domingo, 8 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Toffoli foi sensato em voto sobre Marco Civil

O Globo

Ministro criou regra razoável ao declarar inconstitucional o artigo 19 e impor dever de cuidado às plataformas digitais

O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi certeiro na essência de seu voto sobre o Marco Civil da Internet. Declarou inconstitucional o artigo 19, que assegura às plataformas digitais imunidade por danos causados pelo conteúdo que veiculam até o momento em que a Justiça decida o contrário. Só que o Judiciário é lento demais. A maioria fica indefesa. Muitos não contam com recursos para contratar advogado. Mesmo os que têm condições dependem da Justiça morosa. Quando a decisão é tomada e enviada às plataformas, o dano se tornou irreversível. A postagem é retirada, mas o criminoso já atingiu seu objetivo.

“Não se pode admitir que a importância dos novos serviços digitais para a economia continue a mascarar (…) visões preconceituosas ou discriminatórias — e, não raro, finalidades espúrias”, escreveu. Em seu voto, Toffoli restaurou um princípio constitucional básico: empresas e cidadãos são responsáveis por danos que causem. Estipulou que, no caso das plataformas digitais, tal responsabilidade passa a valer não a partir de uma ordem de juiz, mas do momento em que sejam notificadas pelos atingidos (sistema notice and take down). Para alguns crimes específicos, instaurou um dever de cuidado, pelo qual a responsabilidade existe desde o momento em que o dano começa a ser causado (caso de racismo, homofobia, incitação a suicídio ou mutilação, linchamento virtual, violência contra mulheres, crianças ou vulneráveis, infrações sanitárias, conspirações terroristas ou atentados à democracia).

Críticos sustentam que o STF invade prerrogativas do Congresso. É verdade que o Legislativo já deveria ter votado o PL das Redes Sociais, que estabelece dever de cuidado semelhante. Mas a crítica nesse caso não tem sentido, já que cabe ao STF dirimir questões constitucionais, e a Constituição determina que todos são responsáveis por danos que causem. Ao garantir imunidade às plataformas, o artigo 19 ignora que elas não são um canal passivo. Ao contrário, respondem, por meio de seus algoritmos, pelo alcance dos conteúdos criminosos — e ganham mais com publicidade quando esse alcance é maior. Como toda empresa de comunicação, devem ter responsabilidades compatíveis com o serviço que prestam. O voto de Toffoli acerta ao isentar do dever de cuidado canais passivos, como correio eletrônico, aplicativos de mensagem ou videoconferência.

Outros críticos temem que o dever de cuidado levará a um ambiente de censura, pois, temerosas de arcar com indenizações, as plataformas tirariam previamente do ar tudo o que possa ensejar reclamação. Trata-se de uma falácia. A legislação da União Europeia já impõe esse dever, e não se tem notícia de que os europeus vivam sob censura digital. Ainda que algumas empresas adotem políticas mais restritivas, num mercado competitivo outras mais liberais atenderão aos insatisfeitos.

É um contrassenso acreditar que defender a aplicação da lei no mundo on-line ameace a liberdade de expressão. Nesse ponto, a argumentação de Toffoli é certeira. Ele próprio abriu espaço à discussão dos crimes sujeitos ao dever de cuidado. O voto do ministro Luiz Fux, relator do segundo processo sobre o Marco Civil, poderá contribuir. Mas a maioria da Corte deveria desde já seguir o espírito do voto de Toffoli, para a internet deixar de ser terra sem lei.

Jovens que não trabalham nem estudam continuam a ser desafio

O Globo

Apesar da queda constatada pelo IBGE, um a cada cinco brasileiros na faixa etária ainda pertence ao grupo

É um alento a constatação de que a quantidade de jovens brasileiros entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham, categoria conhecida como “nem-nem”, caiu no ano passado para 10,3 milhões, menor número da série histórica iniciada em 2012, segundo dados divulgados pelo IBGE na última quarta-feira. Mas a boa notícia não deve encobrir a realidade: 21,2% dos jovens nessa faixa etária permanecem longe das salas de aula e do mercado de trabalho (a média nos países da OCDE foi de 13,8% em 2023).

