Por O Globo
Pontífice argentino aumentou punição contra
pedofilia, assinou primeira encíclica ambiental da História e criticou
isolamento do Vaticano
Eram 20h12 de 13 de março de 2013 quando o
argentino Jorge Mario Bergoglio apareceu na sacada central da Basílica de São
Pedro, provocando o grito da multidão que, uma hora antes, viu a fumaça branca
da Capela Sistina anunciar a eleição do novo líder da Igreja Católica.
Bergoglio, o Papa
Francisco, não demorou a mostrar ao mundo como era devoto de brincadeiras:
“Vocês sabem que o dever de um conclave é dar um bispo a Roma. Parece que meus
irmãos cardeais foram buscar-me quase até no fim do mundo.” E veio de Buenos
Aires o religioso que, nos 12 anos seguintes, agitou a Cúria levando aos
holofotes temas como a defesa do meio ambiente, a punição à corrupção no Vaticano e à
pedofilia, além de abrir espaço para a discussão da ordenação de mulheres e
homens casados. Francisco morreu hoje, aos 88 anos, por problemas
pulmonares.
— Caríssimos irmãos e irmãs, é com profunda tristeza que comunico o falecimento do nosso Santo Padre Francisco. Às 07h35 desta manhã (02h35 em Brasília), o Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai — anunciou o cardeal Kevin Farrell, Camerlengo da Câmara Apostólica, em um anúncio na Casa Santa Marta. — Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do senhor e da sua Igreja. Ele nos ensinou a viver os valores do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal, especialmente em favor dos mais pobres e marginalizados. Com imensa gratidão por seu exemplo de verdadeiro discípulo do Senhor Jesus, encomendamos a alma do Papa Francisco ao infinito amor misericordioso do Deus Uno e Trino.
A saúde de Francisco era motivo de
preocupação havia anos. Além de um episódio aos 21 anos, quando passou por uma
operação que extraiu parte de seu pulmão direito por uma grave pneumonia, o
Papa acumulava problemas no quadril, nas costas e tinha artrose nos joelhos, o
que reduziu sua mobilidade ao longo dos anos. Em julho de 2021, foi submetido a
uma cirurgia que retirou 33 cm de seu intestino grosso em razão de uma
diverticulite. Francisco chegou a admitir, em uma entrevista no final de 2022,
que havia assinado
uma carta de renúncia há uma década, caso sua saúde precária o impedisse de
desempenhar suas funções. Pouco tempo depois, em junho de 2023, foi submetido a
uma cirurgia que durou
três horas e terminou "sem complicações".
Francisco estava internado no Hospital
Agostino Gemelli, em Roma. Após ser diagnosticado com uma infecção
polibacteriana nas vias respiratórias na segunda-feira [17 de
fevereiro de 2025] e com uma pneumonia
nos dois pulmões dois dias depois, ele sofreu uma crise respiratória
asmática prolongada na manhã no sábado [22 de fevereiro de 2025] e teve de
receber oxigênio em altas taxas e fazer
uma transfusão de sangue.
Menos regras do poder
À frente da Igreja, Bergoglio foi, desde o
primeiro minuto, um pioneiro. Foi o primeiro Papa latino-americano, o primeiro
jesuíta e o primeiro a adotar o nome de Francisco. Os mais de 90 cardeais que o
elegeram, entre os 115 eleitores do conclave, confiaram ao argentino a tarefa
de combater os escândalos sexuais e os crimes financeiros na Igreja, além de
estancar a perda de fiéis no mundo inteiro, especialmente nas Américas.
Seis dias antes de ser eleito Papa, Bergoglio
arrancou elogios de outros cardeais em um pronunciamento de menos de quatro
minutos em uma Congregação Geral, quando criticou a Igreja “autorreferencial” e
“doente de narcisismo”.
