Descontrole da polícia ao atirar faz de todos vítimas indefesas
O Globo
Agentes da PRF balearam na cabeça jovem que
estava com a família a caminho da ceia de Natal
O descontrole com que policiais têm agido nas
ruas e estradas brasileiras causou mais uma tragédia. Desta vez, na véspera do
Natal. Juliana Leite Rangel, de 26 anos, foi baleada na cabeça durante
abordagem da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Rodovia Washington Luís
(BR-040) em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A jovem estava a caminho de
Niterói, na Região Metropolitana do Rio, para cear com a família. Seu pai,
Alexandre Rangel, baleado na mão esquerda, contou ter dado sinal com o
pisca-pisca de que encostaria o carro depois de ouvir a sirene da viatura, mas,
segundo afirmou, os policiais já saíram atirando. A Corregedoria-Geral da PRF
determinou o afastamento preventivo dos agentes envolvidos na ação.
Casos como o de Juliana têm se tornado uma rotina frequente, que não pode ser tolerada num país civilizado. No dia 6 de outubro, Francisca Marcela da Silva Ribeiro, de 33 anos, foi morta no Ipiranga, Zona Sul de São Paulo, numa troca de tiros. Um policial de folga chegou no momento em que bandidos roubavam a motocicleta em que ela estava com o noivo e também atiraram quando não deviam. Francisca tinha casamento marcado para 20 dias depois e foi velada com o vestido de noiva.
Mesmo quando policiais reagem a ataques de
bandidos, são infelizmente frequentes choques que resultam em mortes. Na semana
passada, um PM de folga reagiu a um assalto e matou um bandido em São Bernardo
do Campo, no ABC Paulista. No dia 5 de novembro, a vítima foi o menino Ryan da
Silva Andrade, de 4 anos, morto durante confronto no Morro São Bento, em
Santos. Tais dramas humanos têm contribuído para aumentar as estatísticas da
letalidade policial no Brasil.
No país como um todo, a taxa de mortes
provocadas pela polícia se manteve em 3,2 por 100 mil habitantes em 2023, de
acordo com o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em alguns
estados, o problema é crônico — caso de Amapá e Bahia, que registram os piores
índices. Noutros, como São Paulo, a situação tem piorado. Segundo levantamento
da Rede de Observatórios de Segurança, houve alta de 21,7% nas mortes por
agentes da segurança paulista em 2024. As 673 mortes registradas até novembro
deste ano já superam os registros dos três anos anteriores.
O estado do Rio registrou queda de 52% de
2019 para 2023, quando houve 871 vítimas. Mas ainda está longe de padrões
aceitáveis, segundo estudo do FBSP feito para medir o impacto da decisão do
Supremo Tribunal Federal que restringiu operações policiais em comunidades da
capital fluminense. A taxa fluminense, 5,4 mortes em confronto com a polícia
por 100 mil habitantes, está acima da média nacional — e casos como o de
Juliana sugerem que isso resulta de erros gravíssimos no treinamento e no
comportamento dos agentes da lei.
É da natureza do trabalho da polícia a
prontidão para entrar em ação a qualquer momento, dado que bandidos atacam de
surpresa. Mas isso não pode ser feito de forma indiscriminada. É crucial o
respeito aos protocolos que protegem a vida de inocentes e evitam mortes
desnecessárias de bandidos. A persistir o descaso que parece imperar em certas
corporações policiais, muitas outras famílias chorarão por seus mortos e
feridos não apenas na noite de Natal, mas o ano inteiro.
Medicina é exemplo do impacto positivo da
inteligência artificial
O Globo
Uso da tecnologia tem significado
diagnósticos melhores, mais rápidos, mais baratos — e mais vidas salvas
Enquanto o mundo se enche de temores em torno
da inteligência artificial, os avanços trazidos pela tecnologia já se fazem
sentir em diversas áreas. Em nenhuma, talvez, seu impacto positivo seja tão
eloquente quanto na medicina. Sistemas de IA têm significado diagnósticos
melhores, mais rápidos e mais baratos.
