O Globo
‘Queima o que adoraste e adora o que
queimaste.’ Com tal instrução, na inauguração da Catedral de Reims, em 496, o
bispo São Remi batizou Clóvis, o rei dos francos, convertendo-o do paganismo ao
catolicismo. Falta uma catedral, e o santo é um impostor, mas a instrução foi
seguida: nos Estados Unidos,
no Brasil e
na Argentina,
liberais convictos aderem ao protecionismo de Donald Trump.
Ao curvar a espinha, tornam-se liberais-mercantilistas, um paradoxo
teratológico.
Jair Bolsonaro celebrou a bomba nuclear tarifária de Trump sob a alegação de que “protege seu país de um vírus socialista”. O vírus, fica implícito, circularia não apenas na China ou no Brasil, mas também em países como Suíça, Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Javier Milei, que se exibe como ultraliberal, não pronunciou qualquer crítica ao tarifaço, prometendo um “reajuste da regulamentação para que possamos cumprir os requisitos da proposta tarifária recíproca”.
Aqui, ali e acolá, arautos doutrinários do
liberalismo justificaram o retorno dos Estados Unidos a níveis de tarifas do
final do século XIX invocando “objetivos geopolíticos” e a “segurança nacional”
americanos. Queimam, sem corar, tudo o que adoravam.
A doutrina liberal nasceu em oposição à
política mercantilista, que buscava saldos comerciais positivos destinados à
acumulação de moeda. Segundo David Ricardo, um dos pais fundadores do
liberalismo, “sob um sistema de perfeito livre-comércio, cada país naturalmente
devota seu capital e trabalho àqueles empregos que lhe trazem mais benefícios.
Essa perseguição da vantagem individual é admiravelmente conectada com o bem
universal de todos” (1817).
De acordo com a teoria das vantagens
comparativas emanada do pensamento ricardiano, a melhor política nacional é a
remoção completa de tarifas, mesmo que unilateral. Frédéric Bastiat, economista
liberal francês, explicou que comércio significa “dependência recíproca”:
— Não podemos ser dependentes de um
estrangeiro sem que ele seja dependente de nós. De fato, é isso que constitui a
verdeira essência da sociedade. Cortar inter-relações naturais não é tornar-se
independente, mas isolar-se completamente.
Trump acredita no oposto disso — nutre-se de
crendices mercantilistas. Para ele, o comércio é um jogo de soma zero: o que um
ganha, o outro perde. Nas suas próprias palavras, os déficits comerciais
generalizados dos Estados Unidos provam que seu país é “pilhado, saqueado,
violado e extorquido por nações próximas e distantes” — e, mais, que o resto do
mundo sequestra à maior potência econômica global “uma oportunidade de
progredir”.
As tarifas, definidas em níveis proporcionais
aos déficits bilaterais, funcionariam como ferramentas para equilibrar o
intercâmbio com cada nação. Um mercantilista clássico almeja saldos positivos
no conjunto da balança comercial. Trump é um mercantilista iletrado que busca o
“sucesso” nas trocas com cada um dos parceiros, inclusive os mais irrelevantes.
A defesa incondicional do livre-comércio não
é um detalhe, mas um dos pilares estruturais do liberalismo, pois sustenta a
divisão internacional do trabalho. Os liberais-mercantilistas ajoelhados diante
do altar trumpiano inventaram uma versão patológica de sua doutrina que prega
uma mistura de ultranacionalismo econômico com cortes radicais de impostos e a
eliminação de regulamentações trabalhistas, sanitárias e ambientais. Dito de
outro modo, um faroeste econômico em que o Estado desempenha apenas funções de
repressão social. Note-se, de passagem, que um programa desse tipo requer, como
condição indispensável, a supressão das liberdades democráticas.
Bem antes de Ricardo, em 1742, David Hume
escreveu um ensaio intitulado “Sobre o ciúme do comércio”. Nele, qualificou
como “estreito” e “maligno” o ponto de vista de Trump:
— Nada é mais usual que enxergar o progresso
dos vizinhos com um olhar de suspeita, descrevendo todos os Estados comerciais
como rivais e supondo ser impossível que floresçam a não ser à sua expensa.
Em nome de Trump, e do temor irracional de um
imaginário “vírus socialista”, os liberais sem vergonha tornaram-se
mercantilistas.
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