O aquecimento do mercado de trabalho, o retorno às escolas depois do isolamento imposto pelo coronavírus e a menor participação de jovens na composição da população brasileira contribuíram para o resultado, segundo o IBGE. Um dos desafios agora é diminuir ainda mais a proporção dos “nem-nem”, que desde o início da pesquisa fica no patamar dos 20% (em 2020, na pandemia, atingiu o pico de 28,3%). O cenário de hoje está próximo do registrado entre 2012 e 2014.

A despeito da queda, nas entrelinhas da pesquisa há dados que ensejam preocupação. Nos 10% de domicílios com menor renda, praticamente metade dos jovens (49,3%) continua sem estudar nem trabalhar — quase 7,5 vezes a proporção entre os 10% mais ricos (6,6%). A diferença aumentou em relação a 2022, quando era de sete vezes.

Outro dado inquietante está ligado a gênero e cor. Dos 10,3 milhões de jovens fora da escola e do mercado de trabalho no ano passado, 6,7 milhões (65%) eram mulheres. Pretas ou pardas somavam 4,65 milhões entre os “nem-nem”, enquanto as brancas representavam 1,95 milhão. De acordo com o IBGE, a predominância feminina não é singularidade brasileira. Também é observada nos países ricos.

Coordenadores da pesquisa dizem que as mulheres tendem a ser maioria entre os “nem-nem” devido a fatores culturais e estruturais. Os afazeres domésticos e o cuidado com parentes dificultam a permanência na escola e no emprego. “Isso as impede de ir em busca de uma colocação no mercado de trabalho devido à falta de rede de apoio, além de oferta adequada de creches públicas, asilos ou centros de lazer para pessoas idosas”, diz o IBGE.

A situação não mudará enquanto não houver políticas públicas voltadas para os grupos mais vulneráveis. Os dados mostram que a parcela de jovens fora da escola ou do mercado de trabalho está concentrada entre os mais pobres e entre as mulheres. Tais grupos devem receber maior atenção e apoio. Muitas jovens engravidam cedo e não têm com quem deixar os filhos. É dever do Estado proporcionar condições para que exerçam sua cidadania. Oferecer creches seria um começo.

É improvável que jovens estejam fora da escola ou do trabalho porque queiram. Certamente têm outras obrigações. É uma situação cruel. Se não estudam nem trabalham, as oportunidades de gerar renda e melhorar de vida se estreitam. Não é bom para eles, não é bom para o país. Perde-se um contingente valioso. É louvável que o Brasil tenha reduzido os “nem-nem”, mas a situação ainda está longe de aceitável.

Privilegiados reagem até a um pacote fiscal tímido

Folha de S. Paulo

Marinha faz vídeo constrangedor e sistema de Justiça mais caro do mundo se insurge contra mera revisão dos supersalários

Mesmo medidas tímidas de contenção de gastos públicos, como as anunciadas neste fim de ano pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), são capazes de provocar reações ruidosas de setores que desfrutam de benesses do Estado e acesso a gabinetes de Brasília. Assim se viu nos últimos dias.

O caso mais constrangedor ocorreu no meio militar, ao qual o pacote reservou uma suave mudança nas generosas regras de aposentadoria, entre outras propostas ainda menos impactantes.

Mas foi o bastante para que a Marinha divulgasse um vídeo publicitário que contrasta imagens de fardados em atividades árduas e de civis em momentos idílicos de lazer. A peça tragicômica se encerra com a mensagem "Privilégios? Vem pra Marinha".

Militares inativos custaram R$ 50 bilhões aos contribuintes brasileiros no ano passado. Cada um recebeu, em média, R$ 158,8 mil mensais dos cofres do Tesouro, ante R$ 9.400 entre os segurados do INSS, que atende à ampla maioria da população.

