Folha de S. Paulo
Déboras se ofereceram, com Bíblia e batom, à
engrenagem que faria o golpe parecer legítimo
Nos últimos meses, setores bolsonaristas têm
tentado transformar os sediciosos do 8 de
Janeiro em mártires da liberdade. O caso mais notório é o da
cabeleireira Débora, condenada a 14 anos de prisão por participar da invasão da
praça dos Três Poderes. "Ela só escreveu ‘Perdeu, mané’ com um
batom", diz o deputado Nikolas Ferreira, que chegou a compará-la a Rosa
Parks, a moça do Alabama que se recusou a ceder o lugar no ônibus por dignidade
e virou símbolo da luta pelos direitos civis nos EUA.
A comparação, para além do insulto histórico,
revela algo mais profundo: uma operação de limpeza moral que tenta apresentar
os golpistas como "pessoas comuns" injustamente perseguidas por um
Estado tirânico.
É aqui que a filósofa Hannah Arendt oferece uma chave precisa para pensar o mal na modernidade. Quando Adolf Eichmann, funcionário-padrão da burocracia nazista, foi capturado e julgado em Jerusalém, em 1961, Arendt cobriu o julgamento como enviada da The New Yorker e ficou impressionada: ele não parecia um monstro, nem um sádico, nem um fanático. Parecia apenas... um homem comum.
Eichmann era medíocre, burocrático, vaidoso
em sua obediência às regras e incapaz de refletir eticamente sobre os próprios
atos. Isso levou Arendt a formular a tese da "banalidade do mal" —não
no sentido de inofensivo, mas porque pode ser cometido por pessoas comuns, sem
intenções malignas, sem ódio e até sem crueldade, apenas por conformismo,
carreirismo, covardia moral ou irreflexão.
Arendt afirma que o mal radical não está
necessariamente na intenção destrutiva, mas na suspensão do pensamento. Para
ela, pensar é julgar, é colocar-se no lugar do outro, é aplicar critérios
morais. O homem comum de um sistema ou movimento autoritário abdica de pensar
—e, assim, abdica da responsabilidade.
Eichmann é banal porque é fácil ser Eichmann.
O mal deixa de ser algo que vem de indivíduos monstruosos e passa a ser uma
possibilidade concreta quando se cultiva a obediência cega, o conformismo, o
anti-intelectualismo e o desprezo pelo julgamento ético.
Débora não é um monstro. Nem é Bolsonaro,
Braga Netto ou Mário Fernandes. Não planejou o golpe, não escreveu seus
roteiros. Mas estava lá —e sua presença não foi decorativa. A mulher exaltada
como símbolo de injustiça por setores bolsonaristas pode muito bem ser uma
pessoa comum: uma mãe de filhos, uma cidadã religiosa, uma trabalhadora. Seu
gesto —trivial e "lavável"— fez parte de uma encenação cuidadosamente
orquestrada para legitimar uma intervenção militar. A questão aqui não é a
dosimetria da pena —talvez 14 anos seja excessivo. Mas trata-se de reconhecer
que não se trata de inocência.
Débora, a velhinha da Bíblia e outras mães de
família que deixaram seus filhos para acampar diante de quartéis não foram
vítimas ingênuas. Foram peças fundamentais de um projeto autoritário: sem a
"pessoa comum" para dar rosto humano ao levante, não haveria
narrativa de povo oprimido nem ilusão de resistência patriótica.
Não estavam no topo da hierarquia golpista,
mas justificavam simbolicamente todo o sangue que se derramaria caso o golpe
triunfasse. São responsáveis —não porque pensaram o golpe, mas porque se
ofereceram à engrenagem que o faria parecer legítimo. Débora não precisava
saber de todos os detalhes do plano —bastava estar ali, no lugar certo, na hora
certa, fazendo o que se esperava dela.
Arendt ajuda a entender isso. Mas o
bolsonarismo produziu dois tipos ainda mais específicos.
O "inocente útil" —figura
consagrada desde a Guerra Fria— é aquele que, mesmo sem plena consciência,
empresta sua presença a um projeto que não compreende. Já o "idiota
motivado" —conceito que venho usando desde 2013— está um degrau acima: não
apenas coopera mas se converte. Sua ignorância é mobilizada por causas
simplificadas, narrativas morais e senso de missão. Sente-se parte de algo
maior —e por isso atua com entusiasmo, sem se dar conta de que é apenas massa
emocional de um projeto golpista.
Essas figuras, supostamente inofensivas,
oferecem densidade humana a causas autoritárias. Se o plano golpista tivesse
funcionado, haveria assassinatos, perseguições, cassações, prisões —como
acontece em toda ruptura autoritária. Déboras não precisariam apertar gatilhos
nem assinar decretos. Teriam feito sua parte: legitimar, com sua presença e seu
gesto, a encenação do "povo contra as instituições".
Como ensinou Arendt, o mal nem sempre se veste de ódio. Às vezes, basta uma bandeira, uma oração —e uma convicção sem pensamento.
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