Os benefícios para os pacientes são
inequívocos em diversas especialidades médicas. A tecnologia tem permitido
diagnósticos mais precoces de câncer e outras doenças, tornando o tratamento
mais eficaz. Também é possível saber mais cedo se lesões ou tumores são
benignos, evitando biópsias desnecessárias. Diagnósticos melhores e mais
rápidos permitem que os médicos tenham mais tempo para interagir com os
pacientes, explicar-lhes o tratamento e analisar outros aspectos dos casos.
Deixam de ser surpreendidos por reações imprevistas aos tratamentos.
Hoje as estimativas de erros de diagnóstico
giram em torno de 6% do total, e desses perto de 5% resultam em morte ou
sequelas permanentes nos pacientes. O uso de IA será decisivo para melhorar tal
desempenho. Hospitais que usam IA no diagnóstico de derrames cerebrais têm
economizado 40 minutos até o atendimento cirúrgico do paciente, tempo que pode
significar a diferença entre a vida e a morte.
A análise de imagens de colonoscopia por
softwares de IA cortou pela metade os erros em diagnósticos de lesões
potencialmente cancerígenas, constatou pesquisa de 2022 feita por várias
instituições científicas americanas. Uma revisão recente de estudos sobre
possíveis casos de câncer de pele demonstrou que diagnósticos feitos com ajuda
da IA são mais precisos. Outra pesquisa, sobre câncer de mama, demonstrou que a
carga de trabalho dos radiologistas caiu 68% graças à IA.
Um estudo de um hospital de Boston constatou
que médicos também se saem melhor nos diagnósticos ao usar robôs de IA
similares ao ChatGPT. O próprio robô pode se sair melhor sozinho. No estudo,
obteve taxa de acerto de 90% nos diagnósticos, ante 76% com a participação de
médicos e de 74% sem o uso da IA. Isso não significa que o médico deva ser
substituído por uma máquina. Mas certamente a IA propiciará a reeducação dos
profissionais para lidar melhor com os próprios erros quando confrontados com
as opiniões divergentes de robôs especializados.
Outro campo beneficiado é a pesquisa médica.
O AlphaFold2, IA desenvolvida pelo Google, tem sido usado para simular e
decifrar as proteínas que governam todas as atividades do organismo humano. Os
avanços obtidos no século passado levavam anos de trabalho duro. Com a IA, as
pesquisas ganham velocidade e resultam em tratamento mais rápido para várias
doenças. A medicina demonstra que, em vez de temer a nova tecnologia, deve-se
tratar de aplicá-la em benefício de todos, da forma mais transparente possível.
Congresso aprova reforma histórica, mas
também lobbies
Valor Econômico
Consumidores pagarão R$ 440 bilhões por jabutis aprovados na lei que regulamenta usinas eólicas offshore
O ‘modo turbo’ que o presidente da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira (PP-AL), imprimiu às votações na Casa impõe vigilância
ao que o Congresso sempre faz no apagar das luzes de anos legislativos. Apesar
de um grande feito a comemorar, também foram aprovados, de cambulhada, muitas
vezes sem discussão e com votações simbólicas, projetos que só interessam
apenas a lobbies bem posicionados ou puros desatinos para em tese contentar
ideologias conservadoras, como os de segurança pública.
Em praticamente 10 dias, a Câmara e o Senado
aprovaram uma reforma histórica, o fim da primeira fase da reforma tributária,
e esse foi seu maior feito. Nos demais projetos, seguiu seu instinto
corporativo para desvirtuar a seu favor a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o
tímido pacote de ajuste fiscal enviado pelo governo. O Congresso conseguiu
torná-lo ainda mais frágil e deixou o governo começar 2025 sem um orçamento
aprovado. O Senado, com agenda igualmente carregada, desvencilhou-se dela sem a
profundidade esperada. Em um marco nas votações, aprovou por 72 votos e sem um
único contrário o programa que reduz até zero os juros das dívidas estaduais,
sem que os Estados tenham de fazer um esforço sério para cortar despesas.
