quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Descontrole da polícia ao atirar faz de todos vítimas indefesas

O Globo

Agentes da PRF balearam na cabeça jovem que estava com a família a caminho da ceia de Natal

O descontrole com que policiais têm agido nas ruas e estradas brasileiras causou mais uma tragédia. Desta vez, na véspera do Natal. Juliana Leite Rangel, de 26 anos, foi baleada na cabeça durante abordagem da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Rodovia Washington Luís (BR-040) em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A jovem estava a caminho de Niterói, na Região Metropolitana do Rio, para cear com a família. Seu pai, Alexandre Rangel, baleado na mão esquerda, contou ter dado sinal com o pisca-pisca de que encostaria o carro depois de ouvir a sirene da viatura, mas, segundo afirmou, os policiais já saíram atirando. A Corregedoria-Geral da PRF determinou o afastamento preventivo dos agentes envolvidos na ação.

Casos como o de Juliana têm se tornado uma rotina frequente, que não pode ser tolerada num país civilizado. No dia 6 de outubro, Francisca Marcela da Silva Ribeiro, de 33 anos, foi morta no Ipiranga, Zona Sul de São Paulo, numa troca de tiros. Um policial de folga chegou no momento em que bandidos roubavam a motocicleta em que ela estava com o noivo e também atiraram quando não deviam. Francisca tinha casamento marcado para 20 dias depois e foi velada com o vestido de noiva.

Mesmo quando policiais reagem a ataques de bandidos, são infelizmente frequentes choques que resultam em mortes. Na semana passada, um PM de folga reagiu a um assalto e matou um bandido em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. No dia 5 de novembro, a vítima foi o menino Ryan da Silva Andrade, de 4 anos, morto durante confronto no Morro São Bento, em Santos. Tais dramas humanos têm contribuído para aumentar as estatísticas da letalidade policial no Brasil.

No país como um todo, a taxa de mortes provocadas pela polícia se manteve em 3,2 por 100 mil habitantes em 2023, de acordo com o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em alguns estados, o problema é crônico — caso de Amapá e Bahia, que registram os piores índices. Noutros, como São Paulo, a situação tem piorado. Segundo levantamento da Rede de Observatórios de Segurança, houve alta de 21,7% nas mortes por agentes da segurança paulista em 2024. As 673 mortes registradas até novembro deste ano já superam os registros dos três anos anteriores.

O estado do Rio registrou queda de 52% de 2019 para 2023, quando houve 871 vítimas. Mas ainda está longe de padrões aceitáveis, segundo estudo do FBSP feito para medir o impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu operações policiais em comunidades da capital fluminense. A taxa fluminense, 5,4 mortes em confronto com a polícia por 100 mil habitantes, está acima da média nacional — e casos como o de Juliana sugerem que isso resulta de erros gravíssimos no treinamento e no comportamento dos agentes da lei.

É da natureza do trabalho da polícia a prontidão para entrar em ação a qualquer momento, dado que bandidos atacam de surpresa. Mas isso não pode ser feito de forma indiscriminada. É crucial o respeito aos protocolos que protegem a vida de inocentes e evitam mortes desnecessárias de bandidos. A persistir o descaso que parece imperar em certas corporações policiais, muitas outras famílias chorarão por seus mortos e feridos não apenas na noite de Natal, mas o ano inteiro.

Medicina é exemplo do impacto positivo da inteligência artificial

O Globo

Uso da tecnologia tem significado diagnósticos melhores, mais rápidos, mais baratos — e mais vidas salvas

Enquanto o mundo se enche de temores em torno da inteligência artificial, os avanços trazidos pela tecnologia já se fazem sentir em diversas áreas. Em nenhuma, talvez, seu impacto positivo seja tão eloquente quanto na medicina. Sistemas de IA têm significado diagnósticos melhores, mais rápidos e mais baratos.