Propõe-se agora apenas fixar idade mínima de 55 anos para as aposentadorias nas Forças Armadas —para os civis, são 65. Hoje, exigem-se 35 anos de serviço, o que, na hipótese de uma carreira iniciada aos 18, significa o direito de pendurar a farda aos 53. A choradeira da corporação ainda serviu para esticar o prazo de transição para a adoção plena da regra, de 2030 para 2032.

Mais acintoso é o lobby das carreiras da magistratura e do Ministério Público contra um dispositivo de proposta de emenda constitucional que pretende restringir os chamados supersalários —vale dizer, o acúmulo de auxílios e abonos extrassalariais que contribuem para que o sistema de Justiça brasileiro seja o mais caro de que há notícia no mundo.

O texto enviado ao Congresso não faz mais do que prever uma lei para disciplinar tais penduricalhos, hoje graciosamente autoconcedidos por tribunais Brasil afora. Graças a eles, cada juiz custa em média R$ 68,1 mil mensais ao erário, ante um teto salarial de R$ 44 mil no serviço público.

A mera perspectiva de ver o tema em debate despertou manifestações públicas de cortes e entidades de classe, que incluíram até vaticínios catastrofistas de aposentadorias em massa caso os mimos sejam limitados.

Sabe-se, no entanto, que as pressões mais eficazes têm lugar nos salões da Câmara dos Deputados e do Senado, no contato direto com parlamentares interessados em boas relações com o Judiciário —e eles próprios preocupados em proteger suas emendas orçamentárias dos esforços de ajuste das contas públicas.

Lula, infelizmente, desperdiçou a oportunidade de início de mandato para reformas mais ambiciosas do Estado brasileiro. Forçado pelas circunstâncias, tenta agora mitigar o impacto da elevação irresponsável de gastos que promoveu. Nada disso, é claro, torna menos corretas providências para a redução de privilégios. É menos que o mínimo.

O virtual destino de Tuvalu

Folha de S. Paulo

Para enfrentar crise do clima, país na Oceania cria cópia digital de suas ilhas e até mesmo uma nova definição de Estado

Mais de 14 mil quilômetros separam São Paulo de Tuvalu, nação insular do Pacífico. Seu nome significa "grupo de oito", alusão às ilhas originalmente habitadas, que nas próximas décadas terminarão em boa parte debaixo d’água.

As terras que emergem do atol têm no máximo 2 m de altitude. Se a comunidade internacional lograr manter o aquecimento global em 1,5ºC, o que se afigura improvável, o nível do mar no planeta subirá até 55 cm no próximo século —o bastante para tornar Tuvalu inabitável, com a perda de território e infraestrutura.

Outras dificuldades atingirão os 26 km² do país. Ressacas e tufões castigarão quem ficar. Plantar alimentos poderá tornar-se inviável, com a salinização da terra. Qualquer diminuição de chuvas, única fonte de água doce, pode colapsar o abastecimento.

Não é, por certo, o único país insular em risco. Os mesmos vagalhões baterão às praias de Tonga, Seychelles, Ilhas Marshall, para não mencionar nações portentosas como Filipinas, que tem 117 milhões de habitantes e é considerada a mais ameaçada.

Não há escapatória para os cerca de 12 mil tuvaluanos. Só para construir diques e elevar edificações, calcula-se que seria necessário US$ 1 bilhão, algo em torno de 20 vezes o PIB do arquipélago.

Opções mais radicais de sobrevivência estão sob exame, como realocar toda a população em outro país da Oceania, como Nova Zelândia ou Austrália.

Outra medida vai ainda mais longe, para o metaverso: criar uma nação virtual. A fim de manter o vínculo de seus cidadãos com o território, onde quer que estejam, o governo passou a digitalizar toda a paisagem loca.

Demais povos sem território já sobreviveram, no passado, mantendo unidade só no domínio da cultura. Tuvalu, ao que se prenuncia, será pioneiro em preservar a terra comum de sua história por meio de uma cópia digital.

