Folha de S. Paulo
Ela não poderá ser uma espectadora passiva do
que virá; terá que lutar por seu espaço
Na quarta-feira passada nasceu minha filha
mais nova. Talvez seja o caos global do governo Trump; talvez sejam os meus 40
anos se aproximando; o fato é que só nesta, que é minha filha número 4, me dei
conta de como o mundo que a espera é diferente daquele em que eu cresci.
Na minha adolescência nos anos
1990 e início dos anos 2000,
parecia haver consenso. E não era para menos: por um breve período de uns 20
anos, os EUA não tinham quem lhe fizesse frente. A Rússia parecia
se democratizar e entrar na ordem liberal e da China se
esperava que, conforme enriquecesse, também se liberalizasse.
A globalização era inevitável. A democracia
liberal era o modelo vencedor. Com ela vinha um pacote de valores universais:
ciência, direitos humanos, secularismo, tolerância, igualdade. Com a internet
nascente, as divergências se resolveriam pela abundância da informação. O único
espaço para discussão seria a fronteira da ciência, domínio de especialistas, a
quem caberia cada vez mais o governo do mundo. Isso era não apenas justo e
eficiente, como inevitável.
Hoje o quadro se inverteu. Vivemos a desglobalização
econômica, a corrosão
democrática, a ascensão de conservadorismos e fundamentalismos, a emergência
ambiental —embora nos impacte diretamente— tratada com ceticismo.
A inteligência
artificial ameaça o trabalho intelectual. E o custo de vida, a
sobrecarga mental e a escassez de tempo empurram as taxas de fecundidade para
os níveis mais baixos da história.
A revolta contra aquela ordem veio de dentro das próprias democracias. A
liberdade de expressão somada à revolução na tecnologia de comunicação virou o
velho mundo de cabeça para baixo. O sonho da conexão global nos levou à divisão
interna. As redes
sociais uniram pessoas por afinidades e as isolaram em bolhas. Em vez
de um consenso iluminado por especialistas, tivemos a multiplicação de vozes e
de verdades selecionadas sob medida para os interesses e identidades de cada
um.
O otimismo que hoje se projeta nos anos 1990, no entanto, não necessariamente
era sentido por todos. A ideia de progresso e valores universais era a ilusão
criada por uma elite cultural que detinha o monopólio da voz. Para o meu eu
adolescente, a promessa de uma vida de especialista dentro da engrenagem
tecnocrática inspirava mais tédio e ansiedade do que esperança. Faltava algo.
Um elemento fundamental da vida humana —e, mais especificamente, da política—
tinha quase desaparecido: o conflito. Havia eficiência demais e significado de
menos.
Nesse novo mundo, minha filha conseguirá ver valor em algo fora do apelo cada
vez mais irresistível das telas? E mesmo se tiver interesses, terá emprego?
Seus direitos como mulher estarão garantidos? Não sei dizer, e isso também traz
uma boa dose de ansiedade, embora não de tédio. Sei que ela não poderá ser uma
espectadora passiva do que virá; terá que lutar por seu espaço.
Não há o que lamentar. O mundo que minha filha encontrará é mais incerto e, por
isso mesmo, mais aberto aos indivíduos. Capacidade de pensar com autonomia e
criatividade para agir sem um caminho pré-traçado serão virtudes mais
necessárias do que qualquer conteúdo específico. É isso que espero poder
ensinar a ela.
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