sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Por que as tartarugas ilustram a crise dos Poderes - Andrea Jubé

Valor Econômico

Em vídeo gravado no Torto, Lula falou em divisão de espaços, mas lembrou que a relação deve ser de respeito

Ao fim de um ano atribulado, marcado por crises com o Congresso, conflitos com o Banco Central e o mercado financeiro e pelas intercorrências de saúde, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou a leveza ao se refugiar na Granja do Torto para passar o Natal.

Na manhã do dia 25, ele publicou um vídeo bucólico nas redes sociais, onde apresentou o laguinho reformado, cheio de carpas, e alguns moradores mais antigos da residência de campo, que estavam cedidos ao zoo enquanto aguardavam as benfeitorias: um jabuti e uma tartaruga.

Entretanto, a interação de Lula com a natureza, transmitindo a paz necessária ao fim de ano, contrastou com o cenário de guerra no Congresso, que se eriçou contra a nova determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de bloquear R$ 4,2 bilhões em emendas parlamentares.

Em gesto talvez inédito, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), convocou os líderes para uma reunião em Brasília em pleno intervalo entre Natal e Ano Novo para discutir a reação ao ato judicial. Tão raro que muitos participaram por videoconferência. Ele também se reuniu com Lula para tratar da nova crise.

Voltando aos jardins do Torto, a imagem em que Lula contracena com um jabuti, acariciando o casco do animal, em clima de harmonia com a natureza, evoca um dos capítulos mais pitorescos da literatura, que serve de metáfora à conturbada relação entre os Poderes da República.

O livro é “Palomar”, de Italo Calvino. No capítulo em questão, o personagem passeia pelo jardim até se deter na contemplação de duas tartarugas, macho e fêmea. É a “época dos amores”, narra o autor italiano, e o casal de répteis dá início ao passo a passo do acasalamento.

Um ritual tão sinuoso quanto as articulações políticas. O autor descreve a cena: “O macho aborda a fêmea pelo lado, contornando o realce do degrau. A fêmea parece resistir ao ataque, ou pelo menos lhe opõe uma imobilidade um tanto inerte. O macho é menorzinho e mais ativo; dir-se-ia mais jovem. Tenta insistentemente montá-la, mas o dorso da carapaça dela está descido e ele escorrega”.

“Agora ela se lhe esquiva, ele a persegue. Não que ela seja mais veloz nem muito decidida a escapar: ele, para detê-la, dá pequenas mordidas numa das patas, sempre na mesma. Ela não se rebela. O macho, toda vez que ela para, tenta montá-la, mas ela dá um pequeno passo para a frente e ele escorrega e bate com o membro no chão”.

Durante o flerte, as tartarugas dão inúmeras voltas ao redor de um jasmineiro, com perseguições, fugas, esbarram-se, entrechocam-se, até o acasalamento. “Será que as tartarugas se entendem melhor que nós?”, questionou o personagem, refletindo sobre a raça humana.

Pois tem sido de perseguições, fugas e resistência a relação entre os Poderes. O capítulo da exigência do STF de transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares é um exemplo. Há cerca de 15 dias, os congressistas tentaram driblar uma restrição imposta pelo ministro Flávio Dino para a liberação dos recursos. A saída foi um ofício da presidência da Câmara, assinado por 17 líderes, destinado à Secretaria de Relações Institucionais, para a execução das emendas. O governo chancelou o documento.

Ou seja, a fêmea avançou um passo, tentando escapar do macho, mas este lhe mordeu a pata para detê-la. Uma mordida de R$ 4,2 bilhões. Dino argumenta, na decisão, que faltam a esses recursos os requisitos de transparência e rastreabilidade. Isso porque referem-se às “emendas de comissão”, cuja autoria e destinação são nebulosas, como no orçamento secreto.

O governo encerrou o ano acreditando em uma trégua com o Congresso. Os ânimos estavam estremecidos desde o meio do ano, quando o STF suspendeu, pela primeira vez, o pagamento das emendas. Após as eleições municipais, deputados e senadores só retomaram as atividades após a sanção do projeto que, sob a supervisão do Judiciário, estabeleceu regras claras para a execução das emendas.

Quando o impasse parecia superado, o ministro Flávio Dino avalizou parcialmente o projeto, impondo novas restrições. Mesmo com as ressalvas, o Executivo liberou mais de R$ 7 bilhões em emendas, que estavam represadas desde junho. O gesto viabilizou a votação a toque de caixa, do pacote fiscal do Executivo, em um movimento para tentar aplacar a desconfiança do mercado.

Quando Dino deu aval apenas parcial às novas regras, Lira reagiu invocando a separação dos Poderes: “Sempre vou defender que cada um dos três Poderes fique restrito às suas atribuições constitucionais; quando isso se desequilibra, dá esse tipo de problema”, disse, em 10 de dezembro.

No vídeo gravado no Torto, Lula também falou em divisão de espaços, mas lembrando que a relação deve ser de respeito: “Quando a gente respeita a natureza, a natureza entra em harmonia, tem um espaço para a carpa, para a tartaruga, para o jabuti”, filosofou. O novo bloqueio das emendas ocorreu porque o STF avaliou que o Congresso desrespeitou a ordem de garantir a transparência aos recursos.

A relação entre os Poderes é como a das tartarugas: têm carapaças sólidas, mas resvalosas, batem os cascos uns nos outros, mas em algumas épocas do ano, trocam afagos.

 

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