Valor Econômico
O estrago econômico tende a acelerar a
imposição de freios. Mas até que as restrições finalmente se imponham, os danos
à economia e à reputação dos EUA já terão sido causados
Os mercados financeiros reagiram, de forma
bastante compreensível, de maneira negativa ao “tarifaço” anunciado pelo
presidente Donald Trump no chamado “Dia da Libertação”, em 2 de abril. A
decisão representa um nível de protecionismo comercial nos Estados Unidos não
visto desde a virada do século XIX para o XX, com potencial para mergulhar o
país em uma recessão e reduzir o crescimento global.
Embora a intensidade do anúncio tenha surpreendido, sua direção já estava claramente sinalizada: Trump fez campanha prometendo mais tarifas, como parte de uma política nacional de reindustrialização, e defende essa agenda desde os anos 1980. Economistas, empresas e investidores podem não concordar com a decisão, mas não se pode acusar o presidente de estelionato eleitoral.
A maior surpresa do governo, no entanto, está
em outro campo: um teste direto ao sistema de freios e contrapesos (“checks and
balances”), que estrutura o arranjo institucional da democracia americana. E
aqui há uma boa e uma má notícia. A boa notícia é que é prematuro decretar a
falência desse sistema. A má é que, mesmo que ele sobreviva ao teste, o grau de
confiança nos Estados Unidos, tanto no plano diplomático quanto no setor
privado, pode sofrer uma queda estrutural, gerando custos econômicos e políticos
difíceis de mensurar.
A lista de medidas que tensionam as
instituições, muitas vezes por meios juridicamente duvidosos, é extensa. Vai
desde o uso da Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (IEEPA)
para implementar tarifas, normalmente reservada a períodos de guerra, até o
desmonte de burocracias federais que, em princípio, exigiria aprovação do
Congresso. Inclui ainda a recusa em cumprir decisões judiciais sobre a condução
de deportações, a intimidação de escritórios de advocacia que atuam contra
interesses do governo e pressões sobre universidades renomadas para alterarem
seus currículos e políticas de contratação. E na última semana, Trump levantou
dúvidas sobre a possibilidade de demitir o presidente do Banco Central
americano, Jerome Powell - uma ação juridicamente muito controversa.
Essas investidas ocorrem em meio ao silêncio
do Congresso, da maioria das lideranças do setor privado e de um Judiciário que
responde lentamente. A impressão que se forma é a de que o presidente Trump age
sem limitações institucionais ou políticas, minando o Estado de Direito. Mas
será mesmo?
A história americana tem vários episódios em
que suas instituições e o Estado de Direito foram colocados à prova. Na década
de 1950, durante o macarthismo, o senador Joseph McCarthy liderou uma cruzada
contra supostos comunistas no governo, nas Forças Armadas e em Hollywood, com
abusos de poder, perseguições políticas e violações do devido processo legal.
Nos anos 1970, o escândalo de Watergate revelou ações ilegais orquestradas pelo
governo Richard Nixon para espionar adversários, obstruir a Justiça e usar
agências federais contra opositores, o que levou à sua renúncia.
Na década de 1830, o presidente Andrew
Jackson enfraqueceu o Segundo Banco dos Estados Unidos, então equivalente ao
banco central, retirando fundos federais sem autorização do Congresso e
ignorando decisões judiciais. Isso resultou no Pânico de 1837 e em uma grave
recessão. Em 1937, frustrado com decisões da Suprema Corte, que derrubavam suas
leis do New Deal, Franklin D. Roosevelt propôs expandir o número de juízes da
Corte para enfraquecer sua independência. A proposta fracassou, mas em parte
porque Roosevelt acabou tendo sucesso na expansão do poder do Executivo.
Simples fato de haver debate sobre o dólar
como moeda de reserva já evidencia a gravidade da crise de credibilidade
Esses episódios mostram que democracias são
sistemas dinâmicos, sujeitos a momentos de tensão institucional. Alguns testes
foram superados rapidamente, como o de Watergate; outros deixaram marcas mais
duradouras, como o caso Jackson. Mas, historicamente, o sistema tende a se
acomodar, ainda que lentamente.
O governo Trump parece se situar entre esses
dois extremos. Sua eleição contou com apoio de uma base republicana que
desconfia das instituições que ele ataca e apoia medidas como deportações em
massa. Isso lhe dá respaldo popular na base republicana e o torna pouco
propenso a recuar no curto prazo.
Entretanto, seu calcanhar de Aquiles é a
economia. Há grande possibilidade de uma recessão e os consumidores certamente
sentirão os efeitos de preços mais altos. Trump já vem perdendo apoio entre os
eleitores independentes - sua aprovação caiu de 49% para 45% em dois meses - e
é improvável que o setor privado permaneça silencioso caso a recessão se
concretize. Ao mesmo tempo, os questionamentos jurídicos se intensificam não
apenas na área da imigração, mas também sobre o uso da IEEPA para impor
tarifas. Pode surgir resistência dentro do próprio Partido Republicano,
especialmente se a perspectiva de derrota nas eleições legislativas de 2026 se
tornar concreta. Mas esse tipo de reação ainda deve demorar a se manifestar.
O ponto é que o estrago econômico tende a
acelerar a imposição de freios. Desmontes de instituições costumam ocorrer em
contextos de liderança altamente popular e sustentada por longos períodos, o
que não deve ser o caso desse governo.
A má notícia é que, até que as restrições
finalmente se imponham, os danos à economia e à reputação dos EUA como destino
seguro para investimentos e alianças diplomáticas já terão sido causados.
Países começarão a enxergar os Estados Unidos como um parceiro mais arriscado e
buscarão alternativas para diversificar suas relações. Isso pode se refletir na
realocação de capital e em novos acordos comerciais. O tratado entre União
Europeia e Mercosul, por exemplo, é dado como certo. Ainda não há uma alternativa
viável ao dólar como moeda de reserva global, mas o simples fato de esse papel
estar sendo debatido já evidencia a gravidade da crise de credibilidade.
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