Infiltração do crime na polícia impõe reação coordenada
O Globo
Prisão de policiais em São
Paulo demonstra que governos precisam agir unidos contra facções criminosas
O assassinato do corretor de
imóveis Antônio Vinícius Gritzbach em novembro, quando desembarcava no
Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo,
foi um aviso. Na última semana, uma operação da Polícia Federal (PF) e do
Ministério Público (MP) prendeu quatro policiais civis (entre eles um delegado)
que Gritzbach mencionara em delação premiada, por suspeitas de extorsão e
envolvimento com o crime organizado. “Caso os elementos colhidos até o momento
sejam confirmados na investigação em curso, pode-se afirmar que o Brasil
tornou-se um narcoestado”, afirmou o juiz Paulo Fernando Deroma de Mello ao
determinar as prisões.
As suspeitas justificam a preocupação. Gritzbach se especializara em lavar dinheiro para a organização criminosa PCC por meio de negócios imobiliários. No acordo de delação premiada assinado em março com os promotores do Grupo de Atuação Especial do Combate ao Crime Organizado (Gaeco), ele se comprometeu, em troca de redução nas penas, a contar o que sabia sobre o PCC e a conivência de autoridades com o crime. Acusou os quatro policiais presos na última semana de envolvimento num esquema para cobrar propina para não prender integrantes do PCC. Mostrou documentos comprovando a apropriação de um sítio de origem criminosa por dois deles. Gritzbach também acusou um quinto policial — ainda foragido — de se apropriar de bens de luxo. Os suspeitos negam as acusações.
O assassinato de Gritzbach
foi aparentemente uma operação de queima de arquivo. Na ocasião, um fato já
chamara a atenção: a escolta de Gritzbach, feita por policiais militares,
chegou atrasada ao aeroporto para protegê-lo, alegando falha mecânica no carro
que os transportava. Depois disso, as suspeitas de infiltração do PCC na
polícia têm se confirmado a cada nova investigação.
Além da operação que
resultou na prisão dos policiais na semana passada, o Ministério Público (MP)
de São Paulo e a PM haviam deflagrado uma operação em novembro para investigar
o vazamento de senhas, usadas por integrantes do PCC para invadir computadores
do Tribunal de Justiça e consultar processos sob sigilo. Um dos objetivos dos
criminosos era obter informações para se antecipar à polícia. Promotores
desconfiaram que os investigados haviam sido avisados de mandados judiciais
noutra operação realizada em fevereiro. Descobriram que a senha de um
funcionário do MP fora acionada mais de cem vezes.
Para preservar o trabalho
das autoridades e dos policiais, as delações são um mecanismo fundamental. A de
Gritzbach tem produzido resultados. Contando os quatro detidos na semana
passada, ela já resultou em seis prisões de policiais. A infiltração nas instituições
é mais um desafio trazido pelo combate ao crime organizado. MP e PF têm feito
um trabalho exemplar. Mas, como demonstra o episódio das senhas, os criminosos
têm se esmerado para driblar as autoridades. Sem coordenação entre os governos
federal e estaduais, com colaboração do Judiciário, a situação tende a se
agravar.
Juros mais altos nos Estados
Unidos criam nova pressão para BC brasileiro
O Globo
Cenário externo mais
desafiador impõe maior rigor no ajuste fiscal e maior carga à autoridade
monetária
O cenário para a economia
mundial já era amplamente desfavorável ao Brasil. Na quarta-feira, o Federal
Reserve (Fed), o banco
central americano, deu mais um motivo para o governo e o Congresso
promoverem um ajuste fiscal mais rigoroso. O Fed reduziu a taxa de juro em 0,25
ponto percentual, para 4,5% ao ano. A medida era esperada. A surpresa foi a
nova política vislumbrada para o ano que vem. Em setembro, o Fed previa quatro
novas quedas de juros em 2025. Agora, informou que não devem passar de duas. A
perspectiva de uma taxa de juros americana acima do previsto se fez sentir
imediatamente nos mercados de câmbio e de ações no mundo todo.
