O Globo
Julgamento de Bolsonaro deve coroar
democracia, e não enfraquecê-la
Como já era de esperar, a denúncia
contra Jair
Bolsonaro e outros 33 acusados
de golpe de Estado pelo procurador-geral da República, Paulo
Gonet, dividiu o Brasil. Quem já
considerava o ex-presidente culpado ou de alguma forma responsável pelo 8 de
janeiro comemorou antecipadamente até a provável condenação e, por tabela, o
enterro do projeto de anistia aos presos pelos ataques golpistas às sedes dos
três Poderes. No polo oposto do espectro político, a acusação foi tachada de
frágil, sem evidências ou provas de que Bolsonaro tem ligação com os ataques —
para muita gente, tudo não passou de uma baderna generalizada.
Para que se avalie a denúncia pelo que ela realmente é, e não pelo que se pretende fazer dela, porém, é preciso entender de que tipo de crime estamos falando. Um presidente da República que trame um golpe de Estado nunca assinará um recibo ou preencherá um formulário descrevendo o que fará.
Da mesma forma, uma autoridade que recebe de
presente um apartamento de um empreiteiro não o passará diretamente a seu nome,
ainda que o use e faça reformas nele. É para isso que servem os prepostos, os
intermediários, os amigos e os ajudantes de ordem.
Não foram poucas as evidências encontradas
pela Polícia
Federal e pela Procuradoria-Geral da República (PGR)
de que Bolsonaro tramou um golpe, tentou convencer os comandantes das Forças
Armadas a aderir e, mesmo quando já estava claro que isso não
aconteceria, estimulou os manifestantes que estavam nas portas dos quartéis
pedindo intervenção militar a não arredar pé.
Depoimentos dos comandantes, a minuta do
decreto de golpe e até o discurso que o então presidente faria logo em seguida
estão nos autos. As trocas de mensagens entre os golpistas dos acampamentos e
os militares que faziam o leva e traz do Palácio do Planalto mostram que as
orientações para continuarem a postos eram dadas em nome do próprio Bolsonaro.
É verdade que ele estava nos Estados Unidos quando
tudo aconteceu, mas os manifestantes que marcharam sobre a Esplanada dos
Ministérios em 8 de janeiro de 2023 para a “tomada de poder pelo povo” não
brotaram do nada.
Se quisesse, o então presidente teria mandado
todo mundo para casa muito antes. Não faltou, aliás, quem tentasse convencê-lo
a fazer isso. Não conseguiu porque, nas palavras de Mauro Cid,
ele “ainda mantinha a chama acesa de que pudesse acontecer alguma coisa”. “Até
um dia ele falou, ‘papai do céu sempre ajudou a gente, vamos ver o que aparece
aí’ ”, disse Cid. Não era preciso Bolsonaro estar enrolado numa bandeira verde
e amarela comandando a turba para ter responsabilidade sobre o que ocorreu.
Nesse caso, porém, nem tudo é delírio
militante. Num país em que a Justiça já
anulou as penas de um ex-presidente da República condenado por corrupção e
considerou suspeito o juiz que deu a primeira sentença, o mínimo que se poderia
esperar do Supremo Tribunal Federal (STF)
é coerência.
A suspeição de Alexandre
de Moraes para comandar o caso já foi discutida no STF e descartada.
Os argumentos de quem a defende, porém, são legítimos. Por mais diligente que
seja Moraes, ele e Bolsonaro são adversários notórios que mantiveram embates
públicos bastante duros.
Além disso, a denúncia demonstra que havia um
plano para “neutralizar” Moraes. Como vítima, é difícil acreditar que ele terá
a imparcialidade necessária para comandar o julgamento — não porque seja
mal-intencionado, e sim porque é humano.
Outra questão é o formato do julgamento. O
regimento do Supremo permite que Bolsonaro seja julgado por uma turma, um
colegiado menor formado por apenas cinco juízes. O mecanismo foi criado para
agilizar o funcionamento da Corte, atolada em processos.
Mas não é proibido que o processo seja
submetido ao plenário, onde todos os ministros poderiam opinar sobre um caso
que talvez seja o mais importante do tribunal em nossa geração. Tudo indica que
Bolsonaro seria condenado mesmo assim. Mas não é disso que se trata.
Um presidente que trama um golpe de Estado
para acabar com a democracia comete o crime mais grave para alguém em sua
posição. Por isso mesmo, é necessário que o julgamento seja definitivo. Não se
pode impedir que parte dos seguidores de Bolsonaro o considerem para sempre
inocente.
É preciso, por isso, cuidar para que o
processo pelo qual ele será julgado e eventualmente punido seja para sempre
lembrado como o coroamento da democracia, e não como mais um acontecimento a
fragilizá-la.
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