— Bergoglio representava o ressentimento ao
Vaticano cada vez mais isolado do mundo católico — explica Francisco Borba,
coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP. — A própria escolha do nome
“Francisco”, em homenagem ao santo padroeiro dos pobres, mostrava que era um
homem que valorizava mais as orações e o amor ao próximo do que as regras do
poder.
Uma demonstração pública disso aconteceu no
dia 13 de março de 2023, quando Francisco completou dez anos de papado. Em uma
mensagem aos fiéis católicos, o Papa agradeceu pelo apoio ao redor do mundo e
pediu apenas uma coisa: orações. "Obrigado por terem me acompanhado com
suas orações. Por favor, continuem a fazê-lo", escreveu em uma rede
social.
Visões distintas
Mesmo antes de chegar ao trono de São Pedro,
o papado de Francisco já estava destinado a ser único. Isso porque, embora
tenha passado pelo tradicional rito de escolha de um Papa, o argentino assumiu
em uma condição que não era vista em séculos: com seu antecessor ainda vivo.
Com a renúncia de Bento XVI, a primeira desde
a Idade Média, o mundo ficou diante não apenas de uma Igreja com dois Papas,
mas também diante de dois Papas com visões diversas sobre a Igreja. O que
poderia ter sido um período turbulento, no entanto, foi marcado por uma
convivência sem grandes atritos até a morte
do Papa Emérito, em 31 de dezembro de 2022. Francisco presidiu o funeral e
chamou Bento de “amigo fiel” da Igreja.
Segundo o escritor e frade dominicano Frei
Betto, o argentino, visto como um cardeal moderado, chamou atenção pelo
discurso social progressista, atacando o “imperialismo do dinheiro” e
promovendo encontros para discutir os rumos da Igreja.
— O Papa Francisco incentivou os sínodos, as
assembleias de bispos, para democratizar a estrutura autoritária da Igreja —
explica. — Foi um contraste em relação aos 35 anos anteriores, nos pontificados
conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Com Bergoglio não havia tabu. Ele
levantou o tapete onde se escondiam escândalos como a pedofilia no clero e
levantou temas importantes, entre eles a discussão da sexualidade.
De acordo com Frei Betto, Francisco “caminhou
no fio da navalha” em algumas polêmicas e ocasionalmente foi forçado a recuar
em algumas frentes diante da oposição — minoritária, mas estridente — que
encontrou na Cúria. Quatro meses após assumir a Igreja, o Papa questionou, em
uma conversa com jornalistas: “Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa
vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la?”. Ainda assim, não permitiu
que padres abençoassem a união entre pessoas do mesmo sexo.
Papel feminino
O Papa criou uma comissão para discutir o
diaconato feminino, um pleito antigo na comunidade católica. Embora a proibição
do sacerdócio ainda esteja em vigor, Francisco mudou o Código de Direito
Canônico e autorizou as mulheres a ler textos durante a missa e a distribuição
da comunhão.
À época do Sínodo para a Amazônia, em 2019, a
ordenação de mulheres e de homens casados foi indicada por lideranças locais
como uma possível solução para evitar a perda de fiéis indígenas para igrejas
neopentecostais, cujo clero hoje é maior na floresta do que o da Igreja
Católica. A proposta, no entanto, teve um papel secundário nas discussões.
Prevaleceu o entendimento de que a autoridade moral é tão importante quanto a
conferida por uma batina.
“Na Amazônia, as mulheres — leigas e irmãs
religiosas — dirigem comunidades eclesiais inteiras. Dizer que não são
verdadeiramente líderes porque não são padres é clericanismo e falta de
respeito” escreveu em seu último livro, “Vamos sonhar juntos” (ed. Intrínseca),
lançado em dezembro de 2020.