A iniciativa inclui ainda a questão da soberania. Em 2023, a nação mudou o conceito de Estado na sua Constituição, indicando que ele "permanecerá perpetuamente no futuro", mesmo após perda do território físico. Outros países insulares apoiam essa redefinição. Na legislação internacional, entretanto, um Estado consiste de um território definido com população permanente.

Na prática, a crise existencial tuvaluana evidencia que, a tantas populações pobres do globo, falta um compromisso real de nações desenvolvidas com o financiamento da adaptação à crise do climacoisa que não se viu na COP29 de Baku e dificilmente sobrevirá na COP30 de Belém.

Disfuncional, ilegal e impróprio

O Estado de S. Paulo

Apesar de boa medida, freio do STF ao mau uso das emendas parlamentares pelo Congresso reafirma distúrbio institucional com ares de normalidade que pode significar riscos à democracia

Ao restabelecerem o pagamento das emendas parlamentares definidas no Congresso, fixando ressalvas e critérios exigentes para a liberação dos bilionários recursos orçamentários da União, o ministro Flávio Dino e todos os seus pares do Supremo Tribunal Federal (STF) corrigiram uma distorção institucional. Frearam, pelo menos até resposta em contrário do Congresso, o apetite sem controle e sem transparência que avança sobre o Orçamento público, uma espécie de poder paralelo à margem de qualquer escrutínio republicano, o que, nos últimos anos, deu à cúpula do Legislativo força política e poder discricionário sem precedentes na história. Noves fora a correção da medida, relatada por Dino – claramente o principal representante do presidente Lula da Silva no STF, algo por si só uma aberração –, a Corte mostrou também que, no País das anomalias institucionais, distorção se corrige com outra distorção.

O episódio reafirmou a disfuncionalidade com ares de normalidade: um Executivo que transfere para o Judiciário o enfrentamento político com o Legislativo; um Judiciário que é simultaneamente tribunal constitucional, legislador e fiador da governabilidade; e um Legislativo que, tendo descoberto nas artimanhas do Orçamento sua emancipação em relação ao Executivo, adota o tensionamento da convivência entre os Poderes como arma de negociação. As digitais desse distúrbio institucional aparecem também num governo que gere mal sua desarrumada base política e não sabe o que fazer com a nova dinâmica do chamado presidencialismo de coalizão; um STF que se empolgou em demasia com a condição de “vanguarda iluminista” (na definição do ministro Luís Roberto Barroso) e de “bastião da democracia” (na convicção de Alexandre de Moraes); e um Congresso poderoso e fragmentado, hostil ao governo e agastado com o ativismo do STF.

O resultado é um sistema disfuncional, ilegal e impróprio, em que os Poderes passam a exercer prerrogativas não previstas na Constituição, que extravasam o tradicional sistema de pesos e contrapesos, desvirtuam o propósito de cada um e geram incerteza e insegurança. Os riscos impostos à democracia podem até ser distribuídos uniformemente, mas entre a malandragem de um Congresso insaciável e as metamorfoses de um Lula da Silva concentrado na sobrevivência política, parece inevitável um destaque especial ao STF – a quem caberia zelar pelos devidos preceitos constitucionais. Seus ministros, ao contrário, parecem confortáveis no papel de conselheiros extraconstitucionais do Estado, que atuam como uma espécie de notáveis da República, convocados a promover a resolução dos conflitos entre os Poderes, negociar a implementação das próprias decisões e supostamente aperfeiçoar políticas públicas, muitas vezes à custa da usurpação de competências.

