O Globo
Em documentário restaurado, Eunice Paiva fala
de prisão e assassinato do marido na ditadura: 'Verdadeiro absurdo'
Homenageada pelo primeiro filme brasileiro a
ganhar o Oscar, Eunice Paiva deve ressurgir em breve nos cinemas. Desta vez,
sem o auxílio luxuoso da atriz Fernanda Torres.
Em 1978, a viúva de Rubens Paiva contou sua
história ao documentarista Joatan Vilela Berbel. O depoimento está em “Eunice,
Clarice, Thereza”, que acaba de ganhar versão digital em alta definição.
O filme dá voz às mulheres de três vítimas da
ditadura: Eunice, viúva do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva; Clarice,
viúva do jornalista Vladimir Herzog; e Thereza de Lourdes, viúva do operário
Manoel Fiel Filho.
Eunice é a primeira a falar no curta-metragem. Descreve a rotina da família como “uma alegria total” até 20 de janeiro de 1971, quando militares bateram à porta para prender seu marido. “A empregada entra, muito assustada: ‘Doutor, tem uns homens na porta querendo falar com o senhor’. (...) Entraram seis homens com metralhadoras”, recorda.
Na manhã seguinte, Eunice e a filha Eliana,
de 15 anos, também foram levadas ao DOI-Codi. “A prisão foi uma sensação de
total isolamento. Eu me sentia absolutamente perdida no mundo. Não tinha
contato com ninguém, a não ser com os eventuais interrogadores”, ela relembra.
“Tentei saber primeiro a razão daquilo tudo.
A prisão do Rubens, a minha prisão, que era para mim um verdadeiro absurdo”,
prossegue. “Finalmente consegui saber que naquela altura eles estavam
interessadíssimos em resolver o sequestro do embaixador suíço, do qual ainda
não tinham nenhuma pista”.
De volta para casa, Eunice começou a luta
para descobrir o paradeiro do marido. Suas esperanças acabaram em agosto de
1971, quando o Superior Tribunal Militar negou um habeas corpus afirmando que
ele já não se encontrava preso. Para não admitir o assassinato na tortura, o
regime difundiu a versão de que o ex-deputado teria fugido.
“Não havia mais o que fazer, a resposta era
sempre a mesma”, resigna-se a viúva. O país vivia o período mais violento dos
anos de chumbo. “Foi a época em que mais sumiu gente, mais se prendeu gente,
mais se matou gente”, diz Eunice. “As pessoas eram presas, e de repente as
famílias recebiam os cadáveres em caixões lacrados, que não podiam ser
abertos”, conta.
O documentário foi lançado em 1980, mas nunca
chegou às salas de cinema. “Nem adiantava mandar para a Censura, porque jamais
seria aprovado”, comenta Berbel. Sem medo da repressão, Eunice e Clarice
participaram de sessões especiais em cineclubes, sindicatos e comitês
pró-Anistia.
Após a redemocratização, a cópia de 16mm
sobreviveu a uma inundação na Cinemateca do MAM e ficou esquecida por anos no
Arquivo Nacional. Agora a obra ganha uma nova chance na esteira do sucesso de
“Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. “Minhas expectativas em relação ao filme
já estavam encerradas”, admite Berbel. “É bom saber que o que fiz continua
vivo”, comemora.
A versão restaurada de “Eunice, Clarice,
Thereza” poderá ser vista a partir do dia 24 no site da plataforma Cinelimite.
Depois o diretor planeja exibi-la nos cinemas pela primeira vez.
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