Folha de S. Paulo
Discurso de presidente contra atravessadores
reproduz viés contra economia de mercado ao não reconhecer a importância de
atividades logísticas
Sempre me intrigou o fato de termos
conseguido desenvolver uma economia de mercado sofisticada considerando as
barreiras que nosso psiquismo impõe a ela.
Nossos cérebros da Idade da Pedra não têm
dificuldade para perceber que um agricultor ou um artesão produzem valor. Eles,
afinal, transformam sementes e matérias-primas em colheitas e produtos úteis.
Mas não aplicamos o mesmo raciocínio a comerciantes e outros intermediários.
Por alguma razão, não vemos sua atividade de logística como
"produtiva" e os chamamos pejorativamente de "atravessadores".
O presidente Lula melhor que ninguém exemplifica essa tendência. Vendo sua popularidade acossada pela inflação de alimentos, ele ameaçou medidas "drásticas". Contra quem? Falando de ovos, ele elaborou.
"A galinha não está cobrando caro. Eu
não encontrei uma galinha pedindo aumento no ovo. A coitadinha sofre
[...]". Ou, seja, a culpa não é do "produtor", aí compreendido
em sua dimensão mais fundamental.
"O que nós precisamos é saber que tem atravessador no meio",
continuou o presidente. "Entre o produtor e o consumidor deve ter muita
gente que mete dedo".
A leitura de Lula parece ser a de que levar
os produtos de fazendas e fábricas até as gôndolas de supermercados e manter as
estruturas necessárias para vendê-los não é uma atividade indispensável que
precisa ser remunerada. Quem faz isso não passa de "atravessador",
grupo que pode ser categorizado como exploradores do povo e contra o qual
caberiam medidas drásticas.
Há um lado sombrio nesse tipo de discurso.
Não é o caso do Brasil hoje, mas em várias partes do mundo, o comércio está
muito associado a minorias étnicas. Era o caso de judeus na Europa, de chineses
na Indonésia, Malásia e Vietnã e de armênios na Turquia. Aí, imprecar contra
atravessadores era frequentemente a senha para um massacre.
Por aqui, a vítima é só a noção econômica de
que preços são essencialmente informação sobre a disponibilidade de produtos.
Não se vencem guerras só matando mensageiros.
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