Os benefícios para os pacientes são inequívocos em diversas especialidades médicas. A tecnologia tem permitido diagnósticos mais precoces de câncer e outras doenças, tornando o tratamento mais eficaz. Também é possível saber mais cedo se lesões ou tumores são benignos, evitando biópsias desnecessárias. Diagnósticos melhores e mais rápidos permitem que os médicos tenham mais tempo para interagir com os pacientes, explicar-lhes o tratamento e analisar outros aspectos dos casos. Deixam de ser surpreendidos por reações imprevistas aos tratamentos.

Hoje as estimativas de erros de diagnóstico giram em torno de 6% do total, e desses perto de 5% resultam em morte ou sequelas permanentes nos pacientes. O uso de IA será decisivo para melhorar tal desempenho. Hospitais que usam IA no diagnóstico de derrames cerebrais têm economizado 40 minutos até o atendimento cirúrgico do paciente, tempo que pode significar a diferença entre a vida e a morte.

A análise de imagens de colonoscopia por softwares de IA cortou pela metade os erros em diagnósticos de lesões potencialmente cancerígenas, constatou pesquisa de 2022 feita por várias instituições científicas americanas. Uma revisão recente de estudos sobre possíveis casos de câncer de pele demonstrou que diagnósticos feitos com ajuda da IA são mais precisos. Outra pesquisa, sobre câncer de mama, demonstrou que a carga de trabalho dos radiologistas caiu 68% graças à IA.

Um estudo de um hospital de Boston constatou que médicos também se saem melhor nos diagnósticos ao usar robôs de IA similares ao ChatGPT. O próprio robô pode se sair melhor sozinho. No estudo, obteve taxa de acerto de 90% nos diagnósticos, ante 76% com a participação de médicos e de 74% sem o uso da IA. Isso não significa que o médico deva ser substituído por uma máquina. Mas certamente a IA propiciará a reeducação dos profissionais para lidar melhor com os próprios erros quando confrontados com as opiniões divergentes de robôs especializados.

Outro campo beneficiado é a pesquisa médica. O AlphaFold2, IA desenvolvida pelo Google, tem sido usado para simular e decifrar as proteínas que governam todas as atividades do organismo humano. Os avanços obtidos no século passado levavam anos de trabalho duro. Com a IA, as pesquisas ganham velocidade e resultam em tratamento mais rápido para várias doenças. A medicina demonstra que, em vez de temer a nova tecnologia, deve-se tratar de aplicá-la em benefício de todos, da forma mais transparente possível.

Congresso aprova reforma histórica, mas também lobbies

Valor Econômico

Consumidores pagarão R$ 440 bilhões por jabutis aprovados na lei que regulamenta usinas eólicas offshore

O ‘modo turbo’ que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), imprimiu às votações na Casa impõe vigilância ao que o Congresso sempre faz no apagar das luzes de anos legislativos. Apesar de um grande feito a comemorar, também foram aprovados, de cambulhada, muitas vezes sem discussão e com votações simbólicas, projetos que só interessam apenas a lobbies bem posicionados ou puros desatinos para em tese contentar ideologias conservadoras, como os de segurança pública.

Em praticamente 10 dias, a Câmara e o Senado aprovaram uma reforma histórica, o fim da primeira fase da reforma tributária, e esse foi seu maior feito. Nos demais projetos, seguiu seu instinto corporativo para desvirtuar a seu favor a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o tímido pacote de ajuste fiscal enviado pelo governo. O Congresso conseguiu torná-lo ainda mais frágil e deixou o governo começar 2025 sem um orçamento aprovado. O Senado, com agenda igualmente carregada, desvencilhou-se dela sem a profundidade esperada. Em um marco nas votações, aprovou por 72 votos e sem um único contrário o programa que reduz até zero os juros das dívidas estaduais, sem que os Estados tenham de fazer um esforço sério para cortar despesas.

