domingo, 20 de abril de 2025

A vez da performance do papagaio - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Na verborragia, importa a voz da chefia e o desempenho, não o significado das palavras

O democrata Cory Booker, primeiro senador negro de New Jersey, bateu o recorde mundial de duração de um discurso parlamentar, falando em pé na tribuna contra Trump 25 horas ininterruptas, sem pausa para a toalete. Oposicionistas insinuaram o uso de fralda, mas o fato é que ele superou o recorde do republicano Strom Thurmond, supremacista branco da Carolina do Sul que, muitos anos atrás, deblaterou por 24 horas contra a Lei dos Direitos Civis.

Em termos de energia física, essas façanhas evocam as maratonas de dança durante a Grande Depressão nos EUA, cujos participantes iam até a exaustão para ganhar alguns trocados. Foram dramatizadas em "A noite dos desesperados", filme célebre de Sidney Pollack (1969). Algo não tão estranho quanto a famosa epidemia de Estrasburgo (1518) em que as pessoas dançavam até a morte, mas extremo ainda assim.

Em extremismo vocal, os senadores superam Fidel Castro, quando falava seis horas a um público que se esbaldava em rum, melancia e danças. Aparentemente ninguém escutava nada, mas há testemunha de que, uma vez, quando tossiu, a multidão gritou em uníssono: "Que se cuide, Fidel!". Já entre nós, é recente a opinião do ator Marco Nanini depois de uma sessão da Câmara dos Deputados: "Aquilo é um caos, todos falam, ninguém ouve!"

Senador

Origem

Ano

Tempo de discurso

Contexto

Cory Booker

Democrata, Nova Jersey

2025

25h5min

Políticas de Trump e Musk

Strom Thurmond

Democrata, Carolina do Sul

1957

24h18min

Lei de Direitos Civis

Alfonse D'Amato

Republicano, Nova York

1986

23h30min

Orçamento da Defesa

Wayne Morse

Independente, Oregon

1953

22h26min

Exploração de petróleo

Ted Cruz

Republicano, Texas

2013

21h19min

Obamacare

Mas psitacismo, a performance do papagaio, tem relevância acadêmica. Sobre mecanismos sociais contrários ao Estado, o etnólogo Pierre Clastres observou que os Guayki, sem obedecer literalmente ao chefe, davam grande importância à sua fala. Não pelo dito, mas pelo longo desempenho, uma retórica do tempo em que importa a voz da chefia, não o significado das palavras.

Agora, com a racionalidade oficial pelo avesso, vale uma ideia do que Cory Booker disse, ou apenas performou, chocado por magna obscenidade. Se entendermos a palavra como ver sem mediações a cena de um tabu, é espantosamente obsceno o governo de Donald Trump. Ele é o primeiro a acumular o cargo com gestão de negócios. Em Doral, seu resort de 643 apartamentos, próximo a Mar-a-Lago, mistura golfe com levantamento de fundos, já em campanha para um hipotético terceiro mandato. O preço por cabeça de um jantar é US$ 1,3 milhão. Disse um dos convidados: "É tudo só negócios e dinheiro. A América é uma empresa".

Obscena é a exibição sem véus do poder mefistofélico do dinheiro, indiferente à turbulência e ao sofrimento causados por Trump, agente da destruição pelo caos, que mascara seus interesses privados. Aos investidores bilionários garante que "não é a hora de ficar apenas rico, e sim mais rico". Disso tomou conhecimento a imprensa enquanto ele jogava golfe com Yasir Al-Rumayyan, gestor do fundo soberano de US$ 925 bilhões da Arábia Saudita.

Tudo isso é público, a fala de Cory Booker não trouxe surpresas aos pares no Senado. Mas sua performance é um sobressalto crítico ao espírito do tempo em que loucura metódica não é apenas construção dramática. A expressão machadiana "química do tempo" daria talvez melhor conta do que se passa: uma assustadora e acelerada dissolução dos sentimentos morais.

 

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