O real bateu novo recorde e,
na própria quarta-feira, registrou a maior desvalorização diária desde novembro
de 2022. Com juros mais altos nos Estados
Unidos, o Banco Central (BC) brasileiro precisará ser ainda mais
rigoroso na alta dos juros para manter capitais por aqui, já que investir em
papéis do Tesouro americano será mais atraente. O mesmo movimento se faz sentir
mundo afora. Logo depois do anúncio, despencaram as bolsas de valores nos
Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, Índia, Hong Kong, Reino Unido, Europa e
Brasil. Também desabaram as cotações do euro, da rúpia indiana, do iuane
chinês, do won sul-coreano e de moedas em mercados emergentes. Todos sofrem,
mas o Brasil é destaque negativo.
Em sua justificativa, o
presidente do Fed, Jay Powell, constatou o ritmo mais lento da queda da
inflação para a meta de 2%. Está na conta também a volta de Donald Trump à Casa
Branca no mês que vem. Pelo que foi dito durante a última campanha eleitoral, o
segundo mandato de Trump promete ser ainda mais turbulento que o primeiro.
Tarifas comerciais, deportações em massa, cortes de impostos e afrouxamento de
regulações deverão ter grande impacto na economia. Como se trata de Trump,
todos os cenários são possíveis.
Mesmo que a realidade se
prove menos drástica, a pressão sobre mercados emergentes se manterá alta. Com
o controle republicano da Câmara e do Senado, Trump governará aparentemente sem
amarras. É uma incógnita como isso impactará as economias americana e global.
Diante da incerteza, causa estranheza a falta de ação do governo brasileiro e
também do Congresso para debelar a crise de confiança que se abateu sobre a
economia. O contexto internacional impõe um ajuste mais drástico nas contas
públicas, para os gastos não ultrapassarem as receitas, a trajetória
ascendente da dívida pública ser revertida no curto prazo e os riscos
diminuírem. A incapacidade de agir agora na medida adequada cobrará um preço
muitas vezes maior se o pior cenário se concretizar.
Governo precisa sancionar logo texto de uma
reforma histórica
Valor Econômico
Com todas as suas falhas, que podem ser eliminadas ao longo do caminho, texto consagra uma reforma que poderá aumentar a produtividade da economia e reduzir o absurdo custo de conformidade a que o velho regime obrigava
Após décadas de discussão, o Brasil terá um
sistema tributário mais racional, simples e equitativo que o complexo e
desigual que prevaleceu do regime militar até hoje. O Congresso aprovou
finalmente o primeiro capítulo da reforma tributária, o mais importante, que
será seguido pelo da reforma dos impostos sobre a renda e patrimônio e a
constituição do órgão gestor do regime dual de impostos - IBS, que substitui
ICMS e ISS, e CBS, no lugar de PIS, Cofins e IPI. Entre a ambição inicial e o
resultado final houve uma profusão de regimes específicos (11) e alguns lobbies
de setores em busca da menor alíquota, movimento que elevou a alíquota de
referência do sistema. Com os acréscimos do Senado, e o pente fino feito na
Câmara, a alíquota de referência atingiu 28%. O governo fez um projeto para
obter de 23% a 26,5%, a Câmara elevou-o a 27,79% e o Senado a 28,7% - no fim
chegou-se ao maior IVA do mundo. Com dois atenuantes: os consumidores já
pagavam isso, mas não sabiam, e há mecanismos para fazer com que a alíquota
volte aos 26,5%, a trava colocada pela reforma para que não houvesse aumento da
carga tributária em relação ao regime anterior.
O aumento da alíquota de referência planejada
foi provocado pelo Congresso, que incluiu as carnes em uma cesta básica isenta,
o que, por si só, elevou em 1,45 ponto percentual a taxa geral. O Senado
incluiu o saneamento básico no grupo de produtos com isenção de 60%, além de
bolachas e água mineral (isso tudo a Câmara modificou), e retirou bebidas
açucaradas do Imposto Seletivo (IS), cujas alíquotas serão maiores que a de
referência. A grande falha da reforma foi não incluir armas e munições no IS,
que agrupa produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Com a nova tributação,
os dois itens pagarão menos impostos do que pagam hoje.
