domingo, 13 de abril de 2025

Sorry, periferia - Bernardo Mello Franco

O Globo

O juiz Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield assinou milhares de sentenças, mas nunca existiu. Era invenção de José Eduardo Franco dos Reis, que nasceu no interior paulista, falsificou os documentos e mentiu a identidade por mais de 40 anos.

A história do magistrado caipira que queria ser lorde inglês impressiona, mas não chega a ser original. Antes de sua mãe dar à luz na pequena Águas da Prata, os cariocas já haviam sido apresentados a Jeff Thomas, o mais fleumático dos colunistas nativos.

Britânico de Paraú, no interior do Rio Grande do Norte, Francisco de Assis Veras diz ter sido vítima de um “acidente geográfico”. “Deveria ter nascido em London, mas a cegonha errou e me deixou lá”, explica.

Depois de passar por Natal, que prefere chamar de Christmas City, ele se mudou para o Rio em 1955. Impressionado com a profusão de colunas sobre o café society, pediu emprego no extinto A Vanguarda, que já havia revelado Ibrahim Sued.

“O dono do jornal disse que Francisco de Assis não era nome de cronista social. Vi o letreiro da Biblioteca Thomas Jefferson e voltei no dia seguinte como Jeff Thomas”, recorda. “Com poucos dias de coluna, escrevi meu primeiro gossip: o cardeal Dom Jaime Câmara bebeu uísque no apartamento de Jorginho Guinle”, orgulha-se.

Alheio ao calor dos trópicos, o anglo-potiguar se notabilizou por desfilar de colete, lenço de seda e chapéu gelot. “Um lorde pode perder tudo, menos a pose”, ensina. Numa das viagens à ilha, ele alcançou a glória ao descolar um convite para o torneio de polo de Windsor. “Foi lá que o príncipe Charles, hoje Rei Charles III, me ensinou o truque de botar um strawberry na champanhota”, garante.

Fascinado pela realeza, Jeff jura ter visto o fantasma da rainha Vitória vagando pelos corredores do Palácio de Buckingham. Quando chegar sua vez, o plano já está traçado. “Quero que joguem minhas cinzas no Rio Tâmisa”, avisa o colunista a serviço de Sua Majestade.

Eterno candidato à Academia Brasileira de Letras, o colunista sumiu dos jornais, mas não parou de escrever. Promete lançar o 31º book até o fim do ano. Em todas as obras, republica um texto em que o imortal Austregésilo de Athayde, ex-colega de Diário da Noite, elogia sua “vocação de homo britannicus”.

Apesar da longa carreira dedicada a cobrir cocktails e celebrations, ele diz que jamais se deslumbrou com o mundo dos grã-finos. “O high society é muito venenoso”, confidencia.

Ao contrário do juiz paulista, ele nunca praticou falsidade ideológica. Foi ao cartório e incluiu o pseudônimo nos documentos, a exemplo de artistas e políticos que incorporaram seus apelidos. Elegante, Jeff evita falar muito sobre o magistrado com sete nomes inventados. “Ele deve ser muito esperto. Vai acabar no Guinness Book”, desconversa.

Na quinta-feira, o velho homem de imprensa vestiu camisa e colete amarelo-ovo para o footing diário em Copacabana. Aos 92 anos, ele se disse o último sobrevivente do colunismo social dos golden years. “Os outros morreram ou desapareceram, combinado? Thank you!”, despediu-se.

 

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