Os deputados se empenharam em destruir o
Estatuto do Desarmamento (2003), que ficará desfigurado se o Senado não
corrigir e o presidente Lula não impuser vetos. Projeto de lei capitaneado por
Alberto Fraga (PL), líder da “bancada da bala”, permitiu a aquisição de armas
por investigados em inquéritos policiais. A lista de possíveis crimes em que os
interessados na compra de armamento estão proibidos de fazê-lo deixou de fora
furtos qualificados, delitos ambientais, maus tratos e, claro, golpes de
Estado. Antes, os deputados aprovaram a extensão para CACs do direito de porte
de carabinas, armas de uso exclusivo das forças de segurança. Com o avanço
nacional do crime organizado e das milícias, a bancada da bala não guarda o
menor cuidado ao facilitar ao máximo a disponibilidade geral de armamentos.
Os deputados buscaram ainda uma forma de
ampliar a proteção ao arbítrio policial, ao aprovarem uma espécie de
“excludente de ilicitude” para policiais infiltrados que os dispensa de
tratamento legal para atos cometidos nessas operações. O agente não precisa
intervir em todos os eventuais crimes que presenciou, só nos que decidir
fazê-lo. A possibilidade de “proteger amigos e perseguir inimigos” foi
certeiramente criticada pelo secretário de Assuntos Legislativos do Ministério
da Justiça, Marivaldo Pereira (O Globo, 13-6). Em votação simbólica, foi
aprovada anistia para porte de armas irregular, na qual as bancadas de PT,
PCdoB e PV foram liberadas para votar. Psol, PSB e Rede votaram contra.
O Senado privilegiou lobbies variados ao
encerrar a votação do projeto que regulamenta a exploração da energia eólica
offshore. Usinas térmicas a carvão foram autorizadas a operar até 2050, 10 anos
a mais do que a proposta original, que já ia na contramão de reduzir o mais
rapidamente possível o uso do combustível mais poluente.
O principal logro do projeto: jogar para a
conta de luz de todos os consumidores os custos de operação de geração de
energia de térmicas a gás tornadas compulsórias, sem qualquer justificativa
para isso a não ser a possível lucratividade para os donos da operação. Sua
contratação será obrigatória em qualquer circunstância, mesmo no caso de
excesso de oferta no país. O projeto de lei autoriza a compra de 4,5 GW sem
preço-teto, isto é, sem que seja fixado um limite de preço.
Da mesma forma, haverá compulsoriedade também
na compra de 4,9 GW de energia proveniente das Pequenas Centrais Hidrelétricas
(PCHs), mais a obrigação de aquisição de 200 MW de uma usina eólica no Sul e
250 MW de planta de hidrogênio. Por outro lado, a renovação de contratos de
fontes alternativas de energia, que deveria passar pelo crivo da Aneel, com a
possibilidade de redução de preços, passou, pelo PL, a prescindir da avaliação
dos órgãos reguladores.
Especialistas calculam que todas as benesses
somadas acrescentarão R$ 440 bilhões na conta de luz dos consumidores, ou um
aumento de 7,5% nas tarifas. A Conta de Desenvolvimento Energético, que rateia
para os consumidores todos os subsídios e disfunções do sistema elétrico,
subirá para R$ 40,6 bilhões no ano que vem, depois de atingir R$ 37,1 bilhões
em 2024, numa escalada ascendente há anos e até agora ininterrupta.
Com apoio do PT, a Companhia Docas do Rio
Grande do Norte foi dividida para a criação da Docas de Alagoas. Além de
atrasarem toda a agenda legislativa e postergarem o orçamento de 2025, os
congressistas ampliaram em R$ 11,5 bilhões suas emendas, as de comissão, que,
embora não impositivas, serão corrigidas pela inflação e não poderão ser
contingenciadas. O fundo partidário terá aumento acima do teto de gastos, de
7%.
São muitas vantagens para quem executa o
trabalho vital de elaborar as leis e decidir os destinos do dinheiro público às
pressas, sem profundidade e muitas vezes sem o mínimo conhecimento a respeito
do que está sendo votado. A esperança é que com a redução do número de partidos
a ação do Congresso seja mais responsável e menos corporativa.
Câmara prefere o populismo penal a evidências
Folha de S. Paulo
Com aprovação de projetos disparatados em
segurança pública, deputados abraçam extremismos em vez de criar leis eficazes
A democracia sempre foi vulnerável ao
populismo. Platão e Aristóteles já se queixavam disso. E, se há um setor em que
o populismo grassa, é o da segurança pública.