Da mesma forma, optou-se no Senado por
isenção das carnes e outros itens da cesta básica quando o cashback para
famílias inscritas no Cadastro Único, as mais pobres, permitiria um benefício
focalizado e não um amplo, que também favorece as camadas de renda média e
alta. Para os serviços, valerá o cashback para água, energia elétrica e esgoto.
O Senado incluiu depois contas de telefone e internet.
Na etapa final, o Senado reclassificou para
pagamento de menos impostos mais de 20 bens e serviços. Os deputados, no
entanto, derrubaram a maioria delas, mas ampliaram benefícios para a Zona
Franca de Manaus, entre eles a inexplicável isenção para a única refinaria de
petróleo da região, pertencente à Atem, que não produz desde junho e importa
quantidades acima das que fornece a capital amazonense.
A reforma ideal deveria respeitar o limite de
26,5% de alíquota de referência já desde sua aprovação. O Congresso, no
entanto, entendeu diferente e deixou ao Executivo a iniciativa de recalibrar ao
longo do caminho bens e serviços nos diferentes regimes específicos com
alíquotas diferenciadas. Isso não será um obstáculo enorme porque o texto
aprovado preservou as características básicas da reforma, o que a equipara aos
regimes internacionais semelhantes: cobrança no destino e unificada, não
cumulatividade plena.
O governo terá de enviar ao Congresso projeto
de lei complementar em 2033, quando o regime entra em operação integral, para
recalibrar as isenções e abatimentos, se for o caso, e manter a alíquota de
26,5%. A universalização da cobrança que o IBS e CBS permitem dificultarão
muito a sonegação, a emissão de notas frias e sua falsificação, ampliando a
arrecadação. Por outro lado, a não cumulatividade será poderoso incentivo para
que setores que se beneficiam de tributação, como o Simples e empresas que se utilizam
do crédito presumido, recolham o imposto para se creditar da aquisição de bens,
serviços e insumos para sua operação.
“O melhor passou”, afirmou Bernard Appy,
secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda. Ele
acredita que a arrecadação crescerá sensivelmente e que será viável a
manutenção da trava de 26,5% - ou até mesmo, com o tempo, a redução gradual da
alíquota geral. Além da obrigação de projeto de lei do Executivo para rever e
recalibrar bens e serviços, haverá avaliação geral obrigatória a cada cinco
anos para averiguar a adequação dos grupos tarifários aos resultados que deles
se esperam, inclusive os classificados no IS, que inclui veículos, bebidas
açucaradas, embarcações e aeronaves, cigarros, bebidas etc. Na fase final, o
Congresso fez correção necessária na taxação da mineração, isentando de
impostos a exportação de minérios.
Haverá um bom período de transição. Em 2026,
o regime começa a ser testado, com cobrança de 0,1% do IBS e 0,9% da CBS. Em
2027 acabarão PIS-Cofins e IPI e começará a cobrança do IS. Com os mecanismos
de avaliação e correção assegurados na reforma, é importante que o presidente
Lula sancione logo e sem vetos o texto aprovado pelo Congresso. Com todas as
suas falhas, que podem ser eliminadas ao longo do caminho, ele consagra uma
reforma histórica, que poderá aumentar a produtividade da economia e reduzir o
absurdo custo de conformidade a que o velho regime obrigava. É um enorme
avanço.
Congresso torna ainda mais frágil o pacote
fiscal
Folha de S. Paulo
Com país sob risco de crise econômica,
Legislativo protege suas emendas ao Orçamento e supersalários da elite do
Estado
O Congresso vive aquele momento que a crônica
política costuma chamar de "esforço concentrado". Dedica-se a votar,
em poucos dias, projetos atrasados por negligência ou por procrastinações em
geral, inclusive por parte do Executivo. E, em meio a uma ameaça de crise
econômica, não se constrange em defender interesses de setores poderosos,
incluindo os seus.
Um resultado ruim dessa correria é apreciação
e redação precária de leis, além da falta de conhecimento e debate público
sobre o que está sendo votado. Assim, facilita-se o estrago do já limitadíssimo
pacote de contenção de gastos proposto pelo governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
A Câmara dos
Deputados conseguiu derrubar outra tentativa de sujeitar o
pagamento de emendas parlamentares aos limites válidos para outras despesas
federais. A maior fatia das emendas, de pagamento obrigatório, não poderá ser
bloqueada para evitar o estouro da meta de crescimento do dispêndio público.