Atos como o de Flávio Dino em relação às emendas parlamentares são parte desse conforto misturado com a vaidade. Não foi o único caso, contudo, em que o governo se escorou no STF como seu braço de sustentação política. Em setembro, coube a Dino, monocraticamente, “autorizar” a abertura de créditos extraordinários que permitiram ao governo combater as queimadas sem precisar passar pela tarefa de negociar com o Congresso e sem afrontar o já maltratado arcabouço fiscal. Foi inspirado no mesmo espírito de “inovação” que o ministro Gilmar Mendes converteu o STF em câmara de conciliação, reunindo atores políticos e partes litigantes para discutir a Lei do Marco Temporal. Ou o que dizer do afã legiferante da Corte em temas como a responsabilização das plataformas digitais – não satisfeitos em decidir ou não sobre a constitucionalidade de determinados artigos do Marco Civil da Internet, cujo julgamento foi iniciado em novembro, ministros como Dias Toffoli e Alexandre de Moraes já se apressaram em sugerir mudanças nas normas em vigor.

Tudo parece normalizado e aceitável para quem concorda com tais decisões ou acredita nas suas boas intenções, aquelas das quais o inferno está cheio. Só parece. Convém lembrar-lhes, porém, o risco dos precedentes. O que hoje é remédio pode, adiante, transformar-se em veneno, benfazejos de hoje poderão virar agonia amanhã, e a maioria do presente inevitavelmente será a minoria no futuro.

Presídios de segurança mínima

O Estado de S. Paulo

Nove meses após fuga dos detentos da penitenciária de Mossoró, o ministro da Justiça não conseguiu entregar a mais prosaica de suas promessas: erguer muralhas em torno das prisões

O Ministério da Justiça começou o ano passando por um vexame e termina amargando outro.

Em fevereiro, dois assassinos do Comando Vermelho promoveram uma fuga rocambolesca do presídio dito de “segurança máxima” de Mossoró (RN), escalando luminárias na cela, enfiando-se em vãos no forro e derrubando tapumes improvisados com barras de ferro e alicates catados ao léu.

Por 45 dias, 500 agentes federais mobilizados pelo ministro Ricardo Lewandowski, além das Polícias Militares de cinco Estados, bateram cabeça. Especialistas apontaram falta de coordenação central nas buscas, abrindo espaço para decisões erráticas e conflitantes dos agentes em campo, “um ajuntamento de recursos policiais estaduais e federais sem uma doutrina policial comum clara de busca e captura em cenários adversos”, segundo disse ao Estadão a professora de segurança pública da Universidade Federal Fluminense Jacqueline Muniz, para quem “houve sobreposição de meios onde cada um fazia o que sabia, em uma lógica reativa de pronto-emprego”.

Quando o governo já tinha jogado a toalha e desmontado o circo, os criminosos acabaram capturados no Pará, a 1,6 mil km de Mossoró, após um vareio de 50 dias nas equipes de busca.

A fuga, ao que parece, foi improvisada. Já as condições para ela não foram obra do acaso, mas o resultado acumulado de décadas de desídia. Há anos 124 das 192 câmeras do presídio estavam inoperantes. A iluminação apresentava falhas. Em 2023, já na gestão lulopetista, uma vistoria alertou para os forros vazados que viabilizaram a fuga.

Para acrescentar insulto à agressão, à época Lewandowski “justificou”, digamos assim, a fuga, constatando que no carnaval os guardas costumam ficar mais “relaxados”. De lá para cá, pouco se viu da pasta sobre medidas como aprimoramento dos sistemas de tecnologia e vigilância dos presídios ou monitoramento de atividades suspeitas dos agentes penitenciários. Mas ao menos o óbvio o ministro prometeu: erguer muralhas em torno das prisões.

Nove meses depois, contudo, a “lógica reativa de pronto-emprego” segue imperando. Segundo reportagem do Estadão, dos cinco presídios federais, só em Porto Velho as obras saíram do papel, e ainda assim enfrentam falhas de planejamento, atrasos e prejuízos aos cofres públicos. Mais da metade do cronograma já deveria estar completa, mas só 8% foram cumpridos. Foi preciso um aditivo de R$ 1 milhão para corrigir erros do projeto, mas a empreiteira protesta que o valor é insuficiente e acusa o governo de ter subestimado custos. O Ministério tenta rescindir o contrato e, enquanto um e outro batem cabeça, os detentos esperam o carnaval chegar, seguramente contando com novos apetrechos deixados ao relento nas obras paradas.

