Valor Econômico
Em vídeo gravado no Torto, Lula falou em divisão de espaços, mas lembrou que a relação deve ser de respeito
Ao fim de um ano atribulado, marcado por
crises com o Congresso, conflitos com o Banco Central e o mercado financeiro e
pelas intercorrências de saúde, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou a
leveza ao se refugiar na Granja do Torto para passar o Natal.
Na manhã do dia 25, ele publicou um vídeo bucólico nas redes sociais, onde apresentou o laguinho reformado, cheio de carpas, e alguns moradores mais antigos da residência de campo, que estavam cedidos ao zoo enquanto aguardavam as benfeitorias: um jabuti e uma tartaruga.
Entretanto, a interação de Lula com a
natureza, transmitindo a paz necessária ao fim de ano, contrastou com o cenário
de guerra no Congresso, que se eriçou contra a nova determinação do Supremo
Tribunal Federal (STF) de bloquear R$ 4,2 bilhões em emendas parlamentares.
Em gesto talvez inédito, o presidente da
Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), convocou os líderes para uma reunião
em Brasília em pleno intervalo entre Natal e Ano Novo para discutir a reação ao
ato judicial. Tão raro que muitos participaram por videoconferência. Ele também
se reuniu com Lula para tratar da nova crise.
Voltando aos jardins do Torto, a imagem em
que Lula contracena com um jabuti, acariciando o casco do animal, em clima de
harmonia com a natureza, evoca um dos capítulos mais pitorescos da literatura,
que serve de metáfora à conturbada relação entre os Poderes da República.
O livro é “Palomar”, de Italo Calvino. No
capítulo em questão, o personagem passeia pelo jardim até se deter na
contemplação de duas tartarugas, macho e fêmea. É a “época dos amores”, narra o
autor italiano, e o casal de répteis dá início ao passo a passo do
acasalamento.
Um ritual tão sinuoso quanto as articulações
políticas. O autor descreve a cena: “O macho aborda a fêmea pelo lado,
contornando o realce do degrau. A fêmea parece resistir ao ataque, ou pelo
menos lhe opõe uma imobilidade um tanto inerte. O macho é menorzinho e mais
ativo; dir-se-ia mais jovem. Tenta insistentemente montá-la, mas o dorso da
carapaça dela está descido e ele escorrega”.
“Agora ela se lhe esquiva, ele a persegue.
Não que ela seja mais veloz nem muito decidida a escapar: ele, para detê-la, dá
pequenas mordidas numa das patas, sempre na mesma. Ela não se rebela. O macho,
toda vez que ela para, tenta montá-la, mas ela dá um pequeno passo para a
frente e ele escorrega e bate com o membro no chão”.
Durante o flerte, as tartarugas dão inúmeras
voltas ao redor de um jasmineiro, com perseguições, fugas, esbarram-se,
entrechocam-se, até o acasalamento. “Será que as tartarugas se entendem melhor
que nós?”, questionou o personagem, refletindo sobre a raça humana.
Pois tem sido de perseguições, fugas e
resistência a relação entre os Poderes. O capítulo da exigência do STF de
transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares é um exemplo. Há
cerca de 15 dias, os congressistas tentaram driblar uma restrição imposta pelo
ministro Flávio Dino para a liberação dos recursos. A saída foi um ofício da
presidência da Câmara, assinado por 17 líderes, destinado à Secretaria de
Relações Institucionais, para a execução das emendas. O governo chancelou o
documento.
Ou seja, a fêmea avançou um passo, tentando
escapar do macho, mas este lhe mordeu a pata para detê-la. Uma mordida de R$
4,2 bilhões. Dino argumenta, na decisão, que faltam a esses recursos os
requisitos de transparência e rastreabilidade. Isso porque referem-se às
“emendas de comissão”, cuja autoria e destinação são nebulosas, como no
orçamento secreto.
O governo encerrou o ano acreditando em uma
trégua com o Congresso. Os ânimos estavam estremecidos desde o meio do ano,
quando o STF suspendeu, pela primeira vez, o pagamento das emendas. Após as
eleições municipais, deputados e senadores só retomaram as atividades após a
sanção do projeto que, sob a supervisão do Judiciário, estabeleceu regras
claras para a execução das emendas.
Quando o impasse parecia superado, o ministro
Flávio Dino avalizou parcialmente o projeto, impondo novas restrições. Mesmo
com as ressalvas, o Executivo liberou mais de R$ 7 bilhões em emendas, que
estavam represadas desde junho. O gesto viabilizou a votação a toque de caixa,
do pacote fiscal do Executivo, em um movimento para tentar aplacar a
desconfiança do mercado.
Quando Dino deu aval apenas parcial às novas
regras, Lira reagiu invocando a separação dos Poderes: “Sempre vou defender que
cada um dos três Poderes fique restrito às suas atribuições constitucionais;
quando isso se desequilibra, dá esse tipo de problema”, disse, em 10 de
dezembro.
No vídeo gravado no Torto, Lula também falou
em divisão de espaços, mas lembrando que a relação deve ser de respeito:
“Quando a gente respeita a natureza, a natureza entra em harmonia, tem um
espaço para a carpa, para a tartaruga, para o jabuti”, filosofou. O novo
bloqueio das emendas ocorreu porque o STF avaliou que o Congresso desrespeitou
a ordem de garantir a transparência aos recursos.
A relação entre os Poderes é como a das
tartarugas: têm carapaças sólidas, mas resvalosas, batem os cascos uns nos
outros, mas em algumas épocas do ano, trocam afagos.
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