A ofensiva dos congressistas para manter seu
feudo teve sucesso tanto na votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias como na
do pacote fiscal.
A reserva de dinheiro do
contribuinte para interesses paroquiais de deputados e senadores é
aberrante em tamanho (cerca de um terço do gasto federal não obrigatório), em
comparações internacionais e em falta de transparência, projetos e
fiscalização.
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal
tentou limitar o abuso e a correção anual do valor total das emendas, mas o
desespero do governo —que precisa de votos para aprovar seu tímido pacote—
gerou um drible legal, na forma de uma portaria, para burlar a determinação da
corte.
Como se não bastasse, o Parlamento colabora
para a manutenção de
prebendas e favores para seus pares da elite do Estado brasileiro.
Ao modificar parte de uma emenda constitucional proposta pelo Planalto, a
Câmara esvaziou o dispositivo que pretendia disciplinar os pagamentos de
auxílios, abonos e outros penduricalhos que permitem supersalários,
especialmente no Judiciário e no Ministério
Público.
Medidas espinhosas, mas de maior alcance, do
plano de ajuste também passaram por enfraquecimento temerário.
São os casos das tentativas de limitar o
gasto obrigatório com educação por
meio do Fundeb (o fundo destinado ao ensino básico), de dar correção menor às
transferências obrigatórias para o governo do Distrito
Federal, da nova regulamentação do Benefício de Prestação Continuada
(BPC) e da limitação do uso de créditos tributários.
Verdade que o governo Lula não ajuda, ao não
sinalizar senso maior de emergência —vide o pacote
fiscal tardio e mirrado. Entretanto os parlamentares, que tanto
poder ganharam sobre o Orçamento nos últimos anos, deveriam assumir também
responsabilidades, em vez de apenas aproveitar o momento para arrancar
vantagens do Executivo.
O interminável e heterodoxo inquérito das
fake News
Folha de S. Paulo
Apuração de 2019 é prorrogada por 180 dias,
mas crise sob Bolsonaro não existe mais; STF precisa atuar com autocontenção
O ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal, prorrogou
por mais 180 dias o famigerado inquérito das fake news,
aberto para apurar ofensas, calúnias, difamações e ameaças contra os
magistrados do tribunal. Em março de 2025, ele completará seis anos. Mas sua
longa duração não é a única heterodoxia temerária.
A investigação é incomumente vaga, o que dá
margem a decisões tão variadas como ordem de busca e apreensão contra o
ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot,
bloqueio das redes sociais do partido de esquerda PCO e a prisão do então
deputado bolsonarista Daniel
Silveira.
Houve também censura à imprensa, com a ordem
de retirada de uma reportagem sobre o ministro Dias Toffoli,
à época presidente do Supremo, do site da revista eletrônica Crusoé.
Os problemas do inquérito vêm desde o
nascedouro, já que ele não foi
instaurado por solicitação do Ministério Público, mas a partir da
interpretação elástica e controversa de um dispositivo do regimento interno que
permite ao STF investigar
ilícitos que ocorrem dentro de suas dependências —ademais, o relator não foi
sorteado, e sim escolhido a dedo por Toffoli.
Isso criou uma anomalia na qual a corte é
vítima e, ao mesmo tempo, pode investigar, julgar e condenar, afetando a
imparcialidade exigida na magistratura.
Numa análise mais política do que jurídica,
pode-se considerar que tais heterodoxias foram importantes para preservar a
democracia brasileira, dada a turbulência institucional gerada pelos notórios
ímpetos golpistas de Jair
Bolsonaro (PL), seus seguidores e sua
camarilha militar.
Ressalte-se que o movimento do STF ganhou
ímpeto porque o procurador-geral da República escolhido por Bolsonaro, Augusto Aras,
bloqueou sistematicamente investigações que incomodassem o governante de turno.
O fato inescapável, contudo, é que as razões
que justificaram atipicidades no inquérito das fake news não estão mais
presentes. Já passa da hora de o Supremo voltar a atuar com ortodoxia e,
principalmente, autocontenção.