Os deputados se empenharam em destruir o Estatuto do Desarmamento (2003), que ficará desfigurado se o Senado não corrigir e o presidente Lula não impuser vetos. Projeto de lei capitaneado por Alberto Fraga (PL), líder da “bancada da bala”, permitiu a aquisição de armas por investigados em inquéritos policiais. A lista de possíveis crimes em que os interessados na compra de armamento estão proibidos de fazê-lo deixou de fora furtos qualificados, delitos ambientais, maus tratos e, claro, golpes de Estado. Antes, os deputados aprovaram a extensão para CACs do direito de porte de carabinas, armas de uso exclusivo das forças de segurança. Com o avanço nacional do crime organizado e das milícias, a bancada da bala não guarda o menor cuidado ao facilitar ao máximo a disponibilidade geral de armamentos.

Os deputados buscaram ainda uma forma de ampliar a proteção ao arbítrio policial, ao aprovarem uma espécie de “excludente de ilicitude” para policiais infiltrados que os dispensa de tratamento legal para atos cometidos nessas operações. O agente não precisa intervir em todos os eventuais crimes que presenciou, só nos que decidir fazê-lo. A possibilidade de “proteger amigos e perseguir inimigos” foi certeiramente criticada pelo secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira (O Globo, 13-6). Em votação simbólica, foi aprovada anistia para porte de armas irregular, na qual as bancadas de PT, PCdoB e PV foram liberadas para votar. Psol, PSB e Rede votaram contra.

O Senado privilegiou lobbies variados ao encerrar a votação do projeto que regulamenta a exploração da energia eólica offshore. Usinas térmicas a carvão foram autorizadas a operar até 2050, 10 anos a mais do que a proposta original, que já ia na contramão de reduzir o mais rapidamente possível o uso do combustível mais poluente.

O principal logro do projeto: jogar para a conta de luz de todos os consumidores os custos de operação de geração de energia de térmicas a gás tornadas compulsórias, sem qualquer justificativa para isso a não ser a possível lucratividade para os donos da operação. Sua contratação será obrigatória em qualquer circunstância, mesmo no caso de excesso de oferta no país. O projeto de lei autoriza a compra de 4,5 GW sem preço-teto, isto é, sem que seja fixado um limite de preço.

Da mesma forma, haverá compulsoriedade também na compra de 4,9 GW de energia proveniente das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), mais a obrigação de aquisição de 200 MW de uma usina eólica no Sul e 250 MW de planta de hidrogênio. Por outro lado, a renovação de contratos de fontes alternativas de energia, que deveria passar pelo crivo da Aneel, com a possibilidade de redução de preços, passou, pelo PL, a prescindir da avaliação dos órgãos reguladores.

Especialistas calculam que todas as benesses somadas acrescentarão R$ 440 bilhões na conta de luz dos consumidores, ou um aumento de 7,5% nas tarifas. A Conta de Desenvolvimento Energético, que rateia para os consumidores todos os subsídios e disfunções do sistema elétrico, subirá para R$ 40,6 bilhões no ano que vem, depois de atingir R$ 37,1 bilhões em 2024, numa escalada ascendente há anos e até agora ininterrupta.

Com apoio do PT, a Companhia Docas do Rio Grande do Norte foi dividida para a criação da Docas de Alagoas. Além de atrasarem toda a agenda legislativa e postergarem o orçamento de 2025, os congressistas ampliaram em R$ 11,5 bilhões suas emendas, as de comissão, que, embora não impositivas, serão corrigidas pela inflação e não poderão ser contingenciadas. O fundo partidário terá aumento acima do teto de gastos, de 7%.

São muitas vantagens para quem executa o trabalho vital de elaborar as leis e decidir os destinos do dinheiro público às pressas, sem profundidade e muitas vezes sem o mínimo conhecimento a respeito do que está sendo votado. A esperança é que com a redução do número de partidos a ação do Congresso seja mais responsável e menos corporativa.

Câmara prefere o populismo penal a evidências

Folha de S. Paulo

Com aprovação de projetos disparatados em segurança pública, deputados abraçam extremismos em vez de criar leis eficazes

A democracia sempre foi vulnerável ao populismo. Platão e Aristóteles já se queixavam disso. E, se há um setor em que o populismo grassa, é o da segurança pública.

