sábado, 8 de março de 2025

A Doutrina Trump – Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo

Presidente dos EUA é um oportunista de convicções políticas fluidas, mas mantém visão de mundo coerente

O Japão nos rouba, economicamente, e a Europa aproveita-se de nós fazendo com que paguemos por sua segurança. As duas mensagens apareceram no primeiro anúncio de TV publicado pelo então incorporador imobiliário Donald Trump, nos idos de 1987. A figura que hoje ocupa o Salão Oval é um oportunista de convicções políticas fluidas, mas mantém uma visão de mundo coerente. Dela emana aquilo que deve ser descrito como Doutrina Trump.

A "cidade brilhante no alto da colina" –a expressão, oriunda do sermão laico pronunciado em 1630 por John Winthrop, o puritano fundador de Boston, a bordo do navio Arbella, ressurgiu vezes incontáveis em discursos de presidentes republicanos ou democratas. Historicamente, para o bem ou o mal, os EUA exibiram-se a si mesmos e aos estrangeiros como um farol de reforma do mundo. Trump substitui a visão luminosa da cidade profética pela visão sombria de uma fortaleza em declínio, traída e explorada por pérfidos aliados.

"Sejamos sinceros: a União Europeia foi criada com a finalidade de ferrar os EUA. É esse o propósito dela –e fizeram um bom trabalho nisso. Mas, agora, sou o presidente" (Trump, 26/2). "A ameaça que mais me atormenta não é a Rússia ou a China ou qualquer ator externo. O que me preocupa é a ameaça de dentro: o recuo da Europa de alguns de seus valores mais fundamentais, que são compartilhados com os EUA" (J.D. Vance, 18/2).

Trump e seu vice não enxergam o perigo nas potências autocráticas, rivais de sempre, mas nas sociedades democráticas que alargaram o espaço das liberdades públicas, ampliaram os direitos civis e toleraram a imigração. Daí, as declarações de apoio de Vance e Musk à AfD alemã, um partido extremista que opera como tentáculo de Putin e flerta com neonazistas. O sonho dourado de Trump é desmantelar a União Europeia e, junto, a aliança transatlântica materializada na Otan.

A ordem edificada no pós-guerra estabeleceu uma economia internacional aberta, que funcionou como moldura para a prosperidade dos EUA. Trump, contudo, a interpreta pelo avesso: o livre comércio seria uma armadilha para nações estrangeiras tirarem proveito do mercado americano. "Fomos roubados durante décadas por quase todos os países da Terra e não deixaremos isso acontecer novamente", proclamou Trump diante do Congresso. Troque o Japão do anúncio de 1987 pela China, o Canadá, o México e a União Europeia –eis a raiz da guerra comercial deflagrada pela Casa Branca.

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A ordem do pós-guerra moldou um sistema imperfeito de regras de segurança que evitou uma terceira guerra mundial, alavancou a liderança geopolítica dos EUA e propiciou a cooperação multilateral. Trump, porém, a interpreta como um esquema destinado a extrair vantagens dos EUA e almeja substituí-la por um sistema de potências dominantes rodeadas por suas esferas de influência. Sob tal lógica, a paz emanaria de acordos transacionais firmados entre soberanos poderosos: o "triângulo Rússia/China/EUA", nas palavras do Kremlin. Putin e Xi Jinping são parceiros potenciais; Zelenski, um estorvo a ser eliminado.

Hastings Ismay, primeiro secretário-geral da Otan, definiu a aliança como meio para conservar os EUA na Europa, os russos fora e os alemães por baixo. A Doutrina Trump tende a deixar os EUA fora, a Rússia dentro e os alemães (da AfD) por cima.

 

 

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