A imagem do STF vem apresentando desgaste.
Parcela não desprezível de brasileiros vê com desconfiança suas decisões, e,
para o bom funcionamento da democracia, as medidas do Judiciário precisam ser
percebidas pela sociedade como justas ou ao menos sem viés político explícito.
O prejuízo já está dado, e repará-lo é tarefa de médio e longo prazo. Mas isso só acontecerá se o STF abandonar heterodoxias que não têm mais razão de ser.
O Congresso afronta o Brasil
O Estado de S. Paulo
Diante de um presidente incapaz de sinalizar
preocupação com o equilíbrio das contas, deputados e senadores desidratam
ajuste fiscal e fazem a farra com emendas e verbas partidárias
A esta altura, é ocioso afirmar que o
Congresso não dá a mínima para o Brasil e para os contribuintes. No entanto,
não deixa de espantar a sem-cerimônia com que os senhores deputados e senadores
ignoraram olimpicamente as agruras fiscais do País e enfraqueceram o já
esquálido pacote de ajuste fiscal apresentado pelo governo. Além disso,
aproveitaram o ensejo e, na votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025,
deixaram em aberto a possibilidade de aumentar a verba do Fundo Partidário de
R$ 1,3 bilhão para R$ 1,7 bilhão e proibiram o corte de emendas impositivas ao
Orçamento caso haja aumento de despesas obrigatórias. A tesourada só poderá
ocorrer na improvável hipótese de haver queda na arrecadação federal.
Tudo isso sob o olhar complacente de um
governo que parece ter perdido completamente a iniciativa política. Que a base
do presidente Lula da Silva é volátil, para dizer o mínimo, todos sabem, mas,
num regime presidencialista, é do Executivo que deve partir a sinalização dos
rumos do País. E a sinalização dada por Lula, com clareza cada vez maior, é que
os limites fiscais já não existem mais, se é que um dia existiram.
Se Lula quisesse, ou tivesse vocação para
isso, poderia articular melhor a base para aprovar medidas de contenção de
gastos mais duras. Recorde-se que os governos de Michel Temer e de Fernando
Henrique Cardoso conseguiram aprovar reformas destinadas a conter o
endividamento com um Congresso não muito diferente do atual. A diferença de
Temer e FHC para Lula é que os primeiros tinham genuíno interesse em equilibrar
as contas públicas, pois sabiam que disso dependia a prosperidade do País, ao
passo que o petista sempre foi adepto da tese de que é o Estado quem deve
promover o crescimento, por meio de gastos públicos – chamados eufemisticamente
por Lula de “investimentos”.
Na ausência de convicção do governo, os
parlamentares foram cirúrgicos ao analisar as propostas de ajuste fiscal e,
diante de um plano de revisão de despesas que já chegara esvaziado, atuaram
para enfraquecê-lo ainda mais. Assim, os deputados rejeitaram as alterações no
Benefício de Prestação Continuada (BPC), mantendo apenas o pente-fino para
reduzir fraudes. Além disso, abriram brechas para que os penduricalhos que
permitem que o teto remuneratório seja ignorado possam ser mantidos. Os
privilegiados do Judiciário e do Ministério Público certamente agradecem.
As emendas de comissão, herdeiras das antigas
emendas de relator, base do chamado orçamento secreto, até poderão ser
bloqueadas, segundo o projeto de lei do pacote fiscal, mas somente se os gastos
obrigatórios superarem o teto definido pelo arcabouço fiscal, e no limite de
15% do valor total. Para garantir que tudo isso ocorra sem intercorrências,
deputados e senadores autorizaram o Executivo, na LDO, a perseguir o limite
inferior da meta fiscal do ano que vem, como fez neste ano.
Seria fácil, mas injusto, culpar apenas o
Congresso por toda essa farra. Se é verdade que os presidentes da Câmara e do
Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), têm sido fundamentais
para garantir a aprovação dessas medidas, também é verdade que ninguém menos
que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, afirmou
recentemente que o Judiciário “não tem nenhuma participação nem
responsabilidade sobre a crise fiscal brasileira”.