A disposição humana para buscar proteção contra perigos é um traço evolutivo que contribuiu para a preservação da espécie, mas que pode se transformar num problema quando manipulada para fins políticos.

A facilidade com que se cai nessas armadilhas é tanta que demagogos que as utilizam nem precisam se dar ao trabalho de produzir argumentação convincente baseada em fatos e números.

Donald Trump, por exemplo, conquistou preciosos votos deflagrando uma campanha mentirosa de oposição à imigração na qual descreve estrangeiros como uma horda de criminosos —pouco importa que, na realidade, imigrantes cometam em média menos delitos que os americanos.

No Brasil, deputados federais deram sua contribuição ao populismo penal neste final de ano, ao aprovarem projetos de lei altamente perigosos.

No caso mais chocante, uma norma obrigará condenados por crimes que envolvam agressão sexual contra menores a realizar castração química, um tratamento medicamentoso para reduzir a libido, o que conteria o risco de reincidência. A proposta ainda será apreciada pelo Senado.

Trata-se de dispositivo incluído de modo açodado e sem o debate necessário em projeto sobre outro tema. Ademais, e ainda pior, é inapelavelmente antiético e carece de respaldo empírico que demonstre sua eficácia. Apenas o sadismo penal justifica tal ideia.

A outra proposta problemática, que também depende de aval dos senadores, é a que amplia os prazos mínimos de internação compulsória de pessoas com transtornos mentais que foram consideradas inimputáveis. A disfunção aqui é conceitual.

Com a medida, os parlamentares acabam criando uma espécie de código penal alternativo destinado a pacientes psiquiátricos.

Isso contraria a própria noção de inimputabilidade, que é o reconhecimento pela Justiça de que o indivíduo infrator não tinha capacidade mental para perceber a ilegalidade de seus atos —condená-lo judicialmente é tão inútil como impor pena de reclusão a um cão que mordeu uma pessoa.

Por razões utilitárias, é possível defender que os inimputáveis sejam mantidos à parte da sociedade enquanto representarem uma ameaça a ela, mas não depois que deixam de sê-lo. São casos médicos, não criminais, logo estabelecer prazos mínimos é insensato.

Nesse caso, o populismo penal não foi o único motivador. O Legislativo e a cúpula do Judiciário estão em disputa para dar a última palavra sobre a questão.

Não há defesas muito efetivas contra o populismo em qualquer esfera de poder. Ao menos é possível exigir que parlamentares apresentem evidências que sustentem suas ideias. Com esse tipo de cobrança, nenhuma das duas propostas teria sido aprovada.

A ponte e o Estado que gasta muito, mas investe pouco

Folha de S. Paulo

Desabamento ilustra escassez de verbas públicas para infraestrutura nacional, que precisa depender mais do setor privado

Ainda está por ser dimensionada a extensão da tragédia provocada pelo desabamento da ponte Juscelino Kubitscheck de Oliveira, na divisa entre Tocantins e Maranhão.

Desde domingo (22), já se contam seis mortos, e há ao menos 11 desaparecidos. Apura-se ainda a gravidade do dano causado às águas do rio Tocantins, dado que caminhões que passavam pela ponte no momento da queda carregavam 76 toneladas de ácido sulfúrico e 22 mil litros de defensivos agrícolas.

O Dnit, departamento encarregado das rodovias federais, abriu sindicância, e a Polícia Federal também vai investigar o caso. É plausível que se descubra negligência ou irregularidade —contudo é certo que não se trata de um problema isolado.

Como reportou a Folha, existem nada menos que 597 pontes geridas pelo Dnit em situação classificada como ruim, a mesma da ponte que caiu. Outras 130 são consideradas em estado crítico, ainda pior. Isso significa que 12,5% (727) do total nacional se encontra nessas duas categorias.

Outros levantamentos do tipo provavelmente indicarão precariedades em setores diversos da infraestrutura, o que é reflexo de uma reconfiguração ainda incompleta do Estado brasileiro.

