Correio Braziliense
No passado, as democracias eram derrubadas
por grupos armados. Hoje, elas são minadas por dentro pela força das
desigualdades
O Brasil é uma das sociedades mais desiguais. São várias causas. Uma está ligada às próprias leis, muitas das quais criam desigualdades insuperáveis. É o caso, por exemplo, do enorme diferencial de aposentadoria entre servidores públicos e trabalhadores do setor privado. Outra decorre das leis que sancionam os supersalários e penduricalhos de agentes públicos. São leis extrativistas que atendem o interesse de privilegiados, extraindo os recursos dos mais pobres. Há ainda o exemplo da régua única do seguro-desemprego, que atende com o mesmo valor um desempregado solteiro e um chefe de família com cinco filhos.
Entra aqui também o impacto perverso da farra fiscal. Gastar mais do que se arrecada gera graves desequilíbrios. Estamos no meio desse processo. O resultado é sempre a aceleração da inflação, que é um imposto extremamente cruel e que fere gravemente os mais pobres.
O controle da farra fiscal depende de instituições fortes — que não temos — em especial os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No Brasil, os três têm se mostrado perdulários e prioritariamente interessados no enriquecimento dos seus membros e de suas campanhas eleitorais.
Como variante da farra fiscal, são as
concessões indiscriminadas de incentivos e subsídios que favorecem grupos e
regiões privilegiadas, décadas a fio, em detrimento dos que têm de arcar com as
cargas tributárias completas e até aumentadas. É o paternalismo de conceder
"meia entrada", como diz Marcos Lisboa, a grupos que se locupletam
desses benefícios em desfavor dos mais pobres.
Não se pode desprezar o papel da corrupção.
Nas escalas existentes, a "pequena corrupção" — que envolve as
tentativas de suborno praticadas pelos cidadãos comuns —, o Brasil está dentro
da média dos países pesquisados. Mas a "grande corrupção", praticada
pelos poderes públicos, partidos políticos e empresas estatais, está muito
acima da média mundial, conforme mostra Marcus André Melo no texto O Brasil
exibe paradoxo de pouca corrupção trivial e alta corrupção institucional,
publicado na Folha de S. Paulo, em 16 de fevereiro deste ano.
Há ainda a desigualdade gerada pela
incapacidade de o Brasil requalificar os trabalhadores que são deslocados dos
seus empregos por força da entrada de novas tecnologias. Sem condições de se
"repaginarem" para atender às novas demandas, trabalhadores de classe
média descem na escala social, passam para a classe baixa e agravam o já grave
quadro das desigualdades. Quem nunca tomou um Uber dirigido por um
contador?
O que isso tem a ver com a democracia? No
passado, as democracias eram derrubadas por grupos armados. Hoje, elas são
minadas por dentro pela força das desigualdades. Isso decorre basicamente do
desencanto e do sofrimento que assolam os grupos que são afetados pelo
agravamento das desigualdades. Pessoas que descem na escala social ou que
assistem ao enriquecimento de outros na base dos privilégios e não do mérito
ficam revoltadas e se tornam presas fáceis dos demagogos populistas.
O populismo floresce no meio das frustrações
e desigualdades e agrava as crises existentes. Isso porque os populistas se
elegem manipulando os sentimentos de inconformismo e prometendo o que não podem
entregar. Uma vez no poder e verificando a escassez de recursos para cumprir
suas promessas, os populistas partem para o assistencialismo no intuito de
atender e assegurar os votos dos mais pobres, agravando a crise fiscal e
minando a saúde da democracia no momento seguinte.
O Brasil tem longas histórias de políticos
populistas, desde Getúlio Vargas, passando por Jânio Quadros, Jair Bolsonaro e
Lula da Silva. Os que escaparam desse padrão foram Itamar Franco, Fernando
Henrique Cardoso e Michel Temer. Os três conseguiram fazer reformas estruturais
que revitalizaram a economia e permitiram combater as desigualdades por meio do
trabalho. Bolsonaro, que podia ter garantido a perenidade do equilíbrio das
finanças públicas, perdeu essa oportunidade ao partir para a farra fiscal no fim
de seu mandato, aumentando, por exemplo, o valor da Bolsa Família abruptamente
de R$ 200 para R$ 600.
Está provado, farra fiscal, leis
extrativistas, corrupção, favorecimentos a lobistas e outros mecanismos
perversos só agravam as desigualdades e enfraquecem a democracia. Precisamos
sair desse círculo vicioso.
*Professor da Universidade de São Paulo (aposentado), presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP e membro da Academia Paulista de Letras
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