Os parlamentares são fisiológicos, mas dançam
conforme a música. A maioria não quer comprar brigas com o Executivo. Se o
governo atua em favor das reformas, o Congresso tende a aprová-las. Se o
governo atua contra essas propostas, não há por que se desgastar com elas.
Tudo isso é reflexo da atitude de Lula da
Silva. O presidente deveria dar o exemplo e defender seu pacote fiscal, mas vê
no dólar a R$ 6,00 e nos juros futuros a 15% apenas um “ataque especulativo” do
mercado financeiro contra seu governo.
Se há cegueira ou convicção na avaliação de
Lula da Silva, pouco importa. Se o presidente da República, que em tese é o
maior interessado, não acha que há um problema fiscal, não há razão para o
Congresso se preocupar com o tema.
A semente da próxima crise dos Estados
O Estado de S. Paulo
Com aval da União, e por unanimidade, Senado
aprova PL que permite a enésima renegociação da dívida dos Estados sem nem
sequer exigir corte de gastos dos caloteiros contumazes
A unanimidade que o Senado deu ao projeto de
lei de renegociação da dívida dos Estados expressa a irresponsabilidade com que
assuntos de importância fundamental para as contas públicas são tratados pelo
Legislativo.
Fruto do lobby dos Estados mais encalacrados
do País, a proposta foi apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), e relatada pelo ex e futuro presidente do Senado, Davi Alcolumbre
(União-AP). Com padrinhos desse calibre, o texto teve caminho fácil no
Congresso, embora fosse um exemplo cristalino do que não deve ser feito em
políticas públicas.
Ao contrário do que o Congresso faz parecer,
os Estados – ao menos a maioria deles – não estão em dificuldades financeiras.
Fosse um problema generalizado, teria havido uma verdadeira romaria de
governadores para Brasília nesta semana em que o Senado aprovou o projeto de
lei que segue agora para sanção presidencial.
O que há – e sempre houve – são os Estados
perdulários de sempre reclamando do peso de suas dívidas em seus respectivos
orçamentos. Quem estava no plenário do Senado na última terça-feira, dia em que
o projeto foi aprovado, eram somente os governadores do Rio de Janeiro, Cláudio
Castro, e de Minas Gerais, Romeu Zema.
São esses os grandes beneficiários de uma
proposta que só uma mãe faria por seus dois filhos pródigos. Embora tenham
descumprido todas as condicionantes de acordos anteriores, recorrendo inclusive
ao Supremo Tribunal Federal (STF) para não ter de pagar suas contas, Rio de
Janeiro e Minas Gerais serão premiados com a redução dos juros e do estoque de
suas dívidas.
Para isso, não precisarão sequer cortar
despesas. É isso mesmo. Bastará que gastem recursos em áreas avaliadas como
prioritárias, como o Ensino Médio Técnico. Também poderão repassar ativos à
União, tais como ações de estatais estaduais, imóveis ou créditos da dívida
ativa e até o fluxo de recursos futuros que receberão por meio do Fundo
Nacional de Desenvolvimento Regional, criado na reforma tributária.
Os Estados poderão, ainda, depositar parte do
que devem à União – e, diga-se de passagem, não pagam – a um fundo de
equalização a ser dividido entre todos os outros Estados, sobretudo os menos
endividados. Por que pagariam agora é uma pergunta que os Estados menos
endividados deveriam ter feito antes de orientarem seus senadores e votarem a
favor da proposta.
A depender do “sacrifício” que fizerem, os
Estados conseguirão substituir o indexador de suas dívidas, hoje corrigidas
pelo IPCA mais uma taxa de juros 4% ao ano, pela variação da inflação. Para ter
uma ideia, na segunda-feira, um dia antes da votação da proposta no Senado, o
Tesouro emitiu títulos com vencimento em 2029 que devolvem a variação do IPCA
mais 7,73% ao ano.
Essa diferença não vai aparecer na dívida
líquida nem no cálculo do déficit primário, mas aumentará a dívida bruta,
indicador que os investidores passaram a acompanhar com lupa desde que o
arcabouço fiscal começou a ser esvaziado.
