sexta-feira, 23 de maio de 2025

A Igreja e as ideologias – José de Souza Martins*

Valor Econômico

“Progressista” nada tem a ver com os conceitos próprios da igreja. Desde João XXIII nenhum papa foi progressista, como nenhum foi conservador

A propósito da inundação de palpites sobre quem seria o novo papa. Todos os que deram palpites erraram. Como vem acontecendo desde a sucessão de Pio XII, dos sete papas desse período, cinco não foram os previstos. O Espírito Santo não segue palpites. Somos uma sociedade de reduzida e pobre consciência social em relação a questões decisivas de nossa vida coletiva, muito mais em relação à religião e à Igreja Católica.

A dificuldade começa pelo fato de que a Igreja Católica é uma instituição dupla. É igreja e Estado. O papa não tem como deixar de ser uma dupla personificação, a do chefe de Estado e a do profeta da igreja. No Velho Testamento o profeta é crítico e antagônico do rei.

Sem contar as muitas outras diferenciações identitárias no interior da própria igreja. Significativamente, três dias depois de sua eleição, o novo papa recebeu na imensa Sala Paulo VI uma multidão de representantes da Igreja Oriental, sujeita à sua autoridade, que em várias questões se diferenciam da Igreja Latina, a de Roma.

Os sacerdotes da Igreja Oriental podem ser casados se já o fossem antes da ordenação sacerdotal. Na Igreja Oriental e nas Igrejas Ortodoxas o sacerdócio não depende de um celibato absoluto, como na Igreja Latina.

Segundo me explicou um guia em Zagorski, na Rússia, o Vaticano da Igreja Ortodoxa Russa, o bispo é escolhido entre sacerdotes celibatários, mas os sacerdotes não celibatários devem fazer uma purificação do corpo como preparação para a celebração religiosa. Essa é a questão, a do sagrado, e não a do casamento.

A Igreja Católica tem situações de abrandamento do celibato. Os diáconos podem ser casados, embora lhes esteja vedado celebrar a missa, administrar a unção dos enfermos, a confissão e a consagração. Mas podem dar a bênção do Santíssimo, ministrar os sacramentos do batismo, do casamento e da comunhão.

Bispo é celibatário. Mas, no Brasil, um bispo casado, pai de sete filhos, participou do Concílio Vaticano II, da Igreja Católica, Apostólica, Romana. O que indica que o celibato não é propriamente um dogma. Foi ele Dom Salomão Ferraz.

Originalmente pastor da Igreja Presbiteriana, já casado quando se converteu ao catolicismo da Igreja Católica Apostólica Brasileira, dissidência de Roma, e nela se tornou bispo. Quando decidiu se tornar católico romano, nessa condição foi acolhido na Igreja Católica quando era papa João XXIII.

A Igreja Católica tem uma história de séculos de definição de critérios para seus rumos, mesmo inovações. No entanto, não raro é vitimada pelas murmurações.

Já eleito o papa Leão XIV, o rumor é saber se ele é progressista ou não. Progressismo não é conceito decisivo do elenco de palavras que possam definir o perfil e a orientação que um papa possa adotar. É palavra que vem do vocabulário comunista de certa época, o partido tentando pescar pontos de identificação da igreja com os seus para alargar suas chances de crescer no marco da democracia e da pluralidade.

Em cada país isso se deu de um jeito. Na Itália, em que os comunistas saíram muito fortalecidos graças à heroica resistência dos “partigiani” contra nazistas e fascistas, foram eles participantes da implantação da república e do regime democrático pluralistas.

No Brasil, em que o processo foi muito diferente, ganhou importância a consciência de que a derrota do nazismo muito deveu à União Soviética, mais do que aos Aliados. Aqui, os comunistas ganharam protagonismo eleitoral na região industrial de Santo André, região densamente católica, elegeu prefeito e maioria dos vereadores comunistas, que foram cassados no dia da posse.

“Progressista” nada tem a ver com os conceitos próprios da igreja. Desde João XXIII nenhum papa foi progressista, como nenhum foi conservador. Desde Leão XIII, no fim do século XIX, que promulgou a “Encíclica Rerum Novarum”, sobre os direitos dos trabalhadores em face das iniquidades sociais da Revolução Industrial, todos os papas têm proclamado valores relativos aos direitos sociais. Como tem recusado demandas de movimentos que não são subscritas pelos oficialmente progressistas.

A Igreja Católica é conservadora mesmo no seu progressismo quanto a certos temas, como os relativos às relações de trabalho e às reformas sociais. A doutrina social da igreja procede de concepções teóricas de raiz no pensamento conservador, assim como dele procedem o método e a lógica das ideias sociais de Marx.

Ratzinger, no seu livro sobre Jesus, emprega o conceito de alienação, mas precisou fazer a distinção entre a concepção católica e a concepção marxista.

Aliás, desde João XXIII, a Igreja Católica em sua orientação e em seus combates tem na mira a alienação, e não as ideologias de esquerda.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

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