O Estado de S. Paulo
Diagnóstico de Bannon sobre a debilidade e a vulnerabilidade da democracia dos EUA, e de outras que tentam emulá-la, continua a valer e deve preocupar
Em uma longa entrevista ao jornalista Ross Douthat no The New York Times de 31/1/2025, Steve Bannon, a quem se atribui ter levado Donald Trump à sua primeira vitória em 2016, mostra-se articulado, culto, divertido, e quase convence. De família pobre, democrata dos tempos de John F. Kennedy, formado pela Harvard Business School, Bannon se define como populista e nacionalista. A pax americana, segundo ele, que se impôs ao mundo ocidental após a 2.ª Guerra, é uma construção que tem no topo uma elite bilionária, sustentada por uma grande burocracia de pessoas com títulos universitários – a “classe dos diplomados”, incluindo generais, professores universitários e jornalistas da grande imprensa –, e na base grupos de interesse formados por sindicatos e organizações que se articulam em nome de direitos sociais para receber partes do bolo. Tudo à custa do little guy, o homem do povo que é enviado para matar e morrer em guerras longínquas, cujos valores e estilos de vida são corroídos pelas políticas identitárias financiadas com recursos públicos e cujos empregos e salários são aviltados pelos imigrantes e a concorrência de investimentos em outros países.
Para vencer esse sistema, seria preciso se
comunicar diretamente com o povo pelas redes sociais, deixando de lado a grande
imprensa; usar argumentos emocionais, para não precisar discutir com a classe
dos diplomados; e encontrar um líder capaz de dar voz aos ressentimentos e
frustrações do little guy: Donald Trump. Uma vez no poder, seria necessário
equilibrar as contas, cobrando impostos dos milionários e cortando subsídios;
proteger a indústria nacional, com investimentos e barreiras alfandegárias; desmontar
a burocracia pública e as organizações sociais que ela alimenta; deportar os
imigrantes e taxar as importações, valorizando o trabalhador americano.
A estratégia funcionou para ganhar eleições,
tanto a primeira quanto a de 2024, mas não para governar. Bannon saiu do
primeiro governo Trump logo nos primeiros meses, e ficou fora do atual,
criticando de longe a influência do novo grupo de bilionários das tecnologias
digitais – Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg –, que, segundo ele, formam
uma nova oligarquia de “trans-humanistas”. Eles seriam os líderes de um novo
“tecnofeudalismo”, com o poder concentrado nas mãos de engenheiros e, cada vez
mais, em sistemas autônomos de inteligência artificial. Nesse novo mundo, as
hierarquias baseadas nas fortunas familiares e nos diplomas seriam substituídas
pela nova hierarquia formada pela simbiose homemmáquina, acumulação ilimitada
de recursos em poucas mãos e administração tecnocrática da sociedade das
pessoas e da natureza, levando ao fim as identidades locais e nacionais.
Como explicar que Trump tenha abraçado essa
distopia, e em que medida isso afeta a lealdade de Bannon à sua criatura? Trump
é imperfeito, explica Bannon, e tende a ficar sempre do lado de empresários
bem-sucedidos, que agora são esses. Mas essa imperfeição seria a sua grandeza,
diz ele, o que o tornaria comparável aos grandes presidentes americanos como
George Washington e Abraham Lincoln, embora Trump mesmo prefira se comparar a
Andrew Jackson, o presidente que ficou famoso por entregar a economia americana
aos robber barons do final do século 19.
Bannon foi astuto ao perceber as debilidades
da democracia americana e como atacá-la, e apostar num personagem sem limites
como Trump como instrumento para vencêla, mas nenhum dos dois parece ter ideia
do que colocar em seu lugar. Nestas primeiras semanas do novo governo, o que
vemos são movimentos para cumprir as promessas mais espetaculares e destrutivas
da campanha, como a deportação de milhões de imigrantes, a suspensão da
cooperação internacional, o ataque às políticas de inclusão e ao funcionamento
da administração federal, as barreiras alfandegárias à China e aos países
vizinhos e a indicação de personalidades marginais para os cargos mais
importantes. A aposta de que dos escombros uma nova e mais grandiosa América
surgiria, sob o comando dos novos tecnocratas bilionários, foi abalada pelo
surpreendente sistema de inteligência artificial chinês, lembrando que é a
China, e não os Estados Unidos, que lidera hoje a pesquisa, a produção
industrial e o uso das novas tecnologias em quase todos os campos.
Trump tem dito, em seus ataques às políticas
de inclusão, que agora as pessoas passarão a valer pelos seus méritos, e não
mais por seus supostos direitos. Mas o little guy é, justamente, aquele que não
conseguiu se valer das oportunidades criadas pela sociedade americana em seus
melhores momentos, e é difícil conciliar essa suposta redescoberta do mérito
com o ataque generalizado à “classe dos diplomados” e suas instituições,
incluindo as universidades, os centros de pesquisa e as agências governamentais
nas áreas de educação, saúde e meio ambiente.
É provável que, passado o primeiro susto, a
sociedade norte-americana comece a reagir e, daqui a dois anos, Trump perca,
nas eleições, a maioria que tem no Congresso. Mas o diagnóstico de Bannon sobre
a debilidade e a vulnerabilidade da democracia americana, e de outras que
tentam emulá-la, continua valendo, e deve preocupar.
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