De longe e há tempos a criminalidade é a maior preocupação dos brasileiros. Mas segurança pública não é o forte das esquerdas em geral e do PT em particular. Não é só a miopia ideológica atávica que vê no crime um mero subproduto das “injustiças sociais”, mas incúria pura e simples.

Quando era ministro da Justiça, Flávio Dino parecia mais preocupado em investir na sua carreira de influencer, fustigando bolsonaristas nas redes para cativar o coração do presidente Lula e conquistar, como conquistou, uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. Lewandowski, seu sucessor no Ministério e antecessor no STF, neófito em administração pública e tarefas executivas de segurança, tem planos grandiosos para integrar as forças policiais, em tese até pertinentes: para combater o crime organizado é preciso uma União organizada. Mas, na prática, Lewandowski parece se escudar numa complexa e incerta tramitação para inscrever seus planos na Constituição como um salvo-conduto para a inação, como se o Sistema Único de Segurança Pública já não existisse desde o governo de Michel Temer e não pudesse ser operacionalizado já. Mas, mesmo se admitindo que o governo consiga entulhar uma já congestionada Constituição com regras novas em folha, fica a questão: qual a chance de elas serem eficazes, quando o Ministério não consegue executar sequer uma tarefa tão prosaica, objetiva e inequívoca quanto erguer um muro?

Propina não é fantasia

O Estado de S. Paulo

Juíza transforma em réus investigados que já se apresentavam como meras vítimas da Lava Jato

O infortúnio do juiz Sérgio Moro, do procurador Deltan Dallagnol e do time da Lava Jato, que nos últimos anos levou à total desmoralização da operação que messianicamente pretendeu salvar o Brasil da corrupção, resultou num providencial benefício aos investigados: corruptos confessos passaram a se considerar pobres vítimas do lavajatismo; e seus atos, uma mera fantasia forjada pelos integrantes da força-tarefa para destruir reputações e arruinar o País.

Em meados de novembro, sem estardalhaço, a juíza Rejane Zenir JungBluth Suxberger, da 1.ª Zona Eleitoral de Brasília, deu um passo importante para corrigir esse desvio maléfico, ao colocar no banco dos réus o empresário Marcelo Odebrecht, o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, o ex-diretor de serviços da Petrobras Renato Duque e outros 36 investigados da antiga Lava Jato. A denúncia teve o sigilo retirado na última semana de novembro.

Antes conduzido pela 13.ª Vara Federal de Curitiba, que abrigava a Lava Jato, o caso foi remetido para a Justiça Eleitoral de Brasília após o Supremo Tribunal Federal reconhecer a sua competência para analisar ações conexas a crimes eleitorais. O processo foi atingido também pela anulação das provas do acordo de leniência da Odebrecht, mas o Ministério Público Federal ofereceu nova denúncia, apontando que, mesmo com a exclusão de inúmeras provas, a acusação ainda se sustentava.

“Estão presentes os pressupostos processuais e as condições da ação para o recebimento da denúncia”, afirmou a juíza Suxberger em seu despacho. Os citados eram acusados de crimes de corrupção, gestão fraudulenta de instituição financeira, lavagem de ativos e organização criminosa na construção e ampliação da “Torre de Pituba”, nova sede da Petrobras em Salvador. O empreendimento teria sido construído em meio a pagamentos de propinas na casa dos R$ 68 milhões pelas empreiteiras OAS e Odebrecht a então dirigentes da estatal. Para a juíza, há “indício de materialidade” dos crimes cometidos.

Eis um bom e claro aviso a quem se fartava com um suposto salvo-conduto oferecido pela aniquilação moral de Moro, Dallagnol e demais integrantes da força-tarefa da Lava Jato. Erros e abusos sabidamente cometidos por eles, afinal, foram usados não só para desqualificar a operação, como fazer de conta que a corrupção nunca existiu entre as maiores empreiteiras do País e a Petrobras – a despeito das irrefutáveis provas de desvios de recursos públicos por meio de contratos fraudulentos e da própria confissão de muitos nomes envolvidos.

