamente simples e extraordinariamente culto.
Conheci, ainda, duas
figuras impressionantes da Revolução Cubana. Uma delas foi Armando Hart, então
Ministro da Educação de Cuba, um camarada extremamente educado, que falava
pausado. Era o Secretário de Organização do PC Cubano. Tive apenas um encontro com
ele, acompanhando meu pai. Foi um herói da Revolução, tendo sido preso diversas
vezes pela ditadura Batista. Outro companheiro cubano que conheci e convivi por
algum tempo chamava-se Luiz e falava um espanhol com sotaque típico da ilha
caribenha. Ou seja, quase áspero, metálico. Mas era uma pessoa também calma, de
gestos lentos e fala tranquila — ainda que metálica. Quem me apresentou a ele
foi o jornalista Haroldo Hall, então diretor da Prensa Latina em Paris. Haroldo
era brasileiro e trabalhou antes na antiga Última Hora, no Rio de Janeiro.
Diretor da Prensa Latina por ocasião da intervenção militar de 1964, ganhou o
Uruguai e, dali, zarpou para o mundo. Viveu em Havana, Praga e Paris. Nascido
em São Luís do Maranhão, Haroldo era muito querido em Cuba. "El Pequeño
Canga" — o Cangaceirinho, por alusão à sua baixa estatura e fortes traços
nordestinos, era assim que os cubanos o chamavam. Haroldo era uma das
raríssimas pessoas nesse mundo que privaram da intimidade de Fidel Castro, o
"Comandante en Jefe". Costumava ficar horas conversando com Fidel em
seu gabinete de trabalho. Mais de uma vez me disseram que ele entrava sem bater
na sala de Fidel. Realmente não era para qualquer um. Luiz também era um
companheiro fraternal de Fidel Castro, conforme me revelaria depois. Apesar de
conversar volta e meia com Luiz, eu pouco sabia sobre a sua vida. Até que, um
dia, fiz a ele um comentário sobre os primórdios da Revolução Cubana e o
heroísmo de homens como Cienfuegos e o Che. E manifestei a minha surpresa
frente ao duplo — e, para mim, ao menos, desconcertante — conteúdo da Revolução
Cubana. Isto é, houve luta armada no processo de derrubada de Fulgencio
Batista, em 1959, mas o início de ruptura com o capitalismo, no bojo da
proclamação do caráter socialista da Revolução, dois anos mais tarde, se deu
por via pacífica. Muita gente se equivocou inclusive quanto a isso. Violência
na derrocada da ditadura; caminho pacífico na marcha ao socialismo. Vá entender
um processo desses... Dava até para imaginar que fosse o contrário! Mas não
era. Apolônio de Carvalhoconcordou com meu raciocínio, quando assim me
manifestei em entrevista que fiz com ele para o Jornal do Brasil anos depois.
Voltando ao Luiz, o cubano se pôs a discorrer então sobre a importância das
lutas travadas ainda sob a ditadura Batista. A resistência armada, as greves
operárias, o papel dos estudantes, mostrando toda a complexidade do contexto
pré-revolucionário. E foi aí que fez a revelação surpreendente: "Yo estaba
en el Gramna", disse-me. "Soy uno de los sobrevivientes". O
Gramna, como sabemos, era o barco que conduzia, desde o México, os
revolucionários cubanos até o litoral do seu país. Eram, ao todo, 82 homens a
bordo. Só que, no desembarque, os revolucionários foram atacados pelas tropas
de Fulgencio Batista e cerca de 20 deles morreram em combate. Entre os
sobreviventes, o próprio Fidel Castro, o Che e, também, o meu interlocutor
Luiz. Os insurretos conseguiram ganhar depois as selvas da Sierra Maestra, onde
se organizaram para pôr fim à tirania de Batista. O resto da História nós já
conhecemos praticamente de cor, com o papel central da greve geral em Havana.
De certa forma, todo
esse convívio significou uma verdadeira Universidade para mim. Como não
recordar, por exemplo, a figura de Doudou Diène, diplomata senegalês e
diretor-executivo da Unesco, que me convidou, em 1998, para apresentar um
projeto sobre o tráfico de escravos, unicamente com base na leitura que
realizara do meu livro Memorial dos Palmares? Uma honra e tanto, sem dúvida.
Aos 46 anos, a minha idade à época, eu tive a sensação de que valeu a pena
estudar e pesquisar. Afinal, a Unesco era– e é– uma espécie de ministério da
Educação mundial. A ideia de Doudou Diène era entregar o projeto nas mãos de
Nelson Mandela, de quem era amigo pessoal. Mandela, que conheci no Rio de
Janeiro quando ele veio apresentar a alguns brasileiros sua candidatura à Presidência
da República da África do Sul, se prontificou a discursar na Organização das
Nações Unidas, pedindo o fim da dívida externa da África, com base na sangria
representada pelo tráfico de escravos. Entreguei o projeto em questão, composto
de duas dezenas de páginas, se me recordo bem, mas dificuldades internas da
Unesco impediram a sua colocação em prática, apesar do empenho de Doudou Diène
e de Violeta Aguiar Trovoada, do pequenino São Tomé e Príncipe. Violeta era
sobrinha do primeiro presidente de São Tomé Príncipe, Miguel Trovoada, figura
histórica da luta contra o colonialismo português, de ascendência brasileira.