Desde o nome, a ponte Juscelino Kubitscheck remetia aos anos do desenvolvimentismo, quando se atribuía ao investimento público o papel de motor da economia. A estrutura foi inaugurada em 1961, quando os aportes de União, estados, municípios e estatais somavam perto de 6% do Produto Interno Bruto —a cifra chegaria a 10,6% em 1976, no período do chamado milagre econômico.

Ainda que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) adote o discurso político de que todo gasto público é investimento, este é um tipo de gasto bem definido na contabilidade nacional: são obras e aquisições de equipamentos destinadas a ampliar a capacidade física de produção de bens e serviços.

Com o colapso do desenvolvimentismo e da ditadura militar na década de 1980, o Estado democrático assumiu a prioridade correta de combater a pobreza e a desigualdade social. A grande expansão de benefícios previdenciários, trabalhistas e assistenciais das últimas décadas reduziu o espaço orçamentário para o investimento público, que não passou de 2,6% do PIB em 2023.

Ainda está em curso —e sujeito a retrocessos— o processo de vendas de estatais e concessões para transferir ao setor privado mais responsabilidade na expansão da infraestrutura. Enquanto isso, o Estado mal consegue preservar o que já instalou.

Livre, leve e solto

O Estado de S. Paulo

A reabilitação penal e política de José Dirceu, que agora pode circular como se fosse o mais probo dos homens públicos, escarnece dos cidadãos que acreditaram num Brasil mais decente

Aos brasileiros justos tem sido negado o direito de sonhar com um ano novo mais auspicioso para o País. Uma nesga de esperança por um futuro mais decente é logo abatida por sinais de que aqui, ao que parece, o crime compensa, a depender da resiliência dos malfeitores para amargar um período de dissabores que, mais cedo ou mais tarde, decerto serão atenuados, quando não revertidos, em virtude de suas relações com figuras bem posicionadas na política e no Judiciário. José Dirceu é a personificação desse Brasil que deu certo para os apanhados em malfeitos que sabem esperar.

No dia 17 de dezembro, a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou dois processos contra Dirceu no âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba (PR), nos quais ele havia sido condenado a mais de 20 anos de prisão. Segundo o advogado Roberto Podval, eram as duas últimas ações penais a que seu cliente respondia, de modo que o petista tem o caminho aberto para recuperar seus direitos políticos e se candidatar a um mandato eletivo em 2026. Dirceu já manifestou em público a intenção de voltar à Câmara dos Deputados, de onde saiu cassado em 2005 na esteira de outro escândalo de corrupção, o “mensalão”, do qual, como o País lembra bem, ele foi um personagem de proa.

O consigliere petista tem motivos de sobra para colocar 2024 entre os melhores anos de sua vida. Em março, sua festa de aniversário em Brasília foi, na verdade, o début de sua reabilitação política. Pelo salão transitou a nata do poder político e econômico do País, incluindo autoridades de alto escalão do Executivo e do Legislativo, das mais variadas afiliações partidárias, empresários, advogados e jornalistas. Dirceu circulou livre, leve e solto entre os cerca de 500 convidados como se fosse o mais probo dos homens públicos, como um injustiçado que, enfim, encontrava a redenção.

Durante o rega-bofe, nenhum dos convivas manifestou o menor sinal de constrangimento por estar celebrando um criminoso condenado em múltiplos processos por crimes gravíssimos, como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa – condenações estas corroboradas por todas as instâncias judiciais, ou seja, sem que houvesse dúvidas sobre a autoria e a materialidade dos crimes que foram imputados a ele. Ao contrário, Dirceu foi tratado como um oráculo político, além de uma peça fundamental para o projeto de poder do PT para além do atual mandato do presidente Lula da Silva.

