O Globo
O caminho de sua afirmação é longo. Há pouco
mais de um século, o trabalho escravo ainda era tolerado no Brasil
Uma anedota famosa entre juristas de Mato
Grosso ilustra a importância de conhecer a realidade local ao aplicar o
Direito. Durante uma audiência, um juiz perguntava a um réu da fronteira com o
Paraguai se ele havia ingerido bebida alcoólica antes dos fatos em exame. O
homem simples respondeu: “Tomei umas cinco ou seis cuias de tereré”. O
magistrado, que não conhecia o costume local, ditou ao secretário que o réu
estava completamente embriagado. Mas o tereré era apenas um chá, feito por
infusão, próprio da região.
O Direito, distante da vida, não cumpre sua função. Ter direitos é uma expressão de cidadania. E, quando falamos em cidadania, aflora um sentido de pertencimento. Pertencer é exercer o pleno direito de ser parte e participar, dialogar, independentemente de classe, cor, gênero, ocupação ou opção religiosa. Nem sempre o que é dito é compreendido.
O “direito a ter direitos”, expressão de Hannah Arendt, sintetiza o legado dessa filósofa judia alemã, perseguida pelo nazismo. Sua história e luta pela cidadania plena ainda hoje inspiram e ecoam entre aqueles que buscam um Estado Democrático livre e justo socialmente.
O 1º de Maio celebra os direitos sociais,
pilares de uma sociedade justa e fraterna. Sem direitos, não há cidadania. O
direito transpira vida, o exercício da igualdade e da liberdade. O direito a
saúde, educação, trabalho, participação política, liberdade de expressão e
amplo acesso à Justiça. Sem o
direito não há cidadania.
O caminho de sua afirmação é longo. Há pouco
mais de um século, o trabalho escravo ainda era tolerado no Brasil. Apenas com
a Constituição de 1934, direitos básicos foram garantidos aos trabalhadores,
seguidos de outras conquistas como a autonomia das mulheres e os direitos da
maternidade.
A criação da Justiça do Trabalho em 1941
consolidou um mecanismo estatal de proteção dos direitos sociais. Reformas
posteriores, como a Constituição de 1946, reforçaram o compromisso com a
cidadania, mas apenas a Constituição de 1988 sedimentou esses direitos como
fundamentais, atribuindo à Justiça do Trabalho o dever constitucional de
salvaguardá-los. Em 2004, a Emenda Constitucional 45 ampliou a competência da
Justiça do Trabalho (art. 114, I), para atribuir-lhe o dever de zelar por todas
as formas de trabalho, pois a proteção dos direitos fundamentais sempre pautou
a atuação dessa Justiça especializada.
O respeito aos precedentes do Supremo
Tribunal Federal (STF) afirma o alinhamento e a unicidade do Poder Judiciário,
promovendo a segurança jurídica, pilares de uma sociedade pacificada e justa. A
atuação da Justiça do Trabalho deve respeito a essa hierarquia, mas a afirmação
de sua competência com técnica é indispensável para distinguir o que é
diferente.
A terceirização da atividade-fim, tema
pacificado pelo STF no tema 735 da repercussão geral, volta à tona em discussão
no Supremo afeta à “pejotização” no tema 1.389, prática que se refere à
possibilidade de contratar pessoas jurídicas para exercer funções típicas de
pessoas naturais, sem direitos sociais do trabalho.
Como magistrada, vejo a Justiça do Trabalho
alinhada às decisões da Corte Constitucional e ciosa do dever de analisar cada
caso com suas particularidades e distinguir os diferentes dos precedentes
qualificados. O crescente número de reclamações ao STF é alheio à atuação da
Justiça do Trabalho, convindo refletir que a subversão da ordem processual com
a quebra do sistema recursal inibe a dialética e frustra a legitimação do
direito.
A anedota do tereré lembra a importância de
ver o Brasil real e colocar a dignidade humana no centro das decisões. O que
ora está em jogo no STF é o futuro dos direitos sociais. Neste Dia do Trabalho,
que a sociedade garanta a todos o direito a ter direitos, condição essencial
para uma sociedade democrática, justa e humana.
*Adenir Carruesco é presidente do Colégio de Presidentes e Corregedores dos TRTs e do TRT23
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