O Globo
Segundo pesquisa da revista Nature com 1.600
cientistas nos EUA, 75% declararam estudar a possibilidade de sair do país
Semanas atrás, três professores da
Universidade Yale — uma das oito instituições privadas que compõem a estelar
Ivy League americana — tornaram pública sua mudança para a Munk School of
Global Affairs and Public Policy, de Toronto, no
Canadá. Em tempos normais, a notícia nem notícia seria, dada a mobilidade
inerente ao mundo acadêmico. Só que o filósofo Jason Stanley, o historiador
Timothy Snyder e sua mulher Marci Shore, professora de História intelectual
europeia, não são nomes quaisquer.
Stanley, autor de seis livros — incluindo “Como funciona o fascismo” —, centra sua obra na manipulação emocional da propaganda fascista e nos riscos de uma sociedade ignorar sinais precoces de autoritarismo. Judeu, pai de dois filhos multirraciais (foi casado com a cardiologista negra Njeri K. Thande), ele já sofreu inúmeras ameaças de morte digitais recentes. Por isso decidiu empacotar seu saber e filhos para além do ambiente político opressor instaurado por Donald Trump.
— O que é um país? — indaga ele, com resposta
pronta: — É a forma pela qual seu povo escolheu se governar. Os Estados Unidos existem
porque o povo americano elege aqueles que devem fazer e executar as leis... Mas
a lógica atual é a da destruição.
Seu colega Snyder é autor, entre outros, do
best-seller “Sobre a tirania —Vinte lições do século XX para o presente”.
Estudioso da história da Europa Central, União Soviética e Holocausto, Snyder
pesquisa o elo que brota no fascismo histórico e desemboca nos tempos atuais.
Em todas as obras, ele enfatiza a responsabilidade pessoal e coletiva na
construção ou ruína da democracia. Como seu colega de Yale e agora Toronto, tem
55 anos, mas é nascido em família quacre do Meio-Oeste americano. A mãe de seus
dois filhos também é de Ohio, e a decisão de se mudar para o Canadá, tomada
ainda antes da eleição de Trump, é mais nuançada. Por isso acabou exigindo dele
um longo esclarecimento público. Alguns trechos do que publicou no jornal da
universidade:
— Não saí de Yale em consequência do que
Trump está fazendo. Também não estou fugindo de nada. Não mudei devido a
ameaças, denúncias, tentativas de violência aleatória por parte de pessoas
baixas em cargos altos, nem por alertas de amigos etc. Mas, mesmo que fosse
esse o caso, qual o problema de pessoas menos privilegiadas do que eu (e elas
são muitas) optarem por sair do país? Alguns já se foram. Outros mais sairão.
Devemos apoiá-los e aprender com eles. A função de uma universidade é criar
condições de liberdade, e é em função disso que são alvo prioritário de
tiranos. Já é possível ver nos Estados Unidos a tentativa, por parte do
governo, de alimentar o conformismo e o denuncismo com o propósito de
disseminar medo e imbecilidade.
A partida dos três professores de Yale aponta
para uma realidade bem mais alarmante. Segundo pesquisa realizada pela revista
Nature com 1.600 cientistas em atividade acadêmica nos Estados Unidos, 75%
declararam estudar a possibilidade de sair do país domado por Trump. O corte
nas verbas para pesquisa, as tentativas de silenciamento da contradita e a
repressão à imigração foram citados como principais motivos.
Uma das ignomínias dos editos da Casa Branca
está em dar roupagem edificante ao autoritarismo rábido das deportações de
estudantes e professores: o combate ao antissemitismo. Snyder escreveu dois
livros sobre o Holocausto e ensina a história do antissemitismo há décadas.
— O governo atual não está combatendo o
antissemitismo, está fomentando-o — sustenta ele.
Não perceber a falácia permite que o termo se
transforme em instrumento político e que as universidades sejam destruídas em
nome dessa aberração. Cabe lembrar que nenhum governo americano do pós-guerra
teve tantos amigos da extrema direita mundial, da AfD alemã ao camarada Putin.
Sempre haverá quem manifeste incômodo com o
uso da palavra “fascismo” no contexto da democracia americana. Mas o fascismo
pode assumir roupagens diversas, como alertou o vice-presidente de Franklin
Roosevelt, Henry Wallace, em ensaio publicado no auge da Segunda Guerra, em
1943.
— A luta mundial e secular entre fascismo e
democracia não cessará quando a luta terminar na Alemanha e no Japão — escreve.
No texto,Wallace cunha a expressão “fascismo
americanizado” e explica que o pensar fascista se adapta a momentos e
sociedades diversas. Seria fácil identificá-los:
— Eles se proclamam superpatriotas, mas estão
dispostos a destruir as liberdades constitucionais. Clamam por liberdade de
mercado, mas são porta-vozes de interesses e monopólio. Seu objetivo final é a
captura do poder político por meio do uso do poder do Estado.
Em outras palavras: não existe espaço para
inocência num mundo operado por Trump.
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