O encerramento das ações contra Dirceu no STJ é decorrência direta de uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que, em outubro, anulou todos os atos processuais tomados ou autorizados pelo então juiz Sérgio Moro contra o petista. O decano do STF estendeu a Dirceu os mesmos benefícios concedidos ao companheiro Lula da Silva, sob a argumentação de que, assim como o presidente da República, Dirceu teria sido vítima de uma “ação coordenada” entre Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato no Paraná. Porém, nem a Mendes nem a Dias Toffoli – outro ministro do STF que resolveu fazer tábula rasa dos fatos e das provas, reescrevendo, na prática, a história da maior operação de combate à corrupção de que o País já teve notícia – ocorreu que as supostas evidências desse “conluio” entre o Judiciário e o parquet foram obtidas por meios manifestamente ilegais, sendo, portanto, inválidas.

Ninguém minimamente bem informado sobre o que aconteceu no Brasil nos últimos anos haverá de negar que os procuradores da Lava Jato decerto cometeram muitos erros processuais, para dizer o mínimo, em nome do que entendiam ser um “bem maior”, qual seja, a purgação da política por meio do enfrentamento à corrupção com todos os instrumentos que tinham à mão, fossem legais ou não. Aí está o resultado desse messianismo. Sem que a culpabilidade de condenados por corrupção, muitos deles réus confessos, fosse posta em xeque do ponto de vista factual, quase todos os criminosos envolvidos no “petrolão” foram exonerados de prestar contas à Justiça e hoje podem posar de inocentes. Dirceu é a face mais conhecida desse tapa na cara do Brasil honesto.

Babás da democracia

O Estado de S. Paulo

Num país onde Judiciário extrapola prerrogativas e autoridades veem a sociedade como hipossuficiente, o TSE não hesita em tutelar a decisão soberana de eleitores – inclusive a de não votar

O ano de 2024 deverá ficar marcado como aquele em que a mais alta cúpula do Judiciário foi ao limite de uma convicção: a de que precisa atuar como uma espécie de bedel da política brasileira. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e, por efeito imediato, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) empolgaram-se como nunca com o autoproclamado exercício de Poder Moderador, promovendo a resolução de conflitos entre os Poderes – por vezes, inflamando querelas entre instituições – e, sobretudo, extrapolando suas prerrogativas constitucionais. Não satisfeitos com o dever de analisar a constitucionalidade ou não das matérias que deliberam, não raro avançaram, por exemplo, sobre a própria execução de políticas públicas, como se fossem legisladores ou tomadores de decisão do Executivo, arvoraram-se em censores ou fixadores de tese de repercussão geral sobre práticas jornalísticas ou atuaram como câmara de conciliação entre partes.

Com tal condição, seria de estranhar se não avançassem também sobre direitos de eleitores e cidadãos. Nesta seara, a presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, recentemente se incluiu na galeria de bedéis na qual já estavam muitos dos seus pares no STF. A ministra anunciou que pode ser revista a possibilidade de usar o aplicativo e-Título para justificar, no mesmo dia da eleição, o não comparecimento à seção eleitoral. Segundo ela, seria uma forma de evitar o incentivo à abstenção. “Pode ser que no dia a gente diga: a justificativa no dia não será feita, será feita depois. Até para dar um tempo para a pessoa pensar”, afirmou a ministra, ao apresentar um balanço das eleições municipais. O relatório das eleições deste ano foi ainda mais direto, ao informar que o uso do aplicativo “haverá de ser revisitado”, sob o argumento de que seria contrário à obrigatoriedade do voto.

Eis a lógica de sentido duvidoso e eficácia questionável: contra a vontade do eleitor de eventualmente se ausentar das urnas, quando o faz sabendo que precisará justificar o voto ou pagar uma multa pela ausência não justificada, o Tribunal pretende não só inibir o ganho trazido pela tecnologia, como também tutelar a escolha de cidadãos. “Dar um tempo para a pessoa pensar” – como disse a ministra – equivale ao menosprezo da capacidade política e cívica dos eleitores. Para o TSE, o alto patamar de abstenções nas últimas eleições não se explica pela decisão racional do eleitor, mas em grande medida pela facilidade de um aplicativo à mão; não resulta do desconforto dos eleitores com o estado de coisas da política ou com eventual descompasso entre suas preferências e os candidatos em disputa, mas com a falta de tempo “para pensar”. É a lógica da democracia sob tutela, status preferencial de ministros das mais altas Cortes do País.

