O Globo
Lula, alvo de uma tentativa de golpe de
Estado, vive elogiando e defendendo a democracia, mas suas ações contrariam
suas palavras
Não é novidade que a democracia liberal está
ameaçada. Nunca, desde a derrota do nazifascismo em 1945, a extrema direita
esteve tão forte, e ela está por toda parte: Trump, Le Pen, Orbán, Bolsonaro
etc. Recentemente, o segundo lugar nas eleições alemãs ficou com a extremista
Alternativa para a Alemanha (AfD), e o vencedor teve dificuldade para formar um
governo (na última vez em que um cenário parecido ocorreu, em 1930, ele abriu
caminho à ascensão de Hitler).
A situação internacional tampouco é fácil. Há
a ameaça do imperialismo militar russo, os riscos da eventual hegemonia
econômica da ditadura chinesa e o fogo amigo. Trump rasga a Constituição como
quem troca de roupa, defende extremistas estrangeiros, desorganiza o comércio
internacional.
A celebração do aniversário de 80 anos da vitória na Segunda Guerra Mundial, nesta semana, é simbólica: serve como alerta contra os riscos do extremismo e faz parte da luta da democracia pela sobrevivência. Lula poderia festejar em qualquer lugar — inclusive no Brasil, de onde se ausenta em demasia —, mas escolheu Moscou. Haverá quem diga que faz sentido, já que a antiga URSS era nossa aliada contra o nazismo. Mas o Brasil entrou na guerra por causa dos Estados Unidos e sempre combateu sob o comando de generais americanos. Nunca tivemos contato com os russos.
Além disso, a aliança era acidental e
incômoda: Alemanha e URSS eram regimes totalitários similares, comandados por
ditadores paranoicos e sanguinários. Antes de se unir à luta contra o
nazifascismo, Stálin assinou um pacto de não agressão que permitiu a Hitler
iniciar a guerra. A URSS ficou com Finlândia, Repúblicas Bálticas e metade da
Polônia — e a ocupação soviética foi tão brutal quanto a alemã. (O governo da
Polônia no exílio se aliou aos países ocidentais, não à URSS.)
De toda forma, se a justificativa para a
presença de Lula na Rússia é a
antiga aliança com a URSS, como fica a Ucrânia, também ex-república soviética?
Qual a justificativa para prestigiar um antigo aliado e insultar o outro? Lula
quis reduzir o papelão marcando, em cima da hora, uma visita a Volodymyr
Zelensky — isso depois de esnobá-lo por quase dois anos. O presidente
da Ucrânia mandou dizer que tem mais o que fazer, classificou a ida de Lula a
Moscou como “ato hostil” e cogita reduzir o status diplomático na relação
conosco.
A maior parte dos países europeus viveu anos
sob ocupação e opressão nazistas, e metade se libertou de Hitler para cair sob
a opressão soviética. Hitler e Stálin eram parecidos, e Putin se parece com os
dois. Não apenas por ser um ditador totalitário que tem o hábito de assassinar
adversários, mas também por questões geopolíticas.
Hitler anexou a Áustria, intimidou as
potências ocidentais para lhe darem um pedaço da Tchecoslováquia (depois tomou
o país inteiro), invadiu a Polônia e jogou o mundo numa guerra devastadora.
Putin anexou a Crimeia e invadiu a Ucrânia, e líderes como Trump e Lula dão a
entender que ficará tudo bem se ele ficar com (só) mais um pedaço do país. Só
não vê a semelhança, só ignora o risco, quem quer.
Lula poderia ir a Moscou a qualquer tempo,
mas escolheu este momento simbólico, em que as democracias celebram a vitória
contra as tiranias, para confraternizar com Putin, Xi Jinping, Maduro e mais
dúzia e meia de liberticidas. Não é apenas ignorância histórica e estupidez
política, é a mais grave agressão diplomática (depois de muitas) às democracias
europeias até agora. Ela terá consequências.
Lula, alvo de uma tentativa de golpe de
Estado, vive elogiando e defendendo a democracia, mas suas ações contrariam
suas palavras. Karl Marx escreveu que o critério da verdade é a prática, e a
prática de Lula mostra que sua defesa da democracia é da boca para fora. Só
vale em benefício próprio.
*Ricardo Rangel é empresário
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