Segundo o coordenador do Observatório de
Política Fiscal e Orçamento Público do FGV Ibre, Manoel Pires, o impacto dessa
proposta nas contas da União será de R$ 48 bilhões anuais, e de ao menos R$ 62
bilhões no primeiro ano em que ela vigorar. Para o economista-chefe da Warren
Investimentos, Felipe Salto, o projeto fará a dívida bruta subir até 2,4 pontos
porcentuais entre 2025 e 2033.
Por 72 votos a zero, os senadores plantaram a
semente da próxima crise federativa. Incautos poderiam imaginar que o Executivo
fez de tudo para impedir que uma proposta que privilegia caloteiros contumazes
fosse aprovada pelo Legislativo, ainda mais neste momento em que há
desconfiança generalizada no mercado financeiro sobre seu compromisso fiscal.
Mas não foi isso que aconteceu. Tanto que
Alcolumbre, inclusive, agradeceu o apoio “pessoal e incondicional” do ministro
Fernando Haddad e do presidente Lula da Silva ao projeto durante a leitura de
seu parecer.
A sanção dessa proposta indecente
provavelmente será ocasião de cerimônia comemorativa no Palácio do Planalto.
Ausentes estarão os contribuintes, que muito em breve terão de pagar a conta
dessa farra.
Sem metas para a dengue
O Estado de S. Paulo
Chegada do verão exige do governo menos
torcida e mais mobilização contra a doença
A iminente chegada do verão exige que os
governos federal, estaduais e municipais, e também a sociedade, adotem atitude
firme no combate à proliferação da dengue, especialmente após o número de
mortes causado pela doença ter mais que quintuplicado, saindo de 1.179 no ano
anterior para 5.950 até dezembro deste ano – um recorde histórico. Apesar
disso, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, tem evitado traçar uma meta para a
redução no número de ocorrências. “Nós queremos neste momento reduzir ao máximo
o número de casos”, afirmou, em entrevista à CBN, por ocasião do Dia D de
Mobilização Nacional Contra a Dengue, em 14 de dezembro.
Segundo ela, a prioridade do Ministério da
Saúde serão as campanhas de combate à proliferação do mosquito Aedes
aegypti, principal transmissor da dengue, zika e chikungunya. Entende-se o
receio da ministra. Ao estabelecer uma meta, corre-se sempre o risco de não
atingi-la, o que tende a chamar mais a atenção do que o trabalho efetivamente
realizado pelo ministério.
É inegável que campanhas são importantes, mas
elas devem ser uma constante num país como o Brasil, onde a dengue é endêmica.
Nesse sentido, o estabelecimento de uma meta de redução de casos seria uma
bússola muito benéfica a guiar as ações do governo e do País.
Toda a sociedade certamente torce pela
redução do número de casos. Mas quando é a ministra da Saúde quem torce, tudo
se parece mais com um desejo do que com uma política pública. Note-se ainda
que, no Brasil, mesmo quando há metas, elas dificilmente são cumpridas. Sua
existência, no entanto, permite que se saiba o tamanho do esforço que precisa
ser feito para se atingir um objetivo concreto.
Não se ignora que o combate à dengue não seja
tarefa trivial num país da extensão do nosso. O desafio, ademais, se torna cada
vez mais complexo em razão do aquecimento global, que amplia as condições
propícias para a reprodução do mosquito mesmo em regiões secas.
Em setembro, no lançamento do Plano de Ação
2024/2025 para combate a arboviroses como a dengue, o presidente Lula da Silva
afirmou que, “se Deus ajudar, a gente quer ter o verão com menos dengue da
história desse país”. É outro desejo que não parece nada factível. O máximo que
se pode esperar é que, após a explosão de números de casos neste ano, haja um
declínio subsequente no ano seguinte. As condições para a proliferação da
dengue, no entanto, permanecem igualmente favoráveis.
Assim, entre o desejo do presidente de que
uma intervenção divina reduza os casos e a opção da ministra por não
estabelecer uma meta para evitar cobranças, resta celebrar o fato de que o
Instituto Butantan acaba de pedir à Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) o registro da primeira vacina em dose única do mundo contra a dengue.
Dados divulgados no New England Journal of Medicine apontam eficácia
de 79,6% na prevenção da dengue sintomática.