A disposição humana para buscar proteção
contra perigos é um traço evolutivo que contribuiu para a preservação da
espécie, mas que pode se transformar num problema quando manipulada para fins
políticos.
A facilidade com que se cai nessas armadilhas
é tanta que demagogos que as utilizam nem precisam se dar ao trabalho de
produzir argumentação convincente baseada em fatos e números.
Donald Trump,
por exemplo, conquistou preciosos votos deflagrando uma campanha mentirosa de
oposição à imigração na qual descreve estrangeiros como uma horda de criminosos
—pouco importa que, na realidade, imigrantes cometam em média menos delitos que
os americanos.
No Brasil, deputados federais deram sua
contribuição ao populismo penal neste final de ano, ao aprovarem projetos de
lei altamente perigosos.
No caso mais chocante, uma norma obrigará
condenados por crimes que envolvam agressão sexual contra menores a
realizar castração química, um tratamento medicamentoso para reduzir
a libido, o que conteria o risco de reincidência. A proposta ainda será
apreciada pelo Senado.
Trata-se de dispositivo incluído de modo
açodado e sem o debate necessário em projeto sobre outro tema. Ademais, e ainda
pior, é inapelavelmente antiético e carece de respaldo empírico que demonstre
sua eficácia. Apenas o sadismo penal justifica tal ideia.
A outra proposta problemática, que também
depende de aval dos senadores, é a que amplia os
prazos mínimos de internação compulsória de pessoas com
transtornos mentais que foram consideradas inimputáveis. A disfunção aqui é
conceitual.
Com a medida, os parlamentares acabam criando
uma espécie de código penal alternativo destinado a pacientes psiquiátricos.
Isso contraria a própria noção de
inimputabilidade, que é o reconhecimento pela Justiça de que o indivíduo
infrator não tinha capacidade mental para perceber a ilegalidade de seus atos
—condená-lo judicialmente é tão inútil como impor pena de reclusão a um cão que
mordeu uma pessoa.
Por razões utilitárias, é possível defender
que os inimputáveis sejam mantidos à parte da sociedade enquanto representarem
uma ameaça a ela, mas não depois que deixam de sê-lo. São casos médicos, não
criminais, logo estabelecer prazos mínimos é insensato.
Nesse caso, o populismo penal não foi o único
motivador. O Legislativo e a cúpula do Judiciário estão em disputa para dar a
última palavra sobre a questão.
Não há defesas muito efetivas contra o
populismo em qualquer esfera de poder. Ao menos é possível exigir que
parlamentares apresentem evidências que sustentem suas ideias. Com esse tipo de
cobrança, nenhuma das duas propostas teria sido aprovada.
A ponte e o Estado que gasta muito, mas
investe pouco
Folha de S. Paulo
Desabamento ilustra escassez de verbas
públicas para infraestrutura nacional, que precisa depender mais do setor
privado
Ainda está por ser dimensionada a extensão da
tragédia provocada pelo desabamento da ponte Juscelino Kubitscheck de Oliveira,
na divisa entre Tocantins e Maranhão.
Desde domingo (22), já se
contam seis mortos, e há ao menos 11 desaparecidos. Apura-se ainda a
gravidade do dano causado às águas do rio Tocantins, dado que caminhões que
passavam pela ponte no momento da queda carregavam 76 toneladas de ácido
sulfúrico e 22 mil litros de defensivos agrícolas.
O Dnit, departamento encarregado das rodovias
federais, abriu sindicância, e a Polícia
Federal também vai investigar o caso. É plausível que se
descubra negligência ou irregularidade —contudo é certo que não se trata de um
problema isolado.
Como reportou a Folha, existem nada
menos que 597 pontes geridas pelo Dnit em situação classificada como ruim, a
mesma da ponte que caiu. Outras 130 são consideradas em estado crítico, ainda
pior. Isso significa que 12,5%
(727) do total nacional se encontra nessas duas categorias.
Outros levantamentos do tipo provavelmente
indicarão precariedades em setores diversos da infraestrutura,
o que é reflexo de uma reconfiguração ainda incompleta do Estado brasileiro.
