O Estado de S. Paulo
Persistem e revivem ainda hoje algumas incompreensões sobre o ‘writ’, o que acaba por reduzir ou mesmo tolher sua eficácia
No início do mês, noticiou-se que a Casa Branca estuda suspender o habeas corpus nos EUA, como medida da política anti-imigração de Donald Trump. Em outro contexto, mas com semelhante raiz autoritária, em dezembro de 1968, o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) suspendeu no Brasil “a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. É incrível como se manifesta, em diferentes circunstâncias políticas, a mesma lógica do arbítrio: enxerga-se na proteção da liberdade – no habeas corpus que assegura limites ao poder estatal – um obstáculo a ser removido, sob pretexto de defesa do interesse nacional.
Fez bem, portanto, a Constituição de 1988 em
estabelecer entre os direitos fundamentais a concessão de habeas corpus “sempre
que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua
liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Essa garantia é elemento necessário do Estado
Democrático de Direito. No entanto, mesmo que seja juridicamente inviável
suspender o habeas corpus no Brasil, persistem e revivem ainda hoje algumas
incompreensões sobre o writ, o que acaba por reduzir ou mesmo tolher sua
eficácia.
Uma dessas incompreensões diz respeito à
quantidade expressiva de habeas corpus impetrados. Recentemente foi interposto
o milionésimo habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). A
metade desse número – 500 mil – chegou à Corte nos últimos seis anos. Houve
quem tenha visto nesses dados um sintoma da banalização do instrumento,
postulando restringi-lo.
De fato, o número impressiona, mas muitas são
suas causas. O crescimento exponencial de habeas corpus está relacionado ao
aumento da atividade repressiva seletiva e acriteriosa. Por exemplo, a maior
fonte de matéria-prima para habeas corpus no STJ tem sido o Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, que resiste, com espantosa frequência, a seguir a
jurisprudência das cortes superiores. O uso do remédio não é por capricho, mas
por estrita necessidade.
Num cenário de violações sistemáticas de
direitos fundamentais e de interpretações idiossincráticas da lei, o habeas
corpus tem-se mostrado um instrumento simples, ágil e de fácil acesso – méritos
para lá de significativos dentro de um sistema processual complexo, formalista
e, não raro, demorado. E isso não é um fenômeno de hoje. Previsto em lei desde
1832 e, em sede constitucional, desde a primeira Carta republicana de 1891, o
habeas corpus tem servido para combater diferentes formas de violência e de coação
por ilegalidade ou abuso de poder, e não apenas prisões ilegais.
Estabilizou-se, assim, não sem percalços ou resistências, uma concepção ampla
do remédio constitucional, o que veio a desembocar na chamada doutrina
brasileira do habeas corpus. “Não podem – diz o ministro do Sup r e mo Tr i b u
n a l Fe d e r a l (STF) Gilmar Ferreira Mendes – razões formalistas sobre o
manejo do writ prevalecer sobre o conteúdo dos direitos fundamentais que ele
visa a proteger”.
Há ainda uma dimensão do habeas corpus em
geral não muito comentada, mas que agora, com o trabalho de pósdoutorado na USP
do advogado e professor Alberto Zacharias Toron ( Racionalização e
simplificação do sistema recursal: o habeas corpus. Thomson Reuters, 2025),
ganha novas luzes: seu caráter nomofilático, que é a função, típica das cortes
superiores, de uniformização da interpretação das normas jurídicas.
“Por meio do habeas corpus, tem-se operado,
em inúmeros casos, a correta interpretação do ordenamento jurídico numa
autêntica ‘ dessubjetivação’ ou ‘abstrativização’ das decisões”, escreve Toron.
Alguns exemplos de padrões interpretativos estabelecidos por meio de habeas
corpus: a definição de justa causa para a ação penal por crime fiscal, os
critérios para o reconhecimento fotográfico, as garantias contra buscas
pessoais discriminatórias e os limites para a prisão preventiva de mães.
Eis aqui mais um aspecto da importância do
habeas corpus.
A “tramitação abreviada do writ – escrevem o
ministro do STJ Marcelo Ribeiro Dantas e Thiago Motta – contribui para esse
fenômeno, já que leva mais rapidamente aos tribunais superiores questões que,
nas vias recursais extraordinárias (protocoladas na origem e ali submetidas a
juízo prévio de admissibilidade), levariam ainda alguns anos em seu trajeto
rumo à instância ad quem”.
Por ser um instrumento acessível e efetivo de
limitação e de correção do poder – em especial, na tutela do devido processo
legal –, o habeas corpus
garante acesso rápido do próprio Judiciário
às grandes questões que ele tem de resolver.
Ao julgarem os habeas corpus, além de
apreciarem violações e ameaças de violação à liberdade – tarefa imprescindível
–, as cortes superiores cumprem sua missão primária de orientar, a partir da
realidade concreta brasileira, a aplicação da lei. É o exato oposto da crítica
habitual, de que os habeas corpus as desviariam do seu papel institucional. Em
vez de empecilho, eles são um pilar estruturante da Justiça.
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