Convém lembrar-lhes que nossa abstenção eleitoral não é maior do que a de muitas democracias consolidadas, e os porcentuais de eleitores que deixam de exercer seu direito ao voto nos EUA ou em países europeus costumam ser até maiores, já que são nações onde o voto não é obrigatório como aqui. Em democracias liberais, é natural que eleitores, de livre vontade, decidam abster-se de votar. E o fazem pelas razões que julgam convenientes, isto é, por convicção política (ou falta de) ou mesmo por desejo de estarem à margem das urnas. A esse propósito, é preciso esclarecer que a saúde de uma democracia não se define pela afluência dos eleitores às urnas, e sim pela aceitação pacífica do resultado das eleições, inclusive por parte daqueles que não quiseram votar.

Este jornal não se cansará de defender que o fim do voto obrigatório faria bem à democracia. A obrigatoriedade pressupõe a presunção de que a maioria, se pudesse, não sairia de casa para votar. No Brasil, autoridades costumam ver a sociedade como incapaz de tomar decisões racionais – razão pela qual a Justiça Eleitoral não só a obriga ao voto, como frequentemente decide o que o eleitor pode ler, ver e ouvir numa campanha eleitoral. A imposição de regras é, no fundo, um atalho para o que deveria ser uma ação de convencimento e um esforço de melhoria das práticas políticas por parte dos representantes. Mas, na democracia sob tutela, o convencimento se dá à base de coação.

O lobby dos barulhentos venceu

O Estado de S. Paulo

Revisão do PSIU aprovada pela Câmara é um revés para a qualidade de vida em São Paulo

Está liberada a poluição sonora na capital paulista. Por 38 votos a 16, a Câmara Municipal aprovou, no dia 20 de dezembro, um projeto de lei que amplia o rol de exceções ao limite de barulho determinado pelo Programa Silêncio Urbano (PSIU).

A partir de agora, responsáveis por eventos e shows de grande porte, como os realizados em estádios, além das instituições de ensino, não podem mais ser responsabilizados pelo excesso de ruído que causam, infernizando a vizinhança. O projeto foi à sanção do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Segundo ele, a revisão do PSIU “segue na direção de consolidar o papel de São Paulo como capital de eventos e fomento à geração de emprego e renda”. Em relação aos estabelecimentos de ensino, o prefeito argumentou que a permissão para que façam mais barulho “amplia as garantias de pleno funcionamento das atividades educacionais”.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a falta de coragem política dos vereadores de São Paulo para tratar abertamente de uma matéria muitíssimo impopular, por razões óbvias. A alteração das regras do PSIU foi aprovada por meio de um “jabuti” inserido em um projeto de lei que, originalmente, tratava da expansão de um aterro sanitário em São Mateus, na zona leste da capital paulista. Sabe-se que o “jabuti”, ou seja, a inclusão de um dispositivo legal em uma proposta legislativa que versa sobre matéria não afeita, é o ardil a que recorrem os parlamentares quando querem aprovar uma norma polêmica sem ter de arcar com os ônus políticos da decisão.

Ademais, as justificativas tanto do prefeito como dos vereadores que aprovaram o projeto de lei não param de pé. São Paulo já é – e não de hoje – um dos maiores centros de eventos da América Latina, se não o maior. Aqui acontecem fóruns, feiras, congressos, shows e exposições de toda sorte, atraindo milhões de turistas a cada ano. Basta dizer que, em 2023, São Paulo, pela primeira vez, desbancou outras cidades da Região Nordeste como o destino turístico mais procurado do País, de acordo com a Associação Brasileira das Operadoras de Turismo.

A capital paulista alcançou esse patamar invejável com todas as limitações impostas pelo PSIU. Até agora, não se tem notícia de show ou evento de grande porte que tenha deixado de acontecer na cidade porque seus organizadores não concordaram com as regras para a emissão de ruídos em São Paulo – que, vale dizer, nem são tão draconianas assim.

