Folha de S. Paulo
Nas brechas abertas pela crise da democracia
emerge com Donald Trump um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades
monárquicas
Quem olhou pode não ter visto tudo. No Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump calado à mesa enquanto Elon Musk, de casaco e boné esportivos, com o filho X de quatro anos nos ombros, fala a um pequeno grupo de jornalistas. A certo instante, Trump tenta dizer alguma coisa, mas X, já no chão, o interpela: "Cale a boca, você não é o presidente!". Cena bizarra, um garoto não só refreia a língua do poderoso boquirroto como deixa transparecer o que deve ouvir em casa. Um episódio miúdo com relevância política que passou batido.
Esse "olhar sem ver" evoca o
"inconsciente ótico", de Walter Benjamin, que afirma com esse conceito a existência
de alterações perceptivas decorrentes das reproduções técnicas de máquinas
visuais como o cinema e outras. Para ele, toda imagem guarda uma latência de
acontecimentos despercebidos na ótica natural. A imagem é capaz de aumentar a
configuração do campo visual, deixando aspectos imperceptíveis ao observador.
Análises magistrais de filmes por grandes críticos de cinema centravam-se
intuitivamente em vestígios óticos dessa natureza.
A leitura das imagens televisivas do Salão
Oval detecta refrações de cortes reais do passado, agora com um monarca
autodeclarado, seu bufão e o superministro, um meme de cardeal Richelieu que
age como papa. Bufão é o inverso divertido do rei, mas também o seu alter ego
crítico, de onde provêm verdades arriscadas. No Salão, o posto foi ocupado por
uma criança aparentemente treinada em casa, ratificando aquilo de que a opinião
pública e os chargistas suspeitam, ou seja, a preeminência do superministro também
autodeclarado. Existem sem ser, eis a ambiguidade básica das figuras de poder
nos EUA.
Não é interpretação ligeira. A existência
histórica de um Estado-Nação implica um passado-presente-futuro em que a vida
realizada prescreve objetivos para o futuro. Não repetir, mas inovar no
essencial. Isso não acontece nas sociedades sem história, onde o passado é
refeito ou reativado. Mas nas brechas abertas pela crise da democracia emerge
um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades monárquicas: é o que sugere a
passagem do sistema imperialista global para um dúbio nacional-imperialismo.
Com um golpe oligárquico, Trump autocoroa-se ao modo de Napoleão-3 (Luis
Felipe, presidente republicano francês, tornado imperador por golpe). Sua
política é bonapartista, e o bloco ocidental, o adversário a ser desmantelado.
Por trás da monarquia como simulacro identitário do passado, real mesmo é a
plutocracia.
Tudo começa com a demissão dos servidores
públicos formados dentro de parâmetros constitucionais, seguida pelo facão
tarifário e troca da diplomacia por grosseria, de que deu testemunho o bullying a Volodimir
Zelenski no agora famigerado Salão Oval. Dias após, mentiras
impudentes cara a cara com Emmanuel
Macron e com o premiê britânico. Foram-se o decoro e o respeito.
A cena com Musk e X é mínima, mas reveladora.
Não se achincalha à toa, com bufonaria de circo, a liturgia presidencial de uma
potência como os EUA. É uma ruptura simbólica. Testemunhado pelo mundo inteiro,
o inimaginável aconteceu: o regime democrático americano alterou sua identidade
histórica, tornando-se um não sei o quê. Para condutores de feroz caça às
bruxas do identitarismo, uma pungente ironia objetiva.
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