Há ainda todo um necessário trâmite para que esta bem-vinda vacina contra a dengue seja finalmente liberada. Até lá, cabe à população combater os pontos de água parada para evitar que mais brasileiros engrossem as tristes estatísticas da dengue.
O Caso Pelicot e o papel das techs
Correio Braziliense
Cabe também o compromisso da sociedade para
cobrar uma discussão mais profunda do poder público sobre a violência contra a
mulher e a responsabilização das empresas de tecnologia
Estarrecedor e, ao mesmo tempo, revelador,
para comprovar que não há limites para a violência sexual. Enquanto a sociedade
francesa refletia sobre a indicação de François Bayrou, como primeiro-ministro,
o terceiro nome indicado pelo presidente Emmanuel Macron para o cargo só neste
ano, o país berço do iluminismo ganhou o noticiário mundial por outro motivo: o
perturbador Caso Pelicot.
O episódio coloca o holofote principal em
Dominique Pelicot, um idoso de 72 anos que drogou a mulher, Gisèle Pelicot, por
uma década, para estuprá-la ao lado de outros homens, recrutados por ele a
partir de um site francês de paqueras.
A Justiça francesa condenou Dominique a 20
anos de prisão — a pena máxima prevista no Código Penal do país para crimes do
tipo. Além dele, outros 50 homens receberam punições que, somadas à do mentor
intelectual dos estupros, chegam a 428 anos de prisão. As outras detenções
variam entre a pena mínima de três a 15 anos.
Dominique dava a Gisèle tranquilizantes
capazes de desacordá-la por horas. Tudo era meticulosamente planejado pelo
estuprador. Após fazer a esposa dormir, dava acesso aos comparsas à casa do
casal, em Mazan, um vilarejo na região administrativa da Provença-Alpes-Costa
Azul, a cerca de 700 quilômetros de Paris, nas proximidades de Avignon. A
partir daí, a cena de horror era traçada com organização para não dar qualquer
pista à vítima e à sua família.
O caso teve uma apuração relativamente
rápida, sem grandes desafios para a investigação, pois Dominique filmava quase
todos os atos. Ele só foi descoberto após importunar três mulheres em um
mercado. A polícia acessou seu computador e encontrou as gravações, que também
eram acompanhadas de fotos da filha do casal e das enteadas, sempre nuas.
Ao se posicionar publicamente sobre a
violência sofrida, Gisèle afirmou querer inverter a lógica do constrangimento.
É comum, em casos de violência sexual, que a vítima se culpe e se coloque em
uma posição de isolamento, em anonimato. A mulher, no entanto, se posicionou
com coragem. "Que a vergonha mude de lado", declarou, em meio ao
julgamento.
Ao sentenciar os acusados, a Justiça
parisiense ouviu críticas de entidades feministas, sobretudo diante do fato de
alguns suspeitos responderem ao processo em liberdade. Os filhos de Gisèle,
inclusive, admitiram a possibilidade de tentarem um recurso para aumentar o
tempo de condenação, apesar de a mãe afirmar que respeita a decisão
judicial.
Para além da pena, um ator central da
violência contra Gisèle passa despercebido: a responsabilidade do site de
encontros no modus operandi de Dominique Pelicot. Como é comum em casos como
esses, as empresas de tecnologia tentam se eximir de responsabilidade, mesmo
quando suas plataformas são usadas para cometimento de crimes tão graves. A
Justiça precisa analisar o papel dessas companhias, que facilitam o trabalho
para predadores sexuais.
O Caso Pelicot deve ser emblemático para os
países no que tange à responsabilização das empresas de tecnologia, inclusive o
Brasil. Qualquer usuário médio do X (antigo Twitter) sabe como a rede social,
após ser vendida para Elon Musk, se tornou tóxica e um terreno fértil para
compartilhamento de pornografia. O mesmo vale para o TikTok, uma das
plataformas mais usadas por crianças e adolescentes.
Aqui, cabe também o compromisso da sociedade para cobrar uma discussão mais profunda do poder público sobre a violência contra a mulher e a responsabilização das empresas de tecnologia. Afinal, como mostra o Caso Pelicot, as duas coisas andam mais juntas do que parecem.
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