Folha de S. Paulo
Ninguém ousa investir em
um contexto tão imprevisível, e o amadorismo com que tudo é feito cobra um
preço
Ninguém sabe o que virá
neste "Dia
da Libertação", ou seja, o pacotaço tarifário de Trump a
ser anunciado nesta quarta-feira. Provavelmente nem ele. O Brasil estará no
meio? Pode ser. Pode ser tudo um grande blefe que resulte em uma ou outra
tarifa simbólica? Também pode.
Tudo indica, contudo, que as tarifas não sejam mero blefe ou estratégia de negociação, e sim uma real política econômica, que cumpre dois objetivos. O primeiro objetivo das tarifas é aumentar a arrecadação federal, que precisará ser compensada dados os enormes cortes de impostos prometidos por Trump. Peter Navarro, o assessor de comércio e indústria, alega que as tarifas sobre automóveis vão arrecadar US$ 100 bilhões por ano e as restantes US$ 600 bilhões. Sem elas, o governo cairá no abismo fiscal. O segundo objetivo é gerar empregos na indústria americana, reduzindo importações e estimulando a produção dentro dos EUA.
Um objetivo conflitua com
o outro. Se a indústria americana substituir os bens antes importados, isso
reduzirá a importação, e a arrecadação das tarifas irá cair. De resto,
americanos e cidadãos de outros países enfrentarão preços mais altos e menor
crescimento. O banco Goldman Sachs aumentou a probabilidade de uma recessão
americana nos próximos 12 meses de 20% para 35%. A confusão e o amadorismo com
que tudo no governo é feito também cobram um preço. Ninguém ousa investir num
contexto tão imprevisível.
Quem dera fossem só as
tarifas. Trump diz querer transformar o Canadá em
estado americano. Voltou a sugerir que pode usar força militar contra a
Dinamarca para anexar a Groenlândia.
Aí sim só pode ser blefe; mesmo assim, corrói as relações. Seus assessores
chamam a Europa de
"aproveitadora" e "patética" num chat vazado por pura
incompetência. Como manter laços com um presidente assim?
A vitória de Trump
parecia uma bênção para a direita do mundo todo, inclusive a brasileira. Agora
já não é tão simples. O governo está tão caótico e tão desnecessariamente
hostil que causa embaraço em seus aliados internacionais. Se o presidente
americano taxa suas empresas e insulta seu país, a proximidade com ele fica
tóxica. Isso já está acontecendo no Canadá e deve acontecer também nas direitas
nacionalistas europeias. O nacionalismo americano —quem diria!— não se alinha
com os nacionalismos de outros países.
Uma coisa é verdade: os
EUA não têm mais a hegemonia global inconteste como tiveram nos anos 90 e 00.
Recolocar-se no mundo de outra maneira —inclusive exigindo maior presença das
potências europeias— é necessário.
Os EUA poderiam ajudar a
fortalecer instituições e regras internacionais, que são a base da globalização
que garante a prosperidade e a preeminência americanas. Em vez disso, Trump
desdenha aliados, rasga acordos e tenta arrancar vantagens na marra, como se
isso não afetasse a disposição futura do resto do mundo de cooperar com os EUA.
Você pode fugir da
realidade, mas não das consequências de fugir da realidade. A economia pagará
um preço. Mas não vai parar. Novos caminhos serão abertos —China, Coreia e
Japão voltaram a falar num acordo comercial. O Brasil também busca novos
mercados. Quando os EUA voltarem ao jogo da globalização, encontrarão um mundo
que depende menos deles. Ao tentar agarrar os frutos que restam da antiga
hegemonia, Trump a verá escorrer-lhe pelas mãos.
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