domingo, 20 de abril de 2025

O (in)concebível – Dorrit Harazim

O Globo

Segundo pesquisa da revista Nature com 1.600 cientistas nos EUA, 75% declararam estudar a possibilidade de sair do país

Semanas atrás, três professores da Universidade Yale — uma das oito instituições privadas que compõem a estelar Ivy League americana — tornaram pública sua mudança para a Munk School of Global Affairs and Public Policy, de Toronto, no Canadá. Em tempos normais, a notícia nem notícia seria, dada a mobilidade inerente ao mundo acadêmico. Só que o filósofo Jason Stanley, o historiador Timothy Snyder e sua mulher Marci Shore, professora de História intelectual europeia, não são nomes quaisquer.

Stanley, autor de seis livros — incluindo “Como funciona o fascismo” —, centra sua obra na manipulação emocional da propaganda fascista e nos riscos de uma sociedade ignorar sinais precoces de autoritarismo. Judeu, pai de dois filhos multirraciais (foi casado com a cardiologista negra Njeri K. Thande), ele já sofreu inúmeras ameaças de morte digitais recentes. Por isso decidiu empacotar seu saber e filhos para além do ambiente político opressor instaurado por Donald Trump.

— O que é um país? — indaga ele, com resposta pronta: — É a forma pela qual seu povo escolheu se governar. Os Estados Unidos existem porque o povo americano elege aqueles que devem fazer e executar as leis... Mas a lógica atual é a da destruição.

Seu colega Snyder é autor, entre outros, do best-seller “Sobre a tirania —Vinte lições do século XX para o presente”. Estudioso da história da Europa Central, União Soviética e Holocausto, Snyder pesquisa o elo que brota no fascismo histórico e desemboca nos tempos atuais. Em todas as obras, ele enfatiza a responsabilidade pessoal e coletiva na construção ou ruína da democracia. Como seu colega de Yale e agora Toronto, tem 55 anos, mas é nascido em família quacre do Meio-Oeste americano. A mãe de seus dois filhos também é de Ohio, e a decisão de se mudar para o Canadá, tomada ainda antes da eleição de Trump, é mais nuançada. Por isso acabou exigindo dele um longo esclarecimento público. Alguns trechos do que publicou no jornal da universidade:

— Não saí de Yale em consequência do que Trump está fazendo. Também não estou fugindo de nada. Não mudei devido a ameaças, denúncias, tentativas de violência aleatória por parte de pessoas baixas em cargos altos, nem por alertas de amigos etc. Mas, mesmo que fosse esse o caso, qual o problema de pessoas menos privilegiadas do que eu (e elas são muitas) optarem por sair do país? Alguns já se foram. Outros mais sairão. Devemos apoiá-los e aprender com eles. A função de uma universidade é criar condições de liberdade, e é em função disso que são alvo prioritário de tiranos. Já é possível ver nos Estados Unidos a tentativa, por parte do governo, de alimentar o conformismo e o denuncismo com o propósito de disseminar medo e imbecilidade. 

A partida dos três professores de Yale aponta para uma realidade bem mais alarmante. Segundo pesquisa realizada pela revista Nature com 1.600 cientistas em atividade acadêmica nos Estados Unidos, 75% declararam estudar a possibilidade de sair do país domado por Trump. O corte nas verbas para pesquisa, as tentativas de silenciamento da contradita e a repressão à imigração foram citados como principais motivos.

Uma das ignomínias dos editos da Casa Branca está em dar roupagem edificante ao autoritarismo rábido das deportações de estudantes e professores: o combate ao antissemitismo. Snyder escreveu dois livros sobre o Holocausto e ensina a história do antissemitismo há décadas.

— O governo atual não está combatendo o antissemitismo, está fomentando-o — sustenta ele.

Não perceber a falácia permite que o termo se transforme em instrumento político e que as universidades sejam destruídas em nome dessa aberração. Cabe lembrar que nenhum governo americano do pós-guerra teve tantos amigos da extrema direita mundial, da AfD alemã ao camarada Putin.

Sempre haverá quem manifeste incômodo com o uso da palavra “fascismo” no contexto da democracia americana. Mas o fascismo pode assumir roupagens diversas, como alertou o vice-presidente de Franklin Roosevelt, Henry Wallace, em ensaio publicado no auge da Segunda Guerra, em 1943.

— A luta mundial e secular entre fascismo e democracia não cessará quando a luta terminar na Alemanha e no Japão — escreve.

No texto,Wallace cunha a expressão “fascismo americanizado” e explica que o pensar fascista se adapta a momentos e sociedades diversas. Seria fácil identificá-los:

— Eles se proclamam superpatriotas, mas estão dispostos a destruir as liberdades constitucionais. Clamam por liberdade de mercado, mas são porta-vozes de interesses e monopólio. Seu objetivo final é a captura do poder político por meio do uso do poder do Estado.

Em outras palavras: não existe espaço para inocência num mundo operado por Trump.

 

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