Teve um irmão sacrificado nas lutas pela libertação de Angola, e eu não posso
me esquecer jamais da dor de sua mãe. Ele era membro do Comitê Central do
Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA). Esse fato, por si só,
revela o quanto o passado influi no presente ou o quanto o presente é o passado
hoje. Como historiador, não posso ignorar isso.
E eu não poderia
esquecer o meu querido e saudoso amigo Alberto Passos, um dos fundadores do
MPLA. Membro do Comitê Central, Alberto esteve preso em 1960 com Agostinho
Neto, ou seja, apenas quatro anos após a fundação do MPLA. Um dos momentos mais
emocionantes da minha vida aconteceu quando o Alberto nos convidou a Samuel
Iavelberg e a mim, para almoçar com ele em Lisboa, precisamente no dia que o
Brasil reconhecia a Independência de Angola. E o Alberto só nos revelou isso ao
final do nosso almoço: “Vou me encontrar com vosso embaixador. O Brasil vai
reconhecer hoje a República Popular de Angola e eu serei um dos negociadores”.
Na antiga metrópole, as duas ex-colônias portuguesas colocaram um ponto final
no colonialismo. Um dia histórico e que nunca mais saiu da minha memória. Tenho
a firme convicção de que a África tem um grande futuro pela frente, uma vez
que, em 2050, de cada dois seres humanos, um nascerá no continente africano.
Fiquei muito feliz,
igualmente, quando dei a aula inaugural da Faculdade Letras, na Universidade de
Bolonha, a mais antiga da Europa, em 2012. Ainda mais que o tema da minha
palestra girou em torno da obra e do engajamento do querido poeta Ferreira
Gullar.
Outro momento de
grande alegria se verificou quando a plataforma Arquivo Marxista na Internet
(MIA), com cerca de 25 milhões de acessos por ano, publicou, na íntegra, meu
livro O PCB-PPS e a cultura brasileira. O MIA abriu uma exceção para mim, pois
nunca publicava autor algum em vida. A plataforma é internacional, podendo ser
consultada em mais de 80 idiomas. Em tempo: o MIA reúne a produção de pouco
mais de 400 autores marxistas de todas as partes do mundo, sendo que alguns
desses autores tinham começado a publicar já em meados do século XIX. Uma
honra, sem dúvida, integrar um grupo tão extraordinário, que vai de Karl Marx e
Friedrich Engels a Paul Lafargue e Vladimir Lenin, apresentando ainda obras de
Antonio Gramsci, György Lukács e Karel Kosik. Posteriormente, o MIA uma
plataforma digital para abrigar a série Brasileiros e Militantes, integrada por
44 documentários com personalidades da vida política, cultural e sindical
brasileiras. Mais uma honra para mim. Esse trabalho foi realizado, em algumas
de suas etapas, em parceria com Rodolfo Villanova e Eugênio Viola.
Eu tive outro grande
prazer, que não poderia deixar de mencionar aqui: foi quando meus amigos Luiz
Carlos Prestes Filho e Lucas Bueno se basearam em meu livro O caminho do
alferes Tiradentes para compor a belíssima ópera intitulada Molhem minha goela
com cachaça da terra. Atualmente, estamos preparando, sob a direção de José
Carlos Asbeg, uma série documental com base neste meu livro, a partir de uma
proposta da Aquarius Produções Culturais.
Por tudo isso, e não
somente pelas leituras e pesquisas, eu me sinto um historiador existencial.
Mesmo a arte de ler, conforme escreveu Émile Fuguet, “é a arte de pensar com um
pouco de ajuda”. Daí eu ter plena consciência da importância do diálogo com outras
correntes e pontos de vista no interior da historiografia, sem contar ainda a
contribuição de outras disciplinas para a construção do conhecimento. Daí eu
considerar importante valorizar as marcas deixadas pela vivência e pelo dia a
dia em cada um de nós. As viagens, em particular, contribuíram muito para minha
formação, assim como o engajamento social, conforme já mencionei. Todos nós
compomos uma soma das nossas relações sociais, convém lembrar. Uma espécie de
universalidade na diversidade.
Sei que estabeleci
uma lista longa de nomes e situações. Mas todo trabalho intelectual repousa em
uma rede de contatos, isto é, tem um acentuado viés coletivo e um conjunto
grande de influências recebidas e trocas estabelecidas. Muitas vezes somos
apenas o intérprete disso.
*Ivan Alves Filho, historiador
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