Borba destaca que papas reformadores, caso de
Francisco, são atacados por mexer na estrutura de setores da Igreja
“acostumados em ter um lugar no poder”:
— Francisco enfrentou forte incompreensão,
pois falou sobre alguns temas que as pessoas não estavam acostumadas a ouvir ou
pensar. É o caso da opção pelos pobres. Por isso, foi chamado de comunista,
acusado de não seguir o Evangelho e atentar contra a dignidade eclesiástica —
explica. — O Papa foi acolhedor e misericordioso com os fiéis, mas muito rígido
com seus auxiliares diretos. Houve dificuldades para encontrar figuras
dispostas a reformar a Cúria. O combate à pedofilia, por exemplo, não foi
marcado apenas por acertos. Quanto mais se investigava, mais casos foram
encontrados, já que os escândalos foram encobertos por muitos anos.
Em junho de 2021, o Papa fez a revisão mais
abrangente do Código de Direito Canônico em quatro décadas, incluindo um artigo
que contempla regras contra a pedofilia, em especial crimes de abusos contra
menores cometidos por padres. Segundo o texto, o clérigo que viola o mandamento
contra o adultério “ou força alguém a cometer ou submeter-se a atos sexuais
deve ser punido”, “não excluindo a demissão do estado clerical se o caso assim
o justificar”. Também foram incluídos novos crimes, como aliciamento de menores
ou adultos vulneráveis para abuso sexual e posse de pornografia infantil.
Ainda assim, Borba considera que o Pontífice
soube aumentar o “radar da Igreja”, que se tornou mais protetora com as
minorias e os excluídos. O Papa discursou diversas vezes sobre o drama dos
refugiados e visitou presídios em diversos países, do México e Chile à própria
Itália.
Bergoglio, que se definia como um “casalingo”
(“caseiro”, em italiano) antes de se tornar Papa, visitou mais de 50 países em
seu pontificado. Foi o primeiro líder da Igreja Católica a desembarcar no
Iraque, uma nação muçulmana de maioria xiita. Encontrou-se também com o
patriarca ortodoxo russo Cirilo I, em 2016, quase mil anos após o cisma entre a
Igreja do Oriente e Roma. Em Cuba, onde esteve duas vezes, foi aplaudido por
mediar o descongelamento das relações diplomáticas entre Havana e Washington —
os então presidentes Raúl Castro e Barack Obama o agradeceram publicamente por
seu empenho. Após o início da Guerra na Ucrânia, Francisco também foi uma das
vozes mais frequentes a condenar as agressões e a pedir uma saída pela paz.
Ciência e religião
Em outro front, Francisco “casou” ciência e
religião na encíclica Laudato Si, a primeira da História da Igreja voltada para
o meio ambiente. O documento foi divulgado em abril de 2015, seis meses antes
de mais de 190 países esboçarem, na Conferência do Clima (COP-21), o Acordo de
Paris, o mais ambicioso plano do mundo até então para conter o aquecimento
global.
— A Laudato Si tornou-se conhecida como a
“encíclica verde”, mas Francisco sempre disse que era um documento social. O
seu texto associou as mazelas do meio ambiente à miséria humana.
Amante de tango e música clássica, fã do time
argentino San Lorenzo, leitor do russo Fiódor Dostoiévski e do compatriota
Jorge Luis Borges, Bergoglio revelou em seu último livro, escrito na pandemia,
que sofreu três “Covids pessoais”, momentos definidores de sua personalidade.
O primeiro foi a doença pulmonar que quase o
matou aos 21 anos. O segundo foi um exílio voluntário na Alemanha nos anos de
1980. Por último, o período em uma residência jesuíta em Córdoba, na Argentina, entre
1990 e 1992. Lá, leu todos os 37 volumes de “História dos papas”, do
historiador alemão Ludwig von Pastor.
“Poderia ter lido um romance ou algo mais interessante. Mas hoje me pergunto por que motivo Deus teria me inspirado a ler esse livro naquela ocasião. É como se o Senhor estivesse me dando uma vacina. Uma vez que se conhece a história dos papas, não há muito que aconteça na Corte do Vaticano e na Igreja de hoje que pode lhe surpreender. Foi muito útil pra mim!”, escreveu.
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