domingo, 9 de março de 2025

Mutação identitária do regime americano - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Nas brechas abertas pela crise da democracia emerge com Donald Trump um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades monárquicas

Quem olhou pode não ter visto tudo. No Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump calado à mesa enquanto Elon Musk, de casaco e boné esportivos, com o filho X de quatro anos nos ombros, fala a um pequeno grupo de jornalistas. A certo instante, Trump tenta dizer alguma coisa, mas X, já no chão, o interpela: "Cale a boca, você não é o presidente!". Cena bizarra, um garoto não só refreia a língua do poderoso boquirroto como deixa transparecer o que deve ouvir em casa. Um episódio miúdo com relevância política que passou batido.

Esse "olhar sem ver" evoca o "inconsciente ótico", de Walter Benjamin, que afirma com esse conceito a existência de alterações perceptivas decorrentes das reproduções técnicas de máquinas visuais como o cinema e outras. Para ele, toda imagem guarda uma latência de acontecimentos despercebidos na ótica natural. A imagem é capaz de aumentar a configuração do campo visual, deixando aspectos imperceptíveis ao observador. Análises magistrais de filmes por grandes críticos de cinema centravam-se intuitivamente em vestígios óticos dessa natureza.

A leitura das imagens televisivas do Salão Oval detecta refrações de cortes reais do passado, agora com um monarca autodeclarado, seu bufão e o superministro, um meme de cardeal Richelieu que age como papa. Bufão é o inverso divertido do rei, mas também o seu alter ego crítico, de onde provêm verdades arriscadas. No Salão, o posto foi ocupado por uma criança aparentemente treinada em casa, ratificando aquilo de que a opinião pública e os chargistas suspeitam, ou seja, a preeminência do superministro também autodeclarado. Existem sem ser, eis a ambiguidade básica das figuras de poder nos EUA.

Não é interpretação ligeira. A existência histórica de um Estado-Nação implica um passado-presente-futuro em que a vida realizada prescreve objetivos para o futuro. Não repetir, mas inovar no essencial. Isso não acontece nas sociedades sem história, onde o passado é refeito ou reativado. Mas nas brechas abertas pela crise da democracia emerge um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades monárquicas: é o que sugere a passagem do sistema imperialista global para um dúbio nacional-imperialismo. Com um golpe oligárquico, Trump autocoroa-se ao modo de Napoleão-3 (Luis Felipe, presidente republicano francês, tornado imperador por golpe). Sua política é bonapartista, e o bloco ocidental, o adversário a ser desmantelado. Por trás da monarquia como simulacro identitário do passado, real mesmo é a plutocracia.

Tudo começa com a demissão dos servidores públicos formados dentro de parâmetros constitucionais, seguida pelo facão tarifário e troca da diplomacia por grosseria, de que deu testemunho o bullying Volodimir Zelenski no agora famigerado Salão Oval. Dias após, mentiras impudentes cara a cara com Emmanuel Macron e com o premiê britânico. Foram-se o decoro e o respeito.

A cena com Musk e X é mínima, mas reveladora. Não se achincalha à toa, com bufonaria de circo, a liturgia presidencial de uma potência como os EUA. É uma ruptura simbólica. Testemunhado pelo mundo inteiro, o inimaginável aconteceu: o regime democrático americano alterou sua identidade histórica, tornando-se um não sei o quê. Para condutores de feroz caça às bruxas do identitarismo, uma pungente ironia objetiva.

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