quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O que importa no show de Trump - Eduardo Belo

Valor Econômico

Impacto das medidas do primeiro mês de governo ficarão claros no meio deste ano, projeta professor da FDC

Em 2017, o economista, escritor e quadrinista americano Scott Adams, célebre por ter criado e publicado por mais de três décadas a tirinha “Dilbert”, uma sátira mordaz do mundo corporativo, lançou o livro “Win Bigly: Persuasion in a World Where Facts Don’t Matter”.

O título é autoexplicativo. Os fatos não importam. O que realmente conta é como convencer pessoas - especialmente as que ainda não têm convicções enraizadas - de que há duas formas de ver o mundo ou de fazer as coisas: a “nossa” e a “errada”.

No livro - cujo título em português é um quase presunçoso “Ganhar de lavada” - Addams desfila técnicas e conceitos de convencimento, muitos deles aplicados na campanha da primeira eleição de Donald Trump, em 2016.

Addams, ele mesmo diz, não é eleitor de Trump nem de ninguém, mas profundo conhecedor da “arte” de usar fragmentos como se fossem toda a verdade, distorcer, manipular e falar mais alto para fazer prevalecer sua própria “verdade” contra a “verdade errada” alheia.

O modus operandi do presidente americano segue em grande medida o roteiro exibido por Adams. O próprio autor descortina vários exemplos disso. O discurso de Trump muitas vezes revela mais pelo que esconde do que pelo que mostra. Seus atos e declarações camuflam segundas intenções e trabalham para criar confusão proposital, embaralhar e desequilibar o jogo geopolítico.

“Trump age como se estivesse num reality show”, comenta Paulo Vicente Alves, economista, administrador, engenheiro e professor da Fundação Dom Cabral, com um vasto currículo acadêmico nas áreas de gestão pública, negócios e relações internacionais - além de observador atento de Trump.

“A cabeça dele é ‘vou pressionar você para você ceder um pouco; vou tentar desequilibrar a situação usando meu poder de barganha para você ceder alguma coisa’”, comenta. Foi o que fez ao taxar o mundo todo, em uma tentativa de trazer empresas de volta para o território americano.

O Brasil já fez isso, lembra Paulo Vicente. Foi uma das economias mais protecionistas do mundo, “entupido” de taxação. Os resultados ficaram aquém do pretendido. “A gente teve até a década de 1970 uma política de substituição de importações que de fato trouxe algumas empresas para cá, mas que em algum momento se esgotou”, comenta.

E questiona: mesmo considerando que as condições são outras e a economia americana é muito mais dinâmica e forte que a brasileira, será que isso vai funcionar por lá?

O roteiro trumpista se repete fora da área econômica. Taticamente, é mais ou menos o mesmo que Trump faz ao ameaçar a ocupação da Faixa de Gaza. “Ele tenta desequilibrar ou criar um novo ponto de conversa para tentar forçar a negociação. Às vezes funciona, mas rapidamente fica muito previsível que ele vai jogar alguma coisa para tentar desequilibrar”, diz.

 

É com esse jogador e num jogo ainda mais desequilibrado que o Brasil, tradicionalmente com pouco poder de barganha diante de qualquer governo americano, vai se deparar daqui para frente. Em 2024, o Brasil teve déficit comercial de US$ 223 milhões com os Estados Unidos, o menor em dez anos, mas ainda assim desequilibrado em favor dos EUA.

O professor da FDC acha que o país pode sofrer muito na relação bilateral, ainda mais diante do desequilíbrio fiscal que ameaça fragilizar o atual governo. Estudo da assessoria parlamentar da Câmara dos Deputados indica risco de paralisia da máquina pública federal em 2027 por falta de espaço no Orçamento federal.

Com o presidente Lula já pensando na eleição do ano que vem, comenta, a adoção de medidas amargas e impopulares que possam resgatar a economia do país torna-se mais e mais improvável. O drama tende a crescer, caso alguma nova crise, inclusive trazida por ventos externos antecipe os problemas do país.

Paulo Vicente entende que o governo deveria aprofundar o ajuste fiscal agora para não ser surpreendido lá na frente, mas não acredita que o governo o fará.

Reagir com aplicação de tarifas também não é o caminho. O Brasil já cobra taxas elevadas, de até 100%, em vários produtos. Então, retaliar é praticamente pedir para que a contra-retaliação seja ainda mais intensa.

Mas nem tudo é má notícia. O Brasil tem potencial para aproveitar a reaproximação de investimentos externos voltados para o mercado americano. Brasil e Argentina, mesmo taxados e com vários problemas internos a resolver, poderiam disputar esses investimentos em condições mais vantajosas que o México, cujo custo da mão de obra começa a se tornar um obstáculo, opina Paulo Vicente.

O professor diz também que as ações de Trump têm potencial para mudar o mapa do comércio internacional. A China está ficando cara e representa um competidor importante para os EUA. Isso leva a um redirecionamento de investimentos produtivos para outros países da Ásia e uma “ocidentalização” de alguns desses investimentos - entre eles, os que favoreceriam a América Latina e, em alguns casos, América Central e o norte da África. Esse movimento já começou e tende a se aprofundar, prevê.

Os impactos das decisões neste primeiro mês da gestão Trump 2 devem ficar claros em meados deste ano, avalia Paulo Vicente. Até lá, o mundo terá uma ideia mais clara do rearranjo do comércio internacional e dos impactos inflacionários das primeiras medidas tanto no território dos Estados Unidos quanto no restante do mundo Ocidental. Só então será possível saber o que há de real e de fictício no show de Trump.

 

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