quarta-feira, 21 de maio de 2025

A importância do ‘habeas corpus’ - Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

Persistem e revivem ainda hoje algumas incompreensões sobre o ‘writ’, o que acaba por reduzir ou mesmo tolher sua eficácia

No início do mês, noticiou-se que a Casa Branca estuda suspender o habeas corpus nos EUA, como medida da política anti-imigração de Donald Trump. Em outro contexto, mas com semelhante raiz autoritária, em dezembro de 1968, o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) suspendeu no Brasil “a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. É incrível como se manifesta, em diferentes circunstâncias políticas, a mesma lógica do arbítrio: enxerga-se na proteção da liberdade – no habeas corpus que assegura limites ao poder estatal – um obstáculo a ser removido, sob pretexto de defesa do interesse nacional.

Fez bem, portanto, a Constituição de 1988 em estabelecer entre os direitos fundamentais a concessão de habeas corpus “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Essa garantia é elemento necessário do Estado Democrático de Direito. No entanto, mesmo que seja juridicamente inviável suspender o habeas corpus no Brasil, persistem e revivem ainda hoje algumas incompreensões sobre o writ, o que acaba por reduzir ou mesmo tolher sua eficácia.

Uma dessas incompreensões diz respeito à quantidade expressiva de habeas corpus impetrados. Recentemente foi interposto o milionésimo habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). A metade desse número – 500 mil – chegou à Corte nos últimos seis anos. Houve quem tenha visto nesses dados um sintoma da banalização do instrumento, postulando restringi-lo.

De fato, o número impressiona, mas muitas são suas causas. O crescimento exponencial de habeas corpus está relacionado ao aumento da atividade repressiva seletiva e acriteriosa. Por exemplo, a maior fonte de matéria-prima para habeas corpus no STJ tem sido o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que resiste, com espantosa frequência, a seguir a jurisprudência das cortes superiores. O uso do remédio não é por capricho, mas por estrita necessidade.

Num cenário de violações sistemáticas de direitos fundamentais e de interpretações idiossincráticas da lei, o habeas corpus tem-se mostrado um instrumento simples, ágil e de fácil acesso – méritos para lá de significativos dentro de um sistema processual complexo, formalista e, não raro, demorado. E isso não é um fenômeno de hoje. Previsto em lei desde 1832 e, em sede constitucional, desde a primeira Carta republicana de 1891, o habeas corpus tem servido para combater diferentes formas de violência e de coação por ilegalidade ou abuso de poder, e não apenas prisões ilegais. Estabilizou-se, assim, não sem percalços ou resistências, uma concepção ampla do remédio constitucional, o que veio a desembocar na chamada doutrina brasileira do habeas corpus. “Não podem – diz o ministro do Sup r e mo Tr i b u n a l Fe d e r a l (STF) Gilmar Ferreira Mendes – razões formalistas sobre o manejo do writ prevalecer sobre o conteúdo dos direitos fundamentais que ele visa a proteger”.

Há ainda uma dimensão do habeas corpus em geral não muito comentada, mas que agora, com o trabalho de pósdoutorado na USP do advogado e professor Alberto Zacharias Toron ( Racionalização e simplificação do sistema recursal: o habeas corpus. Thomson Reuters, 2025), ganha novas luzes: seu caráter nomofilático, que é a função, típica das cortes superiores, de uniformização da interpretação das normas jurídicas.

“Por meio do habeas corpus, tem-se operado, em inúmeros casos, a correta interpretação do ordenamento jurídico numa autêntica ‘ dessubjetivação’ ou ‘abstrativização’ das decisões”, escreve Toron. Alguns exemplos de padrões interpretativos estabelecidos por meio de habeas corpus: a definição de justa causa para a ação penal por crime fiscal, os critérios para o reconhecimento fotográfico, as garantias contra buscas pessoais discriminatórias e os limites para a prisão preventiva de mães.

Eis aqui mais um aspecto da importância do habeas corpus.

A “tramitação abreviada do writ – escrevem o ministro do STJ Marcelo Ribeiro Dantas e Thiago Motta – contribui para esse fenômeno, já que leva mais rapidamente aos tribunais superiores questões que, nas vias recursais extraordinárias (protocoladas na origem e ali submetidas a juízo prévio de admissibilidade), levariam ainda alguns anos em seu trajeto rumo à instância ad quem”.

Por ser um instrumento acessível e efetivo de limitação e de correção do poder – em especial, na tutela do devido processo legal –, o habeas corpus

garante acesso rápido do próprio Judiciário às grandes questões que ele tem de resolver.

Ao julgarem os habeas corpus, além de apreciarem violações e ameaças de violação à liberdade – tarefa imprescindível –, as cortes superiores cumprem sua missão primária de orientar, a partir da realidade concreta brasileira, a aplicação da lei. É o exato oposto da crítica habitual, de que os habeas corpus as desviariam do seu papel institucional. Em vez de empecilho, eles são um pilar estruturante da Justiça.

 

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