Valor Econômico
“Progressista” nada tem a ver com os
conceitos próprios da igreja. Desde João XXIII nenhum papa foi progressista,
como nenhum foi conservador
A propósito da inundação de palpites sobre
quem seria o novo papa. Todos os que deram palpites erraram. Como vem
acontecendo desde a sucessão de Pio XII, dos sete papas desse período, cinco
não foram os previstos. O Espírito Santo não segue palpites. Somos uma
sociedade de reduzida e pobre consciência social em relação a questões
decisivas de nossa vida coletiva, muito mais em relação à religião e à Igreja
Católica.
A dificuldade começa pelo fato de que a
Igreja Católica é uma instituição dupla. É igreja e Estado. O papa não tem como
deixar de ser uma dupla personificação, a do chefe de Estado e a do profeta da
igreja. No Velho Testamento o profeta é crítico e antagônico do rei.
Sem contar as muitas outras diferenciações identitárias no interior da própria igreja. Significativamente, três dias depois de sua eleição, o novo papa recebeu na imensa Sala Paulo VI uma multidão de representantes da Igreja Oriental, sujeita à sua autoridade, que em várias questões se diferenciam da Igreja Latina, a de Roma.
Os sacerdotes da Igreja Oriental podem ser
casados se já o fossem antes da ordenação sacerdotal. Na Igreja Oriental e nas
Igrejas Ortodoxas o sacerdócio não depende de um celibato absoluto, como na
Igreja Latina.
Segundo me explicou um guia em Zagorski, na
Rússia, o Vaticano da Igreja Ortodoxa Russa, o bispo é escolhido entre
sacerdotes celibatários, mas os sacerdotes não celibatários devem fazer uma
purificação do corpo como preparação para a celebração religiosa. Essa é a
questão, a do sagrado, e não a do casamento.
A Igreja Católica tem situações de
abrandamento do celibato. Os diáconos podem ser casados, embora lhes esteja
vedado celebrar a missa, administrar a unção dos enfermos, a confissão e a
consagração. Mas podem dar a bênção do Santíssimo, ministrar os sacramentos do
batismo, do casamento e da comunhão.
Bispo é celibatário. Mas, no Brasil, um bispo
casado, pai de sete filhos, participou do Concílio Vaticano II, da Igreja
Católica, Apostólica, Romana. O que indica que o celibato não é propriamente um
dogma. Foi ele Dom Salomão Ferraz.
Originalmente pastor da Igreja Presbiteriana,
já casado quando se converteu ao catolicismo da Igreja Católica Apostólica
Brasileira, dissidência de Roma, e nela se tornou bispo. Quando decidiu se
tornar católico romano, nessa condição foi acolhido na Igreja Católica quando
era papa João XXIII.
A Igreja Católica tem uma história de séculos
de definição de critérios para seus rumos, mesmo inovações. No entanto, não
raro é vitimada pelas murmurações.
Já eleito o papa Leão XIV, o rumor é saber se
ele é progressista ou não. Progressismo não é conceito decisivo do elenco de
palavras que possam definir o perfil e a orientação que um papa possa adotar. É
palavra que vem do vocabulário comunista de certa época, o partido tentando
pescar pontos de identificação da igreja com os seus para alargar suas chances
de crescer no marco da democracia e da pluralidade.
Em cada país isso se deu de um jeito. Na
Itália, em que os comunistas saíram muito fortalecidos graças à heroica
resistência dos “partigiani” contra nazistas e fascistas, foram eles
participantes da implantação da república e do regime democrático pluralistas.
No Brasil, em que o processo foi muito
diferente, ganhou importância a consciência de que a derrota do nazismo muito
deveu à União Soviética, mais do que aos Aliados. Aqui, os comunistas ganharam
protagonismo eleitoral na região industrial de Santo André, região densamente
católica, elegeu prefeito e maioria dos vereadores comunistas, que foram
cassados no dia da posse.
“Progressista” nada tem a ver com os
conceitos próprios da igreja. Desde João XXIII nenhum papa foi progressista,
como nenhum foi conservador. Desde Leão XIII, no fim do século XIX, que
promulgou a “Encíclica Rerum Novarum”, sobre os direitos dos trabalhadores em
face das iniquidades sociais da Revolução Industrial, todos os papas têm
proclamado valores relativos aos direitos sociais. Como tem recusado demandas
de movimentos que não são subscritas pelos oficialmente progressistas.
A Igreja Católica é conservadora mesmo no seu
progressismo quanto a certos temas, como os relativos às relações de trabalho e
às reformas sociais. A doutrina social da igreja procede de concepções teóricas
de raiz no pensamento conservador, assim como dele procedem o método e a lógica
das ideias sociais de Marx.
Ratzinger, no seu livro sobre Jesus, emprega
o conceito de alienação, mas precisou fazer a distinção entre a concepção
católica e a concepção marxista.
Aliás, desde João XXIII, a Igreja Católica em
sua orientação e em seus combates tem na mira a alienação, e não as ideologias
de esquerda.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre
a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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