segunda-feira, 14 de abril de 2025

Liberais e mercantilistas- Demétrio Magnoli

O Globo

‘Queima o que adoraste e adora o que queimaste.’ Com tal instrução, na inauguração da Catedral de Reims, em 496, o bispo São Remi batizou Clóvis, o rei dos francos, convertendo-o do paganismo ao catolicismo. Falta uma catedral, e o santo é um impostor, mas a instrução foi seguida: nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina, liberais convictos aderem ao protecionismo de Donald Trump. Ao curvar a espinha, tornam-se liberais-mercantilistas, um paradoxo teratológico.

Jair Bolsonaro celebrou a bomba nuclear tarifária de Trump sob a alegação de que “protege seu país de um vírus socialista”. O vírus, fica implícito, circularia não apenas na China ou no Brasil, mas também em países como SuíçaJapãoCoreia do Sul e Taiwan. Javier Milei, que se exibe como ultraliberal, não pronunciou qualquer crítica ao tarifaço, prometendo um “reajuste da regulamentação para que possamos cumprir os requisitos da proposta tarifária recíproca”.

Aqui, ali e acolá, arautos doutrinários do liberalismo justificaram o retorno dos Estados Unidos a níveis de tarifas do final do século XIX invocando “objetivos geopolíticos” e a “segurança nacional” americanos. Queimam, sem corar, tudo o que adoravam.

A doutrina liberal nasceu em oposição à política mercantilista, que buscava saldos comerciais positivos destinados à acumulação de moeda. Segundo David Ricardo, um dos pais fundadores do liberalismo, “sob um sistema de perfeito livre-comércio, cada país naturalmente devota seu capital e trabalho àqueles empregos que lhe trazem mais benefícios. Essa perseguição da vantagem individual é admiravelmente conectada com o bem universal de todos” (1817).

De acordo com a teoria das vantagens comparativas emanada do pensamento ricardiano, a melhor política nacional é a remoção completa de tarifas, mesmo que unilateral. Frédéric Bastiat, economista liberal francês, explicou que comércio significa “dependência recíproca”:

— Não podemos ser dependentes de um estrangeiro sem que ele seja dependente de nós. De fato, é isso que constitui a verdeira essência da sociedade. Cortar inter-relações naturais não é tornar-se independente, mas isolar-se completamente.

Trump acredita no oposto disso — nutre-se de crendices mercantilistas. Para ele, o comércio é um jogo de soma zero: o que um ganha, o outro perde. Nas suas próprias palavras, os déficits comerciais generalizados dos Estados Unidos provam que seu país é “pilhado, saqueado, violado e extorquido por nações próximas e distantes” — e, mais, que o resto do mundo sequestra à maior potência econômica global “uma oportunidade de progredir”.

As tarifas, definidas em níveis proporcionais aos déficits bilaterais, funcionariam como ferramentas para equilibrar o intercâmbio com cada nação. Um mercantilista clássico almeja saldos positivos no conjunto da balança comercial. Trump é um mercantilista iletrado que busca o “sucesso” nas trocas com cada um dos parceiros, inclusive os mais irrelevantes.

A defesa incondicional do livre-comércio não é um detalhe, mas um dos pilares estruturais do liberalismo, pois sustenta a divisão internacional do trabalho. Os liberais-mercantilistas ajoelhados diante do altar trumpiano inventaram uma versão patológica de sua doutrina que prega uma mistura de ultranacionalismo econômico com cortes radicais de impostos e a eliminação de regulamentações trabalhistas, sanitárias e ambientais. Dito de outro modo, um faroeste econômico em que o Estado desempenha apenas funções de repressão social. Note-se, de passagem, que um programa desse tipo requer, como condição indispensável, a supressão das liberdades democráticas.

Bem antes de Ricardo, em 1742, David Hume escreveu um ensaio intitulado “Sobre o ciúme do comércio”. Nele, qualificou como “estreito” e “maligno” o ponto de vista de Trump:

— Nada é mais usual que enxergar o progresso dos vizinhos com um olhar de suspeita, descrevendo todos os Estados comerciais como rivais e supondo ser impossível que floresçam a não ser à sua expensa.

Em nome de Trump, e do temor irracional de um imaginário “vírus socialista”, os liberais sem vergonha tornaram-se mercantilistas.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.