É evidente que é legítimo o empenho da Prefeitura e da Câmara Municipal para tornar São Paulo uma cidade cada vez mais desenvolvida. Mas o progresso não pode vir à custa da paz e da saúde física e mental dos munícipes. Todos os que moram nesta megalópole estão cientes de que terão de lidar com ruídos inexistentes em cidades menores e menos populosas. Mas há limites. E esses limites sempre foram bem balanceados no PSIU, em que pese a tibieza da Prefeitura para fiscalizar seu cumprimento.

Mas agora, ao que parece, o lobby dos barulhentos calou mais fundo na alma dos vereadores paulistanos do que o sossego dos munícipes que eles, em tese, deveriam representar.

Cadastro nacional de pets é política acertada

Correio Braziliense

Ainda que o texto sinalize que não se trata de um projeto que sairá do papel na velocidade merecida, o governo acerta ao adotar política que dialoga com a realidade dos lares brasileiros

Entre as leis sancionadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste fim de ano, uma afeta cerca de 70% dos brasileiros. Aqueles que têm um pet entre os integrantes da família. O chefe do Executivo deu o aval para a criação do Cadastro Nacional de Animais Domésticos, que tem, entre os objetivos, o combate aos maus-tratos, o controle de zoonoses e um melhor manejo com as situações de abandono de animais. Ainda que o texto sinalize que não se trata de um projeto que sairá do papel na velocidade merecida, o governo acerta ao adotar política que dialoga com a realidade dos lares brasileiros.

Estimativa do Instituto Pet Brasil revela que há no país mais pets do que crianças menores de 14 anos. São 160 milhões de animais — principalmente cachorros (62 milhões) e gatos (30 milhões) — e 40 milhões de meninos e meninas. O levantamento indica que abrigamos a terceira maior população de animais domésticos do mundo — atrás apenas da China e dos Estados Unidos —, que poderá ser melhor conhecida com a adoção de um cadastro nacional.

Para isso, os tutores terão que informar dados próprios, como o endereço e o CPF (CPF); se o animal foi comprado ou adotado; o nome popular da espécie, raça, sexo,  idade real ou presumida; as vacinas aplicadas e as doenças contraídas ou em tratamento; e o uso de chip pelo animal que o identifique como cadastrado. Além de apostar na boa vontade dos humanos — o preenchimento e a criação do cadastro não são obrigatórios —, a iniciativa, para ser completa, dependerá da disponibilidade financeira: chips não são implantados gratuitamente.

Um outro possível dificultador é de ordem administrativa. A lei prevê que a União será responsável pela criação, manutenção e fiscalização do cadastro, que será adotado por todos os entes federados. Por sua vez, a atualização da plataforma para garantir eficiência ao processo poderá ser descentralizada. Isso  pressupõe, no mínimo, o treinamento de um número considerável de agentes nos estados e municípios para manter a uniformidade dos dados. 

Conta a favor de tamanho investimento a possibilidade de ter em mãos uma ferramenta que ajude no enfrentamento a um crime cada vez mais comum nas cidades: o abandono de animais. Segundo levantamento global conduzido pela Mars Petcare, há no Brasil mais de 30 milhões de gatos e cachorros nessa condição. No DF, são 1,5 milhão, conforme cálculo da Confederação Brasileira de Proteção Animal. A aposta é de que, com o chip e o cadastro, os tutores desses animais sejam mais facilmente identificados e punidos.

A lei 15.046 também prevê punições, penais e administrativas, quando o tutor fornecer dados falsos sobre o pet ou omitir informações. Tal medida deve lançar luz sobre outra prática desafiante no país: a venda e a doação de animais domésticos, situações em que não são incomuns as denúncias de maus-tratos. Nesse sentido, faltou prever na nova legislação atividades educativas que estimulem a convivência harmônica e ética entre as espécies, inclusive nos ambientes escolares, além da ampliação de serviços veterinários públicos. Complementos legais serão bem-vindos para que a acertada iniciativa seja bem implementada.

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