Desde o nome, a ponte Juscelino Kubitscheck
remetia aos anos do desenvolvimentismo, quando se atribuía ao investimento
público o papel de motor da economia. A estrutura foi inaugurada em 1961,
quando os aportes de União, estados, municípios e estatais somavam perto de 6%
do Produto Interno Bruto —a cifra chegaria a 10,6% em 1976, no período do
chamado milagre econômico.
Ainda que Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
adote o discurso político de que todo gasto público é investimento, este é um
tipo de gasto bem definido na contabilidade nacional: são obras e aquisições de
equipamentos destinadas a ampliar a capacidade física de produção de bens e
serviços.
Com o colapso do desenvolvimentismo e
da ditadura
militar na década de 1980, o Estado democrático assumiu a
prioridade correta de combater a pobreza e a desigualdade social. A grande
expansão de benefícios previdenciários, trabalhistas e assistenciais das
últimas décadas reduziu o espaço orçamentário para o investimento público, que
não passou de 2,6% do PIB em
2023.
Ainda está em curso —e sujeito a retrocessos—
o processo de vendas de estatais e concessões para transferir ao setor privado
mais responsabilidade na expansão da infraestrutura. Enquanto isso, o Estado
mal consegue preservar o que já instalou.
Livre, leve e solto
O Estado de S. Paulo
A reabilitação penal e política de José
Dirceu, que agora pode circular como se fosse o mais probo dos homens públicos,
escarnece dos cidadãos que acreditaram num Brasil mais decente
Aos brasileiros justos tem sido negado o
direito de sonhar com um ano novo mais auspicioso para o País. Uma nesga de
esperança por um futuro mais decente é logo abatida por sinais de que aqui, ao
que parece, o crime compensa, a depender da resiliência dos malfeitores para
amargar um período de dissabores que, mais cedo ou mais tarde, decerto serão
atenuados, quando não revertidos, em virtude de suas relações com figuras bem
posicionadas na política e no Judiciário. José Dirceu é a personificação desse
Brasil que deu certo para os apanhados em malfeitos que sabem esperar.
No dia 17 de dezembro, a 5.ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou dois processos contra Dirceu no
âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba (PR), nos quais ele havia sido
condenado a mais de 20 anos de prisão. Segundo o advogado Roberto Podval, eram
as duas últimas ações penais a que seu cliente respondia, de modo que o petista
tem o caminho aberto para recuperar seus direitos políticos e se candidatar a
um mandato eletivo em 2026. Dirceu já manifestou em público a intenção de
voltar à Câmara dos Deputados, de onde saiu cassado em 2005 na esteira de outro
escândalo de corrupção, o “mensalão”, do qual, como o País lembra bem, ele foi
um personagem de proa.
O consigliere petista tem motivos
de sobra para colocar 2024 entre os melhores anos de sua vida. Em março, sua
festa de aniversário em Brasília foi, na verdade, o début de sua
reabilitação política. Pelo salão transitou a nata do poder político e
econômico do País, incluindo autoridades de alto escalão do Executivo e do
Legislativo, das mais variadas afiliações partidárias, empresários, advogados e
jornalistas. Dirceu circulou livre, leve e solto entre os cerca de 500
convidados como se fosse o mais probo dos homens públicos, como um injustiçado
que, enfim, encontrava a redenção.
Durante o rega-bofe, nenhum dos convivas
manifestou o menor sinal de constrangimento por estar celebrando um criminoso
condenado em múltiplos processos por crimes gravíssimos, como corrupção,
lavagem de dinheiro e organização criminosa – condenações estas corroboradas
por todas as instâncias judiciais, ou seja, sem que houvesse dúvidas sobre a
autoria e a materialidade dos crimes que foram imputados a ele. Ao contrário,
Dirceu foi tratado como um oráculo político, além de uma peça fundamental para
o projeto de poder do PT para além do atual mandato do presidente Lula da
Silva.