A aceitação da nova denúncia e a consequente reinserção dos investigados à condição de réus, agora na instância competente, podem ajudar a colocar o debate sobre o combate à corrupção nos seus devidos termos. É inadiável o País superar as sequelas deixadas pela Lava Jato, deixar de confundir a agenda anticorrupção com a operação, fazer o caso avançar com respeito ao princípio do devido processo legal e, enfim, escapar do perigo de ver delinquentes confessos posando de vítimas.

Oportunidades para Mercosul-EU

Correio Braziliense

O acordo ainda precisa vencer diversas etapas antes de ser colocado em prática, mas o trabalho conjunto tem o seu valor, na medida em que busca reunir condições para se criar uma zona de livre-comércio que pode beneficiar 750 milhões de pessoas

Após negociação de 25 anos, o Mercosul e a União Europeia deram um passo relevante em direção à integração econômica. O acordo anunciado em Montevidéu, com a participação dos chefes de governos dos países membros sul-americanos e da presidente da Comissão Europeia, ainda precisa vencer diversas etapas antes de ser colocado em prática. Mas o trabalho conjunto tem o seu valor, na medida em que busca reunir condições para se criar uma zona de livre-comércio que pode beneficiar 750 milhões de pessoas, em um mercado que corresponde a 25% do Produto Interno Bruto Global.

O acordo Mercosul-UE significa, ainda, um relevante avanço no multilateralismo. Em um contexto no qual a maior economia mundial, sob a liderança do presidente eleito Donald Trump, pretende avançar com medidas protecionistas, o estreitamento comercial entre os dois blocos econômicos representa uma alternativa estratégica. Trata-se, em última instância, de um posicionamento político ante um cenário econômico acirrado. Como ressaltou a líder europeia Ursula von der Leyen, "em um mundo cada vez mais conflituoso, demonstramos que democracias podem confiar umas nas outras. Esse acordo não é apenas uma oportunidade econômica. É uma necessidade política".

Apesar dos esforços para se chegar a um entendimento, existem obstáculos reais à implementação do acordo. Uma etapa crucial ocorrerá no Conselho Europeu. O texto concluído em Montevidéu precisará ser aprovado por pelo menos 15 dos 27 países que integram o conselho, correspondendo ao aval de pelo menos 65% da população do bloco econômico, o equivalente a 310 milhões de habitantes.

Como esperado, a França capitaneia a resistência à aproximação econômica entre os dois blocos. O Palácio do Eliseu, novamente, deixou clara a insatisfação com os termos negociados, considerados inaceitáveis. Na mesma toada crítica se posicionam Polônia e Áustria. Em compensação, países como Portugal e Espanha saúdam o acordo porque, assim como a presidência da Comissão Europeia, veem vantagens na abertura de livre-comércio.

Do lado sul-americano, espera-se que o avanço do acordo comercial mais complexo negociado no âmbito do Mercosul impulsione o bloco econômico a um novo patamar. Apesar do temperamento histriônico e da postura ultraliberal, o presidente da Argentina, Javier Milei, marca um ponto quando afirma que o Mercosul pode ser comparado a uma "prisão", pois cláusulas internas impedem os países-membros de negociarem acordos bilaterais. O presidente uruguaio, Lacalle Pou, queixa-se no mesmo sentido. "A existência do Mercosul não é contrariada com a flexibilidade do bloco. Sejamos, cresçamos, não atacamos o espírito fundador. Simplesmente progredimos", defendeu.

O Brasil, que exerceu papel fundamental na criação do Mercosul e foi decisivo no acordo com a UE, tem, nessa nova página, a oportunidade de encontrar uma solução que atenda aos interesses dos países-membros e ao setor produtivo nacional.

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