quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Malu Gaspar – O golpe e seu julgamento

O Globo

Julgamento de Bolsonaro deve coroar democracia, e não enfraquecê-la

Como já era de esperar, a denúncia contra Jair Bolsonaro e outros 33 acusados de golpe de Estado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, dividiu o Brasil. Quem já considerava o ex-presidente culpado ou de alguma forma responsável pelo 8 de janeiro comemorou antecipadamente até a provável condenação e, por tabela, o enterro do projeto de anistia aos presos pelos ataques golpistas às sedes dos três Poderes. No polo oposto do espectro político, a acusação foi tachada de frágil, sem evidências ou provas de que Bolsonaro tem ligação com os ataques — para muita gente, tudo não passou de uma baderna generalizada.

Para que se avalie a denúncia pelo que ela realmente é, e não pelo que se pretende fazer dela, porém, é preciso entender de que tipo de crime estamos falando. Um presidente da República que trame um golpe de Estado nunca assinará um recibo ou preencherá um formulário descrevendo o que fará.

Da mesma forma, uma autoridade que recebe de presente um apartamento de um empreiteiro não o passará diretamente a seu nome, ainda que o use e faça reformas nele. É para isso que servem os prepostos, os intermediários, os amigos e os ajudantes de ordem.

Não foram poucas as evidências encontradas pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de que Bolsonaro tramou um golpe, tentou convencer os comandantes das Forças Armadas a aderir e, mesmo quando já estava claro que isso não aconteceria, estimulou os manifestantes que estavam nas portas dos quartéis pedindo intervenção militar a não arredar pé.

Depoimentos dos comandantes, a minuta do decreto de golpe e até o discurso que o então presidente faria logo em seguida estão nos autos. As trocas de mensagens entre os golpistas dos acampamentos e os militares que faziam o leva e traz do Palácio do Planalto mostram que as orientações para continuarem a postos eram dadas em nome do próprio Bolsonaro. É verdade que ele estava nos Estados Unidos quando tudo aconteceu, mas os manifestantes que marcharam sobre a Esplanada dos Ministérios em 8 de janeiro de 2023 para a “tomada de poder pelo povo” não brotaram do nada.

Se quisesse, o então presidente teria mandado todo mundo para casa muito antes. Não faltou, aliás, quem tentasse convencê-lo a fazer isso. Não conseguiu porque, nas palavras de Mauro Cid, ele “ainda mantinha a chama acesa de que pudesse acontecer alguma coisa”. “Até um dia ele falou, ‘papai do céu sempre ajudou a gente, vamos ver o que aparece aí’ ”, disse Cid. Não era preciso Bolsonaro estar enrolado numa bandeira verde e amarela comandando a turba para ter responsabilidade sobre o que ocorreu.

Nesse caso, porém, nem tudo é delírio militante. Num país em que a Justiça já anulou as penas de um ex-presidente da República condenado por corrupção e considerou suspeito o juiz que deu a primeira sentença, o mínimo que se poderia esperar do Supremo Tribunal Federal (STF) é coerência.

A suspeição de Alexandre de Moraes para comandar o caso já foi discutida no STF e descartada. Os argumentos de quem a defende, porém, são legítimos. Por mais diligente que seja Moraes, ele e Bolsonaro são adversários notórios que mantiveram embates públicos bastante duros.

Além disso, a denúncia demonstra que havia um plano para “neutralizar” Moraes. Como vítima, é difícil acreditar que ele terá a imparcialidade necessária para comandar o julgamento — não porque seja mal-intencionado, e sim porque é humano.

Outra questão é o formato do julgamento. O regimento do Supremo permite que Bolsonaro seja julgado por uma turma, um colegiado menor formado por apenas cinco juízes. O mecanismo foi criado para agilizar o funcionamento da Corte, atolada em processos.

Mas não é proibido que o processo seja submetido ao plenário, onde todos os ministros poderiam opinar sobre um caso que talvez seja o mais importante do tribunal em nossa geração. Tudo indica que Bolsonaro seria condenado mesmo assim. Mas não é disso que se trata.

Um presidente que trama um golpe de Estado para acabar com a democracia comete o crime mais grave para alguém em sua posição. Por isso mesmo, é necessário que o julgamento seja definitivo. Não se pode impedir que parte dos seguidores de Bolsonaro o considerem para sempre inocente.

É preciso, por isso, cuidar para que o processo pelo qual ele será julgado e eventualmente punido seja para sempre lembrado como o coroamento da democracia, e não como mais um acontecimento a fragilizá-la.

 

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