O encerramento das ações contra Dirceu no STJ
é decorrência direta de uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Gilmar Mendes, que, em outubro, anulou todos os atos processuais tomados
ou autorizados pelo então juiz Sérgio Moro contra o petista. O decano do STF
estendeu a Dirceu os mesmos benefícios concedidos ao companheiro Lula da Silva,
sob a argumentação de que, assim como o presidente da República, Dirceu teria
sido vítima de uma “ação coordenada” entre Moro e os procuradores da força-tarefa
da Lava Jato no Paraná. Porém, nem a Mendes nem a Dias Toffoli – outro ministro
do STF que resolveu fazer tábula rasa dos fatos e das provas, reescrevendo, na
prática, a história da maior operação de combate à corrupção de que o País já
teve notícia – ocorreu que as supostas evidências desse “conluio” entre o
Judiciário e o parquet foram obtidas por meios manifestamente
ilegais, sendo, portanto, inválidas.
Ninguém minimamente bem informado sobre o que
aconteceu no Brasil nos últimos anos haverá de negar que os procuradores da
Lava Jato decerto cometeram muitos erros processuais, para dizer o mínimo, em
nome do que entendiam ser um “bem maior”, qual seja, a purgação da política por
meio do enfrentamento à corrupção com todos os instrumentos que tinham à mão,
fossem legais ou não. Aí está o resultado desse messianismo. Sem que a
culpabilidade de condenados por corrupção, muitos deles réus confessos, fosse posta
em xeque do ponto de vista factual, quase todos os criminosos envolvidos no
“petrolão” foram exonerados de prestar contas à Justiça e hoje podem posar de
inocentes. Dirceu é a face mais conhecida desse tapa na cara do Brasil honesto.
Babás da democracia
O Estado de S. Paulo
Num país onde Judiciário extrapola
prerrogativas e autoridades veem a sociedade como hipossuficiente, o TSE não
hesita em tutelar a decisão soberana de eleitores – inclusive a de não votar
O ano de 2024 deverá ficar marcado como
aquele em que a mais alta cúpula do Judiciário foi ao limite de uma convicção:
a de que precisa atuar como uma espécie de bedel da política brasileira.
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e, por efeito imediato, do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) empolgaram-se como nunca com o autoproclamado
exercício de Poder Moderador, promovendo a resolução de conflitos entre os
Poderes – por vezes, inflamando querelas entre instituições – e, sobretudo,
extrapolando suas prerrogativas constitucionais. Não satisfeitos com o dever de
analisar a constitucionalidade ou não das matérias que deliberam, não raro
avançaram, por exemplo, sobre a própria execução de políticas públicas, como se
fossem legisladores ou tomadores de decisão do Executivo, arvoraram-se em
censores ou fixadores de tese de repercussão geral sobre práticas jornalísticas
ou atuaram como câmara de conciliação entre partes.
Com tal condição, seria de estranhar se não
avançassem também sobre direitos de eleitores e cidadãos. Nesta seara, a
presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, recentemente se incluiu na galeria de
bedéis na qual já estavam muitos dos seus pares no STF. A ministra anunciou que
pode ser revista a possibilidade de usar o aplicativo e-Título para justificar,
no mesmo dia da eleição, o não comparecimento à seção eleitoral. Segundo ela,
seria uma forma de evitar o incentivo à abstenção. “Pode ser que no dia a gente
diga: a justificativa no dia não será feita, será feita depois. Até para dar um
tempo para a pessoa pensar”, afirmou a ministra, ao apresentar um balanço das
eleições municipais. O relatório das eleições deste ano foi ainda mais direto,
ao informar que o uso do aplicativo “haverá de ser revisitado”, sob o argumento
de que seria contrário à obrigatoriedade do voto.
Eis a lógica de sentido duvidoso e eficácia
questionável: contra a vontade do eleitor de eventualmente se ausentar das
urnas, quando o faz sabendo que precisará justificar o voto ou pagar uma multa
pela ausência não justificada, o Tribunal pretende não só inibir o ganho
trazido pela tecnologia, como também tutelar a escolha de cidadãos. “Dar um
tempo para a pessoa pensar” – como disse a ministra – equivale ao menosprezo da
capacidade política e cívica dos eleitores. Para o TSE, o alto patamar de
abstenções nas últimas eleições não se explica pela decisão racional do
eleitor, mas em grande medida pela facilidade de um aplicativo à mão; não
resulta do desconforto dos eleitores com o estado de coisas da política ou com
eventual descompasso entre suas preferências e os candidatos em disputa, mas
com a falta de tempo “para pensar”. É a lógica da democracia sob tutela, status
preferencial de ministros das mais altas Cortes do País.
