Valor Econômico
Os eflúvios protecionistas são escoltados pela súcia de super-ricos que se empenham no projeto de apropriação privada das instituições do Estado
No Congresso do Partido Democrata, em 1936,
Franklin D. Roosevelt discursou sobre as ameaças da oligarquia financeira para
a sociedade: “Era natural e talvez humano que os príncipes privilegiados dessa
nova dinastia econômica, sedentos por poder, tentem alcançar o controle do
próprio governo. Eles criaram um novo despotismo e o embrulharam nos vestidos
de sanções legais. Em seu serviço, novos mercenários procuraram regimentar o
povo, seu trabalho e sua propriedade.”
Mais adiante Roosevelt fulminou: “Novos impérios foram construídos a partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das corporações, dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da indústria e da agricultura, do trabalho e do capital – nada disso sonhado pelos fundadores da pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida ao serviço da nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para abrigar os milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um uso sadio do sistema americano de livre-iniciativa e busca do lucro.”
O espaço econômico internacional, na
posteridade da Segunda Guerra Mundial, foi construído a partir do projeto de
integração entre as economias nacionais proposto pelo Estado americano na
reunião de Bretton Woods.
A concepção da ordem internacional nascida
das ideias do New Deal imaginava erigir um sistema monetário-financeiro capaz
de estimular o desenvolvimento do comércio entre as nações. Isso seria feito
dentro de regras monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, sem o
ajustamento deflacionário dos balanços de pagamentos, mas, antes, permitindo o
abastecimento adequado da liquidez às transações em expansão. Tratava-se,
portanto, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar
um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento,
industrialização e progresso social.
“A América vai ser grande outra vez” ou
“Vamos devolver os empregos aos americanos”. Em suas arengas eleitoreiras,
Trump prometia impor tarifas sobre produtos chineses, mexicanos canadenses e
europeus além de promover a volta das empresas americanas (des)localizadas em
plagas não americanas.
Os eflúvios protecionistas são escoltados
pela súcia de super-ricos que se empenham no projeto de apropriação privada das
instituições do Estado. Em seus movimentos, Donald Trump e Elon Musk realizam
os propósitos da democradura.
Ao responder à governadora do Maine que
invocava a lei e os tribunais para se defender das ameaças do presidente
desvairado, Trump expressou com clareza sua cumplicidade com a democradura. “Eu
sou a lei.”, disparou o alucinado.
Diante dessa declaração, irromperam forças do
passado que recordaram o dito do rei da França Luis XIV, L’Etat c’est Moi.
Argumenta o historiador Herberth Rowen da Duke University: o Estado não poderia
ser propriedade privada do Rei, pois o termo "privado" aplicado à
propriedade representa uma negação do caráter público, e o problema diz
respeito à propriedade do poder público. O rei francês sempre foi visto na
teoria política e jurídica como o titular de um cargo, isto é, como o
destinatário da função delegada e da autoridade, enquanto a
"propriedade" era inerente, era própria, não delegada. Como então o
cargo e a propriedade poderiam coexistir na mesma instituição? A frase de Luis
XIV estava fundada nas concepções do Estado Absolutista.
Seguimos com a história. Ainda antes da
Segunda Guerra Mundial, em carta a um amigo, Wilhelm Röpke, um dos corifeus do
liberalismo autoritário, desvelou a incompatibilidade entre seu ideário e a
democracia geral e irrestrita. “É possível que minha opinião sobre um ‘Estado
forte’ (um governo que governa) seja ainda ‘mais fascista’, porque eu realmente
gostaria de ver todas as decisões de política econômica concentradas nas mãos
de um Estado vigoroso e totalmente independente e não fragilizado pelas forças
pluralistas de natureza corporativista... Estou procurando a força do Estado na
intensidade e não na abrangência de sua política econômica. (...)Compartilho a
opinião de que as velhas fórmulas da democracia parlamentar demonstraram sua
futilidade. As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também uma
democracia presidencial, autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum – uma
democracia ditatorial.”
Em 1942, Röpke revisitou as categorias
Dominium e Imperium. Dominium significa “dominância sobre as coisas”, Imperium
significa “dominância sobre os homens”. Ele diz: “Imperium e Dominium estão
separados no mundo do liberalismo clássico”. Já o trumpismo deve manter a
convergência entre essas duas esferas, o que corresponde à visão de um “governo
duplo”: haveria um mundo de economia e da propriedade, coexistindo com outro
mundo, o dos espaços jurídico-políticos onde vivem e padecem os homens de carne
e osso.
Corey Robin, em artigo sobre as afinidades
entre Nietzsche e Hayek, afirma que o economista austríaco admite a necessidade
das “decisões de uma elite governante” com antidoto às trapalhadas da malta
ignara. Nas páginas do famoso livro The Road to Serfdom, Hayek escreve: “O
empregador e o indivíduo independente estão empenhados em definir e redefinir
seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se
adaptar a uma situação dada”. Ao trabalhador de Hayek faltam responsabilidade, iniciativa,
curiosidade e ambição. É um perdedor.
Por isso, nos escritos político-jurídicos,
Hayek não hesita em escolher o liberalismo diante dos riscos da democracia. “Há
um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – não se trata da
democracia como tal, mas de determinadas formas de organização democrática...
Agora tornou-se indiscutível que os poderes da maioria são ilimitados e que
governos com poderes ilimitados devem servir às maiorias e aos interesses
especiais de grupos econômicos. Há boas razões para preferir um governo
democrático limitado, mas devo confessar que prefiro um governo não
democrático, limitado pela lei, a um governo democrático ilimitado (e,
portanto, essencialmente sem lei).”
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