Folha de S. Paulo
Na verborragia, importa a voz da chefia e o
desempenho, não o significado das palavras
O democrata Cory Booker, primeiro senador negro de New
Jersey, bateu o recorde mundial de duração de um discurso parlamentar, falando em pé na tribuna contra
Trump 25 horas ininterruptas, sem pausa para a toalete. Oposicionistas
insinuaram o uso de fralda, mas o fato é que ele superou o recorde do
republicano Strom Thurmond, supremacista branco da Carolina do Sul que, muitos anos
atrás, deblaterou por 24 horas contra a Lei dos Direitos Civis.
Em termos de energia física, essas façanhas evocam as maratonas de dança durante a Grande Depressão nos EUA, cujos participantes iam até a exaustão para ganhar alguns trocados. Foram dramatizadas em "A noite dos desesperados", filme célebre de Sidney Pollack (1969). Algo não tão estranho quanto a famosa epidemia de Estrasburgo (1518) em que as pessoas dançavam até a morte, mas extremo ainda assim.
Em extremismo vocal, os senadores
superam Fidel
Castro, quando falava seis horas a um público que se esbaldava em rum,
melancia e danças. Aparentemente ninguém escutava nada, mas há testemunha de
que, uma vez, quando tossiu, a multidão gritou em uníssono: "Que se cuide,
Fidel!". Já entre nós, é recente a opinião do ator Marco Nanini depois
de uma sessão da Câmara dos Deputados: "Aquilo é um caos, todos falam,
ninguém ouve!"
Senador |
Origem |
Ano |
Tempo
de discurso |
Contexto |
Cory Booker |
Democrata, Nova Jersey |
2025 |
25h5min |
Políticas de Trump e Musk |
Strom Thurmond |
Democrata, Carolina do Sul |
1957 |
24h18min |
Lei de Direitos Civis |
Alfonse D'Amato |
Republicano, Nova York |
1986 |
23h30min |
Orçamento da Defesa |
Wayne Morse |
Independente, Oregon |
1953 |
22h26min |
Exploração de petróleo |
Ted Cruz |
Republicano, Texas |
2013 |
21h19min |
Obamacare |
Mas psitacismo, a performance do papagaio,
tem relevância acadêmica. Sobre mecanismos sociais contrários ao Estado, o
etnólogo Pierre Clastres observou que os Guayki, sem obedecer literalmente ao
chefe, davam grande importância à sua fala. Não pelo dito, mas pelo longo
desempenho, uma retórica do tempo em que importa a voz da chefia, não o
significado das palavras.
Agora, com a racionalidade oficial pelo
avesso, vale uma ideia do que Cory Booker disse, ou apenas performou, chocado
por magna obscenidade. Se entendermos a palavra como ver sem mediações a cena
de um tabu, é espantosamente obsceno o governo de Donald Trump.
Ele é o primeiro a acumular o cargo com gestão de negócios. Em Doral, seu
resort de 643 apartamentos, próximo a Mar-a-Lago, mistura golfe com
levantamento de fundos, já em campanha para um hipotético terceiro mandato. O
preço por cabeça de um jantar é US$ 1,3 milhão. Disse um dos convidados:
"É tudo só negócios e dinheiro. A América é uma empresa".
Obscena é a exibição sem véus do poder
mefistofélico do dinheiro, indiferente à turbulência e ao sofrimento causados
por Trump, agente da destruição pelo caos, que mascara seus interesses
privados. Aos investidores bilionários garante que "não é a hora de ficar
apenas rico, e sim mais rico". Disso tomou conhecimento a imprensa
enquanto ele jogava golfe com Yasir Al-Rumayyan, gestor do fundo soberano de US$
925 bilhões da Arábia Saudita.
Tudo isso é público, a fala de Cory Booker
não trouxe surpresas aos pares no Senado. Mas sua performance é um sobressalto
crítico ao espírito do tempo em que loucura metódica não é apenas construção
dramática. A expressão machadiana "química do tempo" daria talvez
melhor conta do que se passa: uma assustadora e acelerada dissolução dos
sentimentos morais.
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