Folha de S. Paulo
Presidente dos EUA é um
oportunista de convicções políticas fluidas, mas mantém visão de mundo coerente
O Japão nos rouba,
economicamente, e a Europa aproveita-se de nós fazendo com que paguemos por sua
segurança. As duas mensagens apareceram no primeiro anúncio de TV publicado
pelo então incorporador imobiliário Donald Trump, nos idos de 1987. A figura que
hoje ocupa o Salão Oval é um oportunista de convicções políticas fluidas, mas
mantém uma visão de mundo coerente. Dela emana aquilo que deve ser descrito
como Doutrina Trump.
A "cidade brilhante no alto da colina" –a expressão, oriunda do sermão laico pronunciado em 1630 por John Winthrop, o puritano fundador de Boston, a bordo do navio Arbella, ressurgiu vezes incontáveis em discursos de presidentes republicanos ou democratas. Historicamente, para o bem ou o mal, os EUA exibiram-se a si mesmos e aos estrangeiros como um farol de reforma do mundo. Trump substitui a visão luminosa da cidade profética pela visão sombria de uma fortaleza em declínio, traída e explorada por pérfidos aliados.
"Sejamos sinceros: a
União Europeia foi criada com a finalidade de ferrar os EUA. É esse o propósito
dela –e fizeram um bom trabalho nisso. Mas, agora, sou o presidente"
(Trump, 26/2). "A ameaça que mais me atormenta não é a Rússia ou a China
ou qualquer ator externo. O que me preocupa é a ameaça de dentro: o recuo da
Europa de alguns de seus valores mais fundamentais, que são compartilhados com
os EUA" (J.D. Vance, 18/2).
Trump e
seu vice não enxergam o perigo nas potências autocráticas, rivais de sempre,
mas nas sociedades democráticas que alargaram o espaço das liberdades públicas,
ampliaram os direitos civis e toleraram a imigração. Daí, as declarações de
apoio de Vance e Musk à AfD alemã, um partido extremista que opera como
tentáculo de Putin e flerta com neonazistas. O sonho dourado de Trump é
desmantelar a União Europeia e, junto, a aliança transatlântica materializada
na Otan.
A ordem edificada no
pós-guerra estabeleceu uma economia internacional aberta, que funcionou como
moldura para a prosperidade dos EUA. Trump, contudo, a interpreta pelo avesso:
o livre comércio seria uma armadilha para nações estrangeiras tirarem proveito
do mercado americano. "Fomos roubados durante décadas por quase todos os
países da Terra e não deixaremos isso acontecer novamente", proclamou
Trump diante do Congresso. Troque o Japão do anúncio de 1987 pela China, o
Canadá, o México e a União
Europeia –eis a raiz da guerra comercial deflagrada pela Casa Branca.
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A ordem do pós-guerra moldou
um sistema imperfeito de regras de segurança que evitou uma terceira guerra
mundial, alavancou a liderança geopolítica dos EUA e propiciou a cooperação
multilateral. Trump, porém, a interpreta como um esquema destinado a extrair
vantagens dos EUA e almeja substituí-la por um sistema de potências dominantes
rodeadas por suas esferas de influência. Sob tal lógica, a paz emanaria de
acordos transacionais firmados entre soberanos poderosos: o "triângulo
Rússia/China/EUA", nas palavras do Kremlin. Putin e Xi Jinping são
parceiros potenciais; Zelenski, um estorvo a ser eliminado.
Hastings Ismay, primeiro
secretário-geral da Otan, definiu a aliança como meio para conservar os EUA na
Europa, os russos fora e os alemães por baixo. A Doutrina Trump tende a deixar
os EUA fora, a Rússia dentro e os alemães (da AfD) por cima.
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