Convém lembrar-lhes que nossa abstenção
eleitoral não é maior do que a de muitas democracias consolidadas, e os
porcentuais de eleitores que deixam de exercer seu direito ao voto nos EUA ou
em países europeus costumam ser até maiores, já que são nações onde o voto não
é obrigatório como aqui. Em democracias liberais, é natural que eleitores, de
livre vontade, decidam abster-se de votar. E o fazem pelas razões que julgam
convenientes, isto é, por convicção política (ou falta de) ou mesmo por desejo
de estarem à margem das urnas. A esse propósito, é preciso esclarecer que a
saúde de uma democracia não se define pela afluência dos eleitores às urnas, e
sim pela aceitação pacífica do resultado das eleições, inclusive por parte
daqueles que não quiseram votar.
Este jornal não se cansará de defender que o
fim do voto obrigatório faria bem à democracia. A obrigatoriedade pressupõe a
presunção de que a maioria, se pudesse, não sairia de casa para votar. No
Brasil, autoridades costumam ver a sociedade como incapaz de tomar decisões
racionais – razão pela qual a Justiça Eleitoral não só a obriga ao voto, como
frequentemente decide o que o eleitor pode ler, ver e ouvir numa campanha
eleitoral. A imposição de regras é, no fundo, um atalho para o que deveria ser
uma ação de convencimento e um esforço de melhoria das práticas políticas por
parte dos representantes. Mas, na democracia sob tutela, o convencimento se dá
à base de coação.
O lobby dos barulhentos venceu
O Estado de S. Paulo
Revisão do PSIU aprovada pela Câmara é um
revés para a qualidade de vida em São Paulo
Está liberada a poluição sonora na capital
paulista. Por 38 votos a 16, a Câmara Municipal aprovou, no dia 20 de dezembro,
um projeto de lei que amplia o rol de exceções ao limite de barulho determinado
pelo Programa Silêncio Urbano (PSIU).
A partir de agora, responsáveis por eventos e
shows de grande porte, como os realizados em estádios, além das instituições de
ensino, não podem mais ser responsabilizados pelo excesso de ruído que causam,
infernizando a vizinhança. O projeto foi à sanção do prefeito Ricardo Nunes
(MDB). Segundo ele, a revisão do PSIU “segue na direção de consolidar o papel
de São Paulo como capital de eventos e fomento à geração de emprego e renda”.
Em relação aos estabelecimentos de ensino, o prefeito argumentou que a permissão
para que façam mais barulho “amplia as garantias de pleno funcionamento das
atividades educacionais”.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a
falta de coragem política dos vereadores de São Paulo para tratar abertamente
de uma matéria muitíssimo impopular, por razões óbvias. A alteração das regras
do PSIU foi aprovada por meio de um “jabuti” inserido em um projeto de lei que,
originalmente, tratava da expansão de um aterro sanitário em São Mateus, na
zona leste da capital paulista. Sabe-se que o “jabuti”, ou seja, a inclusão de
um dispositivo legal em uma proposta legislativa que versa sobre matéria não afeita,
é o ardil a que recorrem os parlamentares quando querem aprovar uma norma
polêmica sem ter de arcar com os ônus políticos da decisão.
Ademais, as justificativas tanto do prefeito
como dos vereadores que aprovaram o projeto de lei não param de pé. São Paulo
já é – e não de hoje – um dos maiores centros de eventos da América Latina, se
não o maior. Aqui acontecem fóruns, feiras, congressos, shows e exposições de
toda sorte, atraindo milhões de turistas a cada ano. Basta dizer que, em 2023,
São Paulo, pela primeira vez, desbancou outras cidades da Região Nordeste como
o destino turístico mais procurado do País, de acordo com a Associação Brasileira
das Operadoras de Turismo.
A capital paulista alcançou esse patamar
invejável com todas as limitações impostas pelo PSIU. Até agora, não se tem
notícia de show ou evento de grande porte que tenha deixado de acontecer na
cidade porque seus organizadores não concordaram com as regras para a emissão
de ruídos em São Paulo – que, vale dizer, nem são tão draconianas assim.
