Valor Econômico
Vantagens naturais, se combinadas a estratégias, podem ser convertidas em poder produtivo, comercial e até geopolítico
A elevada dependência da China por importação
de energia para tocar o seu crescimento se converteu em um dos seus principais
pontos de vulnerabilidade estratégica. No entanto, em vez de tratar essa
limitação apenas como um problema a mitigar, a China transformou a sua
insegurança energética em um dos motores de industrialização, inovação
tecnológica e até liderança global.
O que poucos anteciparam foi que aquela transição, movida por uma necessidade defensiva, se tornaria uma ofensiva econômica de longo porte e alcance. E é justamente aí que reside uma lição essencial para o Brasil: a de que vantagens naturais, se combinadas a estratégias, podem ser convertidas em poder produtivo, comercial e até geopolítico.
De fato, a China se tornou o maior importador
mundial de petróleo por volta de 2017, boa parte transitando pelo Estreito de
Malaca, um gargalo vulnerável a tensões geopolíticas. Mas a China talvez seja
ainda mais vulnerável aos efeitos de um eventual conflito internacional que
dificulte o trânsito de suprimentos pelo Mar da China. Para um país que
persegue soberania estratégica, essa dependência poderia ser considerada
inaceitável.
A China buscou reduzir essa vulnerabilidade
não apenas substituindo fontes de energia, mas criando todo um novo ecossistema
industrial em torno de tecnologias limpas: energia solar e eólica, baterias,
veículos elétricos, hidrogênio, infraestruturas digitais verdes e muito mais.
Trata-se de uma mudança de paradigma. A transição energética não foi tratada
apenas como uma exigência ambiental, mas como parte de um projeto de autonomia,
modernização produtiva e inserção internacional ativa.
O governo chinês articulou instrumentos de
política industrial, inovação e comércio para dar suporte e catalisar aquela
transformação: planejamento de longo prazo com metas específicas para fontes
renováveis, eficiência energética e tecnologias emergentes; demanda doméstica
estruturada, com incentivos para geração solar, aquisição de veículos
elétricos, desenvolvimento de redes de carregamento e políticas de compras
públicas; formação de campeões nacionais, com apoio financeiro, regulatório e
tecnológico a empresas; controle das cadeias críticas, com domínio do refino e
processamento de minerais como lítio, cobalto, terras raras e grafite; e
financiamento externo como projeção de influência, com exportação de
equipamentos e infraestruturas por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota. Esta
última, parte da resposta chinesa às suas vulnerabilidades estratégicas, não
por acaso mirou investimentos logísticos de conectividade para o oeste da Ásia.
Como resultado, a China está ampliando
significativamente a sua matriz renovável e construiu liderança global em
cadeias de valor fundamentais para levar adiante a agenda de mudança climática
- em 2024, 2/3 dos novos investimentos em renováveis em nível global tiveram
lugar na China. Assim que, de importadora líquida de energias, a China passou a
ser exportadora de soluções energéticas limpas. Tudo isto ajuda a explicar o
presidente Xi estar assumindo protagonismo mundial na agenda climática.
O superávit comercial e tecnológico gerado
por essa industrialização verde passaria, portanto, a financiar, em alguma
medida, o próprio projeto de autonomia e segurança energética. Se a agenda do
clima fortalece a posição política e econômica da China, é plausível supor que
isso ajude a explicar por que os Estados Unidos se afastaram do Acordo de Paris
e de outras iniciativas climáticas.
O Brasil, ao contrário da China, não parte de
uma condição de escassez energética. Ao contrário: tem uma das matrizes mais
limpas do mundo, com cerca de 90% da eletricidade gerada a partir de fontes
renováveis. Além disso, tem vastos capitais e recursos naturais, como sol,
vento, água doce, biomassa, florestas, biodiversidade, terras férteis e muitos
minerais críticos, incluindo nióbio, cobre, lítio, grafite e minério de ferro
de alto teor, além de grandes reservas de terras raras. O país também tem reconhecida
capacidade industrial, universidades e empresas com experiência em tecnologia e
produção.
Transição energética e capital natural,
quando bem articulados, são mais do que uma mudança de matriz
A grande diferença está na forma como essas
vantagens são mobilizadas. Enquanto a China usou a transição energética como
eixo de política de desenvolvimento nacional, o Brasil ainda trata essas
vantagens majoritariamente como ativos a serem explorados de forma primária,
imediatista e predatória, com baixa agregação de valor, fragmentação
institucional e ausência de estratégia coordenada.
Mas isso pode mudar. A nova lógica de
realocação produtiva no mundo, movida pela busca por cadeias mais verdes,
seguras e resilientes, abre espaço para a estratégia do powershoring: a
tendência de multinacionais e países relocalizarem indústrias intensivas em
energia em lugares com abundância de energia limpa, segura e barata.
O Brasil, com a sua farta energia renovável,
pode atrair indústrias eletrointensivas verdes como siderurgia, alumínio,
biocombustíveis, fertilizantes, dentre tantos outros setores verdes e
respectivas cadeias de valor. Isso, no entanto, exige planejamento,
infraestrutura e uma política industrial moderna baseada em sustentabilidade,
inovação, tecnologia e agregação de valor. A resposta seria a política de
industrialização das vantagens comparativas, que congrega interesses comuns do
agro, manufatura, serviços e mineração.
A lição da China é clara: recursos naturais e
energias limpas só se transformam em desenvolvimento se forem articulados a uma
estratégia econômica coordenada. Para que o Brasil aproveite essa oportunidade,
alguns elementos são fundamentais: visão de longo prazo, fazendo da transição
energética e do capital natural eixos estruturantes do desenvolvimento
nacional, e não subprodutos; industrialização verde, apoiando cadeias
produtivas em torno da energia limpa - do agro sustentável à mobilidade
elétrica, passando pela química verde, mineração responsável e digitalização;
conversão dos imensos e ricos capitais naturais em asset class; financiamento
público e privado direcionado, usando bancos públicos, concessões e marcos
regulatórios para destravar investimentos em setores estratégicos; integração
internacional inteligente, participando ativamente das novas cadeias globais de
valor limpas, usando diplomacia econômica e comercial para atrair parcerias e
empresas; e inovação como motor, investindo em ciência, tecnologia e
capacitação profissional para garantir que o Brasil seja fornecedor de
soluções, e não apenas de commodities. Os Brics e a COP30 poderiam ser
plataformas para aquelas agendas.
O que a China nos mostra é que a transição
energética e o capital natural, quando bem articulados, são mais do que uma
mudança de matriz: são uma estratégia de desenvolvimento, uma ferramenta de
soberania e uma fonte de poder geopolítico. O Brasil tem muitos dos recursos
que o mundo busca na era da descarbonização, mas, ao contrário da China, ainda
não tem uma estratégia clara para converter essas riquezas em tecnologia,
inovação, renda, emprego qualificado e liderança global e, assim, em redução de
pobreza e desigualdade e promoção de um desenvolvimento amplo, compartilhado e
limpo. Está na hora de o Brasil fazer da abundância uma alavanca estratégica. A
janela de oportunidade está aberta, mas talvez não permaneça assim por muito
tempo.
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