É evidente que é legítimo o empenho da
Prefeitura e da Câmara Municipal para tornar São Paulo uma cidade cada vez mais
desenvolvida. Mas o progresso não pode vir à custa da paz e da saúde física e
mental dos munícipes. Todos os que moram nesta megalópole estão cientes de que
terão de lidar com ruídos inexistentes em cidades menores e menos populosas.
Mas há limites. E esses limites sempre foram bem balanceados no PSIU, em que
pese a tibieza da Prefeitura para fiscalizar seu cumprimento.
Mas agora, ao que parece, o lobby dos
barulhentos calou mais fundo na alma dos vereadores paulistanos do que o
sossego dos munícipes que eles, em tese, deveriam representar.
Cadastro nacional de pets é política acertada
Correio Braziliense
Ainda que o texto sinalize que não se trata
de um projeto que sairá do papel na velocidade merecida, o governo acerta ao
adotar política que dialoga com a realidade dos lares brasileiros
Entre as leis sancionadas pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva neste fim de ano, uma afeta cerca de 70% dos
brasileiros. Aqueles que têm um pet entre os integrantes da família. O chefe do
Executivo deu o aval para a criação do Cadastro Nacional de Animais Domésticos,
que tem, entre os objetivos, o combate aos maus-tratos, o controle de zoonoses
e um melhor manejo com as situações de abandono de animais. Ainda que o texto
sinalize que não se trata de um projeto que sairá do papel na velocidade merecida,
o governo acerta ao adotar política que dialoga com a realidade dos lares
brasileiros.
Estimativa do Instituto Pet Brasil revela que
há no país mais pets do que crianças menores de 14 anos. São 160 milhões de
animais — principalmente cachorros (62 milhões) e gatos (30 milhões) — e 40
milhões de meninos e meninas. O levantamento indica que abrigamos a terceira
maior população de animais domésticos do mundo — atrás apenas da China e dos
Estados Unidos —, que poderá ser melhor conhecida com a adoção de um cadastro
nacional.
Para isso, os tutores terão que informar
dados próprios, como o endereço e o CPF (CPF); se o animal foi comprado ou
adotado; o nome popular da espécie, raça, sexo, idade real ou presumida;
as vacinas aplicadas e as doenças contraídas ou em tratamento; e o uso de chip
pelo animal que o identifique como cadastrado. Além de apostar na boa vontade
dos humanos — o preenchimento e a criação do cadastro não são obrigatórios —, a
iniciativa, para ser completa, dependerá da disponibilidade financeira: chips
não são implantados gratuitamente.
Um outro possível dificultador é de ordem
administrativa. A lei prevê que a União será responsável pela criação,
manutenção e fiscalização do cadastro, que será adotado por todos os entes
federados. Por sua vez, a atualização da plataforma para garantir eficiência ao
processo poderá ser descentralizada. Isso pressupõe, no mínimo, o
treinamento de um número considerável de agentes nos estados e municípios para
manter a uniformidade dos dados.
Conta a favor de tamanho investimento a
possibilidade de ter em mãos uma ferramenta que ajude no enfrentamento a um
crime cada vez mais comum nas cidades: o abandono de animais. Segundo
levantamento global conduzido pela Mars Petcare, há no Brasil mais de 30
milhões de gatos e cachorros nessa condição. No DF, são 1,5 milhão, conforme
cálculo da Confederação Brasileira de Proteção Animal. A aposta é de que, com o
chip e o cadastro, os tutores desses animais sejam mais facilmente
identificados e punidos.
A lei 15.046 também prevê punições, penais e administrativas, quando o tutor fornecer dados falsos sobre o pet ou omitir informações. Tal medida deve lançar luz sobre outra prática desafiante no país: a venda e a doação de animais domésticos, situações em que não são incomuns as denúncias de maus-tratos. Nesse sentido, faltou prever na nova legislação atividades educativas que estimulem a convivência harmônica e ética entre as espécies, inclusive nos ambientes escolares, além da ampliação de serviços veterinários públicos. Complementos legais serão bem-vindos